26 de janeiro de 2020

O Deus do Fogo



I

Para os garonos, tribo de Tajek, a guerra era como um festim sangrento. Os garonos não a temiam, mas a apreciavam pois a partir dela construíam suas vidas, treinando desde jovens com espadas, lanças e escudos. As terras em que habitavam no Deserto Oriental eram demais cobiçadas por sua fertilidade pois por ela passava o Rio das Almas.

Naquela noite, nas margens do Rio das Almas, sob forte chuva, centenas de homens-cão se aproximavam, liderados pelo Senhor dos Cães, bárbaros crueis trajando couro de cachorro e uivando como feras terríveis e os maiores rivais da tribo de Tajek. Haveria guerra.

Tajek viu o exército inimigo se aproximando. Riu.

Aquela seria sua primeira batalha como Líder da Tribo. Não era mais um garoto com uma lâmina na mão, era um general de verdade, um comandante. Ao seu lado, Bekke, sua amada esposa. As mulheres garonas também não hesitavam em ir à guerra, tão valentes quanto seus maridos. Também estava lá Utsu, irmão de Tajek, exímio com o martelo e leal companheiro.

Assim foi a guerra que mudou a história de Tajek, o Garono. Os soldados do exército do Senhor dos Cães eram como bestas indomáveis, nem pareciam homens. Seus dentes eram como presas afiadas e não usavam espadas, mas armas que em suas ponta havia como que três garras.

Tajek estava com sua espada e seu escudo, além do elmo, todos presentes de Talok, seu velho pai, um guerreiro das antigas. Estava doente e acabado, cansado das guerras travadas, e decidira dar o título de Líder ao filho. Sua voz sábia ecoava na mente e espírito de Tajek, uma constante lembrança de seu coração valente que tanto inspirava a Tajek.

Mas mesmo com sangue nos olhos e com o espírito de Talok presente, Tajek não conseguiu evitar o pior. Depois de horas de combate, um dos inimigos o acertou fatalmente no pescoço.. Largou espada e escundo no chão, sua garganta a sangrar. Não resistiu e caiu, para o desespero de Bekka e Utsu, que observaram de longe o Líder, general, esposo e irmão derrotado.

Caiu, porém, nas águas do Rio das Almas. As águas do rio tornaram-se vermelhas naquela noite e ninguém nunca encontrou o corpo de Tajek, pelo menos não como um homem comum.

Os garonos foram vitoriosos naquela noite e os homens-cão foram mortos ou fugiram de medo, mas muitos guerreiros garonos tinham morrido também. Bekka e Uutsu voltaram para a aldeia com a triste nova: Tajek caíra.

Os garonos tinham perdido seu maior guerreiro, mas aquela foi somente a primeira das desgraças a acontecer-lhes. Os homens-cão não desistiram e continuaram avançando, mandando mais exércitos nas semanas seguintes, determinados a travar um guerra pela soberania daquela região. Muitos garonos morreram, mas ainda mais pegaram em machados e espadas rumo à batalha. Garonos não se rendem.

Assim foram os tempos que se seguiram depois da morte de Tajek. Mal Bekka e o seu povo sabia que Tajek faria um retorno e que a sua épica história estava somente começando. Tajek, o Garono, conquistaria seu lugar entre os grandes guerreiros da história.

II

Tajek abriu os olhos. Não estava mais com seu povo lutando contra os homens-cão. Estava nas margens de um riacho em uma caverna escura. Mas havia tochas nas paredes e Tajek, levantando sua cabeça cansada, conseguiu enxergar a gruta onde se encontrava.

Seu corpo não estava exausto ou com dor, mas sentiu como se tivesse acabado de despertar de um profundo sono. Tocou-se, não tinha mais suas armas nem seu escudo, tinha apenas sua armadura de couro e o resto das vestes que usava durante a sua morte. Lembrou-se do que acontecera a ele naquele segundo e imediatamente tocou o pescoço, nenhum ferimento.

Erguendo-se, Tajek pôde ver a figura que estava em sua frente. Encapuzado, não conseguiu ver seu rosto mas deduziu que fosse um homem por causa da grande estatura.

Falou com uma voz sinistra:

- Bem-vindo, filho de Talok. Meu mestre o espera.

- Quem é você? - Tajek perguntou, sua voz fraca.

- Sou um servo do Deus do Fogo. Siga-me, por favor.

A figura estendeu a mão e com uma magia fez surgir uma chama sobre a sua palma e ela ali ela pairou. Guiando Tajek, os dois chegaram até um canto da caverna onde havia uma porta enorme e uma escadaria.

Por muito tempo Tajek e o misterioso servo do Deus do Fogo subiram aquelas escadas, mas não importava o quanto subia, Tajek parecia não sentir nenhum cansaço. Um feitiço poderoso nublava seus sentidos.

No fim da jornada, Tajek finalmente conheceu o Deus do Fogo e o seu trono.

Estavam no cume de uma montanha, ou pelo menos em um ponto muito alto dela. O céu era laranja e o vento soprava forte naquele fim de tarde. Havia estátuas adornando o local do trono e muitos outros serviçais por perto. Também havia muitas tochas espalhadas e as chamas que nelas queimavam eram de variadas cores.

O servo que acompanhava Tajek apresentou-lhe seu mestre:

- Fanastar, o Deus do Fogo.

O servo curvou-se, e logo todos os outros presentes fizeram o mesmo.

Fanastar estava sentado no seu enorme trono. Tajek aproximou-se e conseguiu vislumbrar seus olhos vermelhos e sua barba negra que parecia ter sido queimada por algum fogo primordial. Vestia um manto elegante e em seus dedos havia anéis de grande beleza. Sua expressão era severa, como um rei cruel, mas havia uma gentileza escondida no seu rosto.

Confrontado com a figura divina, Tajek curvou-se. Já tinha ouvido falar de Fanastar, o Deus do Fogo. Os garonos nunca o adoraram, mas tinha respeito por sua figura heróica, já tendo derrotado muitos monstros terríveis em eras ancestrais.

Mas não só era conhecido como Deus do Fogo. Fanastar era também o Deus da Vingança e com suas armas já golpeara muitos inimigos em retaliação. Havia muita crueldade em sua alma.

Mas Tajek, guerreiro corajoso, via valentia.

- Minha vinda aqui... - começou a dizer Tajek.

- Tu estás aqui por uma razão, garoto. - disse Fanastar. - Não foste derrubado em batalha? Eu trouxe-te de volta.

- Lorde do Fogo, o que viu em mim? Foi minha coragem? A morte de um garono em batalha é sagrada. Já que me ressuscitou, me dê uma espada e me mande para a guerra.

- Não conheces meu nome? Sou o Deus da Vingança também. E por isso que quero-te vivo, valoroso guerreiro do Deserto Oriental. Seu nome é conhecido onde vives. E os astros a quem nós divindades recorremos quando não encontramos respostas em terra predizem um grande futuro para Tajek, filho de Talok. Quero que sejas meu carrasco. Quero que andes entre os homens e que traga-me a cabeça dos mais desprezíveis e que mais merecem minha vingança. Há muitos homens, elfos e anões que fazem coisas detestáveis e que desejo ver mortos. Em troca, poderá voltar à sua tribo e morrer como desejares, garono. Mas enquanto não fizeres o que digo, será cobrado por mim, o Deus do Fogo! E ai de tu se não cumprires minha ordem.

- Mas por que um ser de tamanho poder como o senhor necessita da ajuda de um mero mortal como eu?

- O poder dos deuses está diminuindo. Já tive o mundo em minhas mãos, hoje mal posso sair desta montanha. É aqui onde exerço minha autoridade e magia. Os homens estão se esquecendo de nossa divindade, em breve não teremos mais poder.

- Então, que seja. - disse Tajek, abaixando sua cabeça.

Foi-lhe dado tudo necessário para iniciar sua aventura. Tudo que Tajek queria era voltar à sua tribo. Seu povo precisava dele e ele sabia disso. Faria o possível para morrer como um garono, morrer com honra defendendo sua família.

A espada que Fanastar deu-lhe tinha uma lâmina vermelha e olhar para ela era como enxergar um abismo infernal de fogo, Tajek pôde sentir a dor de ser empalado por ela. Recebeu também um escudo feito do material mais resistente sob os céus que nem o fogo de um dragão podia derreter. Além disso, recebeu a benção de Fanastar.

Foi-lhe dado seu alvo.

- Mate o rei de Agmor, pois eu o desprezo muito. - disse o Deus do Fogo e Vingança a Tajek.

E Tajek obedeceu. Saiu dos salões de Fanastar rumo à Tynsgard, capital de Agmor. Ele não ouvira a voz de Talok naquele dia, mas estava prestes a escutar.

III

Agmor era um próspero reino situado na Península do Trovão, ao leste dos palácios de Fanastar. Sua capital era Tynsgard, uma grande cidade portuária. Nos arredores de Tynsgard estava a densa Floresta dos Viajantes. Foi lá onde mais um personagem importante cruzou o caminho de Tajek.

Enquanto atravessava a Floresta, Tajek deparou-se com uma cena agonizante: um garoto subira em uma árvore para escapar das garras de um enorme urso negro. O rapaz, não mais que um adolescente, era magro e baixo e, não tendo encontrado forças para fugir, achou melhor escapar da fera subindo na árvore. Mas o urso chacoalhava o velho carvalho, ameaçando derrubar o pobre jovem.

Tajek viu aquilo. Garonos são cruéis e impiedosos com seus inimigos, mas aquele era só um garoto assustado. Garonos tem coração. Além do mais, precisava treinar com sua espada nova.

Sacou sua arma de lâmina vermelha. Deu um assobiou. O urso olhou para Tajek e depois de um segundo de tensão partiu para cima do garono. Tajek, em resposta, avançou com tudo para a besta de pelo negro, e, como um touro chifrando sua vítima, cravou profundamente a espada no pescoço do animal.

- Pode descer, garoto. E não me agradeça. - disse Tajek, o urso dando os últimos suspiros no chão.

O garoto desceu lentamente, como se ainda houvesse um urso vivo por perto. Limpando sua túnica, fez uma reverência.

- Meu nome é Nildo. O senhor salvou minha vida. Como posso agradecer?

Tajek já estava afastando-se.

- Não agradeça, já disse. Estou aqui para fazer outra coisa. Nós garonos gostamos de matar monstros, só isso.

- O senhor é um garono? - Nildo disse, surpreso. Garonos eram conhecidos por todos os reinos nas redondezas por sua valentia.

- Sim. Sou Tajek. - ele disse, virando-se.

- Procure por mim na cidade, Senhor Tajek! Eu estarei na ferraria do Mestre Toras. Eu serei muito útil como guia pela cidade, incluindo pelos caminhos mais secretos! - gritou Nildo.

E depois continuou seguindo a trilha. Não seria última vez que aqueles dois se veriam.

Não demorou para chegar a Tynsgard. Era uma cidade grande e movimentada, e o castelo ficava bem no centro então demoraria para chegar lá. Resolveu parar em uma taverna nos subúrbios, um gole de cerveja cairia bem.

Encontrou a taverna do Dragão Embriagado. Pouco sabia Tajek que tratava-se de um dos pontos mais conhecidos e também mais repudiados da cidade, um antro de bêbados e prostitutas, bandidos e magos escusos.

Assim que entrou na taverna, Tajek ganhou a atenção de um desses indivíduos que lá estava. Mas não tinha vindo para beber nem vagabundear, mas estava se escondendo. Uma figura encapuzada e sombria que sentava-se em um canto. Tajek, porém, não notou sua presença já que havia muitas pessoas na taverna.

- Quero um caneca de cerveja – disse Tajek, aproximando-se do balcão.

A figura encapuzada lentamente se aproximou e pôs a mão no ombro do garono, uma mão fria mas forte. A reação de Tajek foi imediata: pôs a mão na bainha de sua espada, pronto para uma ofensiva.

Mas não era um combate que aquela pessoa procurava.

- Este escudo que carrega – o misterioso disse – É feito de aço amuriano, não é?

- Quem é você? - disse Tajek.

O indivíduo removeu o capuz e revelou sua excêntrica aparência. Não era humano, mas um elfo. Os garonos não eram familiares com a tal espécie, mas Tajek já tinha ouvido histórias. As suas orelhas eram pontudas e seu cabelo dourado. Sua face era angular de uma maneira quase que desconfortável.

- Sou Edrel, um colecionador. Quanto está cobrando pelo seu escudo?

- Não está à venda! - disse Tajek.

- Posso dar bastante dinheiro.

- Não vim a esta cidade para vender minhas armas. Preciso delas.

- Para quê?

Tajek deu um gole único gole na sua cerveja e esvaziou a caneca. Limpou os lábios e deu ao taverneiro uma moeda. Saiu sem falar nada, seguindo sua missão.

Edrel, irritado, apontou para Tajek e fez um estranho gesto com suas duas mãos enquanto sussurava palavras em uma língua que só ele entendia.

De repente, tudo ficou escuro para Tajek. Perdeu seu sentidos por pouco tempo, mas logo os recobrou. Não estava mais, porém, no Dragão Embriagado, mas em uma caverna, amarrado a uma cadeira e sem suas armas. Viu alguém com uma tocha em sua frente. Era Edrel.

- O que aconteceu? - disse Tajek.

- Você me obrigou a usar meu feitiço, guerreiro. - disse Edrel – Estamos em minha caverna nas redondezas da cidade. Tentei fazer isso de um modo fácil, mas você quis do jeito difícil.

- Sempre soube que elfos tinham um lado sombrio. O que quer de mim, mago?

- Suas armas. Sou um colecionador, como já disse. E ficarei com elas. E depois usarei outro feitiço que me levará para longe deste país. Terá sua liberdade apenas se me contar com qual propósito está portando um escudo amuriano. Este aço era usado por uma antiga civilização há muito extinta e existem poucos desses hoje em dia. Por que você tem um? Fale!

- Foi dado a mim... pelo Deus do Fogo. - Tajek respondeu. - Está satisfeito com a resposta? Liberte-me.

Edrel estava incrédulo.

- O Deus do Fogo? Fanastar?

O mago elfo abaixou-se e pegou do chão a espada que Tajek carregava. Examinou-a por muito tempo, um semblante de surpresa e terror cobria sua face.

- Esta lâmina vermelha se parece muito com as que eram forjadas nos vulcões da Quinta Era. Creio em você, guerreiro. Não sei porque está aqui e porque Fanastar o enviou, mas cobiço muito estas relíquias. Mas embora eu seja um mago poderoso, não posso lutar contra um deus, então não vou interferir nos assuntos de Fanastar.

- Muito obrigado – disse Tajek.

- Irei libertá-lo. Mas lembre-se: não confie em Fanastar, ele não é o que parece.

Edrel, mais uma vez com um gesto grotesco e repentino de suas mãos e pulsos acompanhado de palavras mágicas, conjurou seu feitiço e em um piscar de olhos Tajek não estava mais lá. Era noite em um beco sujo de Tynsgard.

Não seria a última vez que o garono e o mago se veriam.

IV

Mestre Toras era um homem alto e forte, um troll barbudo. Mas Tajek não temia trolls nem homens altos e fortes, já tinha matado muitos desses dois tipos. Quando entrou em sua ferraria pela manhã, horas depois de seu retorno da caverna do mago, foi logo procurando pelo garoto.

- Sou Tajek e vim procurar um rapaz que diz morar aqui.

- Meu sobrinho? Vou chamá-lo.

Nildo estava ficou contente como uma criança ao ver Tajek, seu herói de terras distantes. Teria abraçado o guerreiro se não temesse uma represaria.

- Senhor Tajek, que bom ver o senhor!

- Preciso entrar naquele castelo!

- Senhor...

- Disse que poderia ser meu guia e que queria uma maneira de me agradecer. Aí está sua oportunidade.

- Senhor Tajek...

- Diga tchau ao seu tio!

E saíram bruscamente pelas ruas de Tynsgard rumo ao castelo real. Tajek estava mais que certo, Nildo, rapaz ardiloso, conhecia cada canto da cidade como a palma de sua mão. Cada beco, cada buraco de esgoto. E era exatamente os caminhos secretos que Tajek queria desbravar.

- Ouvi falar que é possível entrar no castelo pelo esgoto. É verdade?

- Sim... Mas é perigoso. Tem guardas. Eu já fui e acabei expulso. - disse Nildo.

- Para mim não é um problema, não se preocupe. E você não precisa me acompanhar até o fim.

- Desculpe, senhor, mas o que pretende fazer no castelo?

- Tenho uma missão muito importante a cumprir. Envolve o seu rei. E é o único jeito de voltar para minha tribo. Caso contrário serei um inimigo do Deus do Fogo...

- Deus do quê?! - disse Nildo.

Depois de uma longa caminhada, chegaram a um bairro pobre. Em um boeiro de aparência tenebrosa, Nildo observou:

- Entrando aqui, vamos parar no jardim do castelo.

- Muito bem, lá vou eu. - disse Tajek, dando um pulo e caindo na chão do esgoto, coberto de água fedorenta, causando um splash.

Logo depois, outro splash. Era Nildo. Mas caiu com menos graça e com uma expressão de dor no rosto.

- Você vem? - perguntou Tajek.

- Sim, senhor. Serei seu escudeiro. Sou Nildo.

- Tome cuidado, Nildo, sobrinho de Toras.

Tajek sacou sua espada e ergueu o escudo, Nildo logo atrás, como um menino que usa a saia da mãe como proteção. O primeiro quilômetro foi de relativa claridade devido às aberturas no teto e nas paredes que permitiam, de vez em quando, a entrada de iluminação. Mas conforme foram prosseguindo, o caminho ficou mais escuro e mais sinistro. Nildo teve que acender e carregar uma tocha. Encontraram dois ratos atrozes, rapidamente mortos por Tajek. Morcegos também foram um problema.

Mas o problema maior estava por vir.

- É aqui – disse Nildo em voz baixa – chegamos.

Olharam para cima, havia um bueiro tampado. Felizmente, havia uma escada também.

- Tenha cuidado com os guardas, Senhor Tajek. - disse Nildo.

- Não se preocupe. Volte para sua casa, Nildo.

O garoto foi embora, deixando Tajek na escada, pronto para adentrar no castelo e enfrentar um exército de aguardas. Mas garonos não têm medo, são acostumados a enfrentar exércitos.

Abriu a tampa e, para sua surpresa, não havia guarda nenhum nos jardins.

Pensou que talvez não houvesse nenhum guarda somente perto dali. Mas andou por aquela parte do castelo, escondendo-se e em silêncio, sempre preparado para nocautear um soldado, mas não encontrou ninguém.

Entretanto, caminhando mais um pouco, Tajek começou a ouvir vozes, risos e melodias. Escondendo-se em uns arbustos, viu que havia, em uma área perto da portão traseiro do castelo, um enorme banquete sendo servido à luz do dia. Era uma festa com música e bebidas. Havia muitos nobres, cavaleiros, damas, bardos e clérigos.

E lá estava entre eles o rei em pessoa.

O rei Kenard ostentava um largo sorriso por debaixo da grossa barba branca. Tajek não tinha ideia do que ele tinha feito para perturbar o divino senso de certo e errado de Fanastar, mas estava faria tudo para poder voltar à sua tribo e defender o seu povo, mesmo se fosse matar o rei de Tynsgard.

Precisava da cabeça de Kenard. Mas não sabia como fazê-lo. Não poderia lutar contra todos os soldados da cidade e sair vivo.

Tajek pensou em desistir ali mesmo. Talvez devesse aceitar sua morte longe do seu povo e que os garonos seriam dizimados pelo homens-cão.

Mas então, uma voz surgiu.

- Ei, você é um cavaleiro?

Era um homem franzino, cabelos loiros, rosto e trejeitos femininos. Tocou Tajek no ombro enquanto perguntava sobre sua identidade.

- S-sim – Tajek travou.

- O que está fazendo aqui nos arbustos? Junte-se a nós, não seja tímido!

O homenzinho foi empurrando o enorme bárbaro até o meio do banquete e ali o deixou. Tajek nunca se sentiu tão sem jeito. Só tinha costume com as rústicas festas bárbaras de sua tribo. Além do mais, estava lá para arrancar a cabeça do rei Kenard.

O rei Kenard logo notou a presença do garono no meio de seu banquete. Reconheceu, sobre tudo, a arma que portava e levantou suas sombrancelhas.

- Ei, você – disse Kenard. - Venha cá.

Tajek aproximou-se do seu alvo. Já estava preparando-se para o golpe fatal. Só precisava sacar sua espada bem rapidamente e então fugir dali com a cabeça do rei pelo mesmo buraco que entrou.

- Você é um garono, não é? - perguntou Kenard.

- Sim, majestade.

- Eu percebi que está portando uma espada de lâmina vermelha, eu consigo ver um pouco da lâmina saindo da bainha.

Tajek começou a transpirar.

- Majestade, eu estou aqui...

O guerreiro garono pôs a mão no cabo da sua arma.

- Sei o motivo de ter vindo até aqui – disse o rei – Veio me matar!

Todos calaram-se. De repente, não havia mais banquete, só um monte de pessoas fitando o rei e o estrangeiro em sua frente. Houve silêncio.

- Como sabe? - disse Tajek.

- Não se preocupe, garono, sei quem está forçando você a isso – Kenard disse – Aquele Fanastar não é um deus, é um diabo. E você está sendo usado.

Tajek sacou sua espada, veloz como um raio. Apontou a ponta da lâmina para o pescoço de Kenard. Todos os guardas ao redor imediatamente reagiram.

Mas Kenard riu.

- Você não quer fazer isso, rapaz.

- Eu preciso. É o único jeito de voltar ao meu povo.

- Não é.

Tajek deixou cair sua espada e todos os soldados reais abaixaram suas lanças. O guerreiro caiu de joelhos no chão, estava derrotado.

- O que posso fazer?

- Destrua Fanastar!

V

Tajek passou dias no castelo preparando-se para o confronto contra Fanastar. O Deus do Fogo estava em sua montanha esparando pelo retorno de Tajek, mas ele veria um garono diferente.

Kenard o fez um verdadeiro cavaleiro. Tajek nunca antes tinha vestido armaduras tão pesadas, acostumado somente com no máximo cotas de malha. Sentiu-se lerdo com elas. Aprendeu muitas táticas de guerra que nunca imaginara, nem mesmo com anos de experiência matando trolls e homens-cão no Deserto Oriental.

- A divindade que adoramos em Agmor é Elenna, a Deusa da Justiça e do Amor. Não temos medo de deuses tiramos! - disse Kenard.

- Mas, o que vai acontecer depois que Fanastar morrer? - perguntou Tajek.

- Você terá em suas mãos a Tocha Que Não Se Apaga, a fonte de poder do Deus do Fogo. Como Cavaleiro de Agmor, caberá a você decidir o que fazer com ela: destruí-la ou usá-la.

- O que vossa majestade faria?

- O senso de certo e errado é algo que vem de dentro, bravo Tajek.

Com todo o preparo e treinamento, Tajek estava pronto para enfrentar Fanastar. Sabia que sua morte era provável, mas nem garonos e nem Cavaleiros de Agmor e Elenna têm medo da morte.
Foi-lhe dado um corcel da raça mais veloz de Agmor. Tajek deu-lhe o nome de Taru. Garonos nunca foram amigos de cavalos e nunca desenvolveram uma cultura ao redor desses animais. Mas Tajek gostou de Taru e viraram bons amigos.

Não foi dado-lhe somente o corcel, armadura e armas, mas muitos itens úteis. Foi enchida uma mochila inteira para sua viagem. Havia ração, tochas, cordas e muitas poções mágicas de revigoramento.

Antes de sair de Tynsgard, porém, não pôde deixar de visitar um amigo que havia feito na cidade. Mais uma vez bateu na porta da oficina de Mestre Toras.

- Nildo está? Preciso de meu leal escudeiro.

Nildo não tinha uma armadura nem uma espada. A única arma que encontrou foi uma adaga velha que achou no porão. De qualquer forma, não seria a sua força que o destacaria na jornada, mas sua destreza e esperteza, além do seu enorme coração.

- Tenho uma dívida com o senhor, senhor Tajek! - disse o garoto.

E partiram naquela tarde. Tajek galopando, Nildo sentando atrás como uma criança (a diferença de estatura era grande).

Conforme rumavam em direção ao oeste, viram a Montanha do Fogo, morada de Fanastar, se erguer no horizonte. Não era mais o palácio de um deus, mas o covil de um bruxo. O mago Edrel, Kenard e todos os sábios da corte sabiam que Fanastar era uma ameaça a Agmor. Mas Tajek era o único capaz de derrotá-lo, o único bravo o bastante.

Depois de dias viajando, finalmente chegaram ao pé da montanha. Nildo teve calafrios pois embora houvesse um deus morando no cume (o que já era, no mínimo, incrível) era sinistramento quieto.

Tajek ouviu uma voz cruel no ar, um sussuro.

- Fanastar... É claro que ele sabe que estamos aqui... - disse Tajek.

Passaram um dia inteiro procurando por uma entrada secreta. Não gostavam da ideia de ter que escalar tudo. Mas essa pareceu ser a única opção afinal.

Entretanto, enquanto tiravam de suas mochilas as ferramentas de escalada, foram surpreendidos por um personagem agourento. Portava uma lança e vestia um capuz negro, mas viram que a pele de seu rosto era queimada.

Mas o garono era ágil, mais do que qualquer emissário das trevas. Antes de Nildo ter qualquer reação, Tajek já desarmava o inimigo, quebrando a lança com sua espada e pondo-a no pescoço do adversário.

- Quem é você? - gritou Tajek – Diga!

A figura vilanesca lentamente removeu seu capuz, revelando o grotesco rosco cheio de cicatrizes, a carne que um dia já foi queimada lhe dava uma aparência inumana, mas em seus olhos havia um brilho de vida.

- Fui enviado pelo meu mestre! - disse a criatura, homem ou não.
- Leve-nos até ele, ou sua vida terá um final doloroso. - respondeu o garono.

A criatura se levantou e virando-se para a encosta da montanha, fez um gesto com as mãos (não muito diferente dos feitos por Edrel). Houve um tremor e um barulho de rocha se quebrando e então, na parede da encosta, revelou-se uma caverna estreita.

O servo de Fanastar apontou para a passagem.

- Sigam este caminho. O meu mestre estará esperando por vocês. Espero que tenham uma morte-

- Calado! - foi interrompido por Tajek que mal podiam esperar para enfrentar o Deus do Fogo, ansioso por uma batalha de verdade – Você virá conosco. Não cairemos em armadilhas.

Caminharam, então, os três pelo corredor sombrio e apertado recém-formado. Conforme prosseguiam e subiam degraus e atravessavam corredores, a temperatura foi aumentado e em pouco tempo era como se estivesse em uma câmara infernal. Também animado em testemunhar a batalha entre deus e bárbaro e ver seu mestre vencer, o servo de Fanastar não hesitou em mostrar a Tajek e Nildo o caminho até o salão real.

Tajek sentiu uma presença maligna crescendo.

Chegaram a uma câmara espaçosa e bem iluminada. As tochas nas paredes revelavam as paredes cheias de manchas de sangue, havia correntes por todo os lados. Havia também uma enorme diversidade de armas, desde espadas até lanças e chicotes.

- A armaria e prisão – disse o servo que depois apontou para uma porta ao lado – Sigam naquela direção e chegaram ao meu mestre.

- Agora saia daqui! - disse Tajek.

Não fosse pelo enorme peso que já carregava, Tajek carregaria mais escudos e uma armadura ainda mais resistente pois sabia o que estava prestes a enfrentar. Nildo teve vontade de levar uma das espadas, mas mal conseguia levantá-las.

Ouviram, de repente, um choro vindo de um canto da armaria que transformou-se em um grito de socorro. Tajek apressou-se para conferir, sempre prevenido com sua espada.

Viu um homem, ou melhor, um elfo, amarrado em um canto sujo. Suas roupas eram trapos e seu rosto estava sujo de sangue. Seu olhar era de dor.

Tajek o reconheceu.

- Edrel? Edrel, o mago elfo! - ele disse.

Mas o elfo não respondeu, parecia que não conseguia falar.

- Vamos ajudá-lo? - disse Nildo, garoto piedoso mas prevenido contra possíveis perigos, característica que aprendeu com seu cavaleiro.

- Ele é Edrel, um clecionador de artefatos. Nossos caminhos se cruzaram em Tynsgard. Mas o que estará fazendo aqui neste calabouço eu não sei...

- Exatamente o que sempre faço – o elfo respondeu, finalmente liberando sua voz seca e nada angelical tão comum aos elfos – Estava buscando tesouros nestes salões. Estou preso aqui há dois dias.

- Mas você disse que não queria se intrometer com o Deus do Fogo.

- Dias atrás eu mudei de ideia e decidi entrar em suas masmorras. Usei minhas melhores magias, mas acabei sendo capturado. As relíquias que aqui existem estão entre as mais valiosas em todo o continente.

- Vamos libertá-lo, senhor Tajek? - disse Nildo.

Tajek olhou para o elfo que jazia no chão, ensanguentado, um monumento de esplendor caído. Os garonos são valentes e crueis com seus inimigos, mas têm muita bondade nos seus corações.

- Eu confio nele. Estamos no mesmo lado – disse Tajek – Vamos libertá-lo.

Desacorrentaram o pobre elfo, tão ferido que nem seu metabolismo élfico era capaz de curá-lo. Mas Tajek deu-lhe uma de suas poções de cura que carregava na bolsa e Edrel com um gole já conseguiu sentir os efeitos, o líquido revitalizando todo o seu corpo. Logo era capaz de ficar em pé por conta própria, sentindo-se bem melhor.

Estavam prestes a enfrentar Fanastar, que os aguardavam depois da próxima escadaria. Tajek sacou mais uma vez sua espada e ergueu seu escudo. Nildo se escondeu atrás de seu parceiro.

Edrel os acompanhou.

- Você... - começou Tajek.

- Lutarei ao seu lado. Você salvou minha vida, garono.

- Assim como salvou a minha – disse Nildo.

Os três guerreiros subiram a escadaria que onde em seu fim havia uma intensa luz, como o de uma fogueira.

Estavam mais uma vez diante de Fanastar. O Deus do Fogo tinha em seu rosto uma expressão de ódio. Não deixaria os três saírem da sua montanha vivos e garantiriam uma morte dolorosa a eles.

Ao seu lado, seus servos estavam armados com todos os tipos de armas.

- Tajek, filho de Talok! Por que não cumpriste tua missão? - disse o Deus do Fogo e Vingança.

- Acho que você é quem precisa aprender uma lição, Fanastar – disse Tajek, confrontando seu inimigo sem hesitação – Você tem espalhado caos por todo este continente há milhares de anos. Você se diz digno de portar a Tocha Eterna, mas você não tem direito de exercer a sua vingança. Seu reino acaba agora.

- Ah, tolo! E tu pensas que é dono da justiça? Kenard o trouxe de volto, não é? Os agmorianos são todos animais estúpidos, sempre foram. Não sabem o que é certo e errado, eles são os que pensam ser donos da verdade. Mas eu possuo a maior verdade que há, garono, o poder! E com o meu poder, posso exercer minha vingança contra quem eu bem entender.
Impaciente o discurso de Fanastar, Tajek foi o primeiro a atacar. E o fez com a agilidade que só um garono tem. Puxou sua adaga real, cortesia dos melhores ferreiros de Kenard, e a jogou com toda a força na direção do Deus do Fogo. A adaga cravou profundamente no ombro do deus, fazendo-o soltar um grito estridente de dor que chacoalhou todo a montanha.

Todos os seus servos partiram para cima de Tajek, Nildo e Edrel.

Nildo escondeu-se, incapaz de lutar contra tais adversários tão superiores em força e tamanho. Tajek correu para cima dos inimigos com sangue nos olhos, sensação que não tinha há muito. Cortou muitas cabeças naquela batalha. Edrel distribuiu bolas de fogo e também feitiços gélidos, congelando os soldados de Fanastar somente para que Tajek os decapitasse impiedosamente.

Ainda abalado pela dor física, sensação esquecida por Fanastar, o Deus do Fogo removeu a adaga do seu ombro e a jogou no chão.

Tajek olhou Fanastar nos olhos e desesperou-se. O cruel deus preparava uma magia poderosa, ele pôde notar.

- Morram! - disse Fanastar.

- Nildo, a Tocha Eterna - gritou Tajek para Nildo, bolando um plano desesperado.

O garoto foi rápido e percebeu o que Tajek queria.

Mas teve que ser mais rápido para se correr ao encontro de Tajek e se esconder atrás de seu escudo, pois Fanastar havia conjurado uma gigantesca labareda de fogo.

Parecia que todos queimariam naquele inferno, pois o calor da magia de Fanastar era mortalmente quente. Mas então o fogo cessou, e eles perceberam que haviam sido salvos por Edrel, que conjurara um feitiço de proteção. Um enorme escudo invisível tinha sido formado em frente aos três heróis.

- Nildo, pegue a Tocha – disse Tajek – Vá! É o ponto fraco dele!

O fogo cessou. Edrel desabou, sua magia élfica consumia sua energia vital. Fanastar, enquanto isso, preparava outra magia, ainda mais poderosa.

Tajek apressou-se, tinha que ser rápido.

- Elfo, me faça voar...

Edrel, ainda fraco, compreendeu a ideia de Tajek e, usando suas últimas forças arcanas, fez o garono levitar como uma pluma e com a velocidade de um raio em direção a Fanastar, que ainda prepara seu ataque. Com sua espada, Tajek atravessou o peito do Deus do Fogo com toda a força e Fanastar, em seu último suspiro, cuspiu fogo ardente e caiu no chão.

Nildo levantou a Tocha Eterna com dificuldade, mas o seu fogo havia diminuído.

Os três chegaram perto do corpo de Fanastar que jazia no chão, ainda se contorcendo em seus últimos reflexos. Era o cadáver de um deus, um deus morto.

VI 

O Deus do Fogo continuava vivo, mas seu nome era Tajek e ele cavalgava pelas pradarias do reinos, carregando sua tocha e sua espada.

Rei Kenard o aconselhara a ouvir seu coração e fazer o que achasse que devia fazer à Tocha Eterna, fonte de poder do Deus do Fogo. E Tajek ouviu seu coração e em seu peito valente de guerreiro garono havia a chama da justiça que crescia dentro de seu ser. Não mais era um bárbaro do Deserto Oriental que acreditava não existir nada de importante além de sua tribo, era agora um Deus do Fogo pois carregava a Tocha Eterna aonde quer que fosse.

E estava sempre acompanhado de seu leal companheiro, Nildo.

Depois da morte de Fanastar, os dois, dando um adeus a Edrel, galoparam com Tarok ao Deserto Oriental, mas tudo que encontraram foram ruínas do que um dia já foram as aldeias garonas.

Encontram poucos sobreviventes em assentamentos isolados entre os desfiladeiros.

Ficaram sabendo que o Senhor dos Cães com seu exército havia aniquilado maior parte do povo garono. Naquele dia, Tajek chorou por todos os mortos e jurou vingança. Agora era o Deus do Fogo e da Vingança, e não descansaria até destruir o Senhor dos Cães.

Desesperou-se ainda mais ao saber que Bekka, sua esposa, tinha sido raptada pelos homens-cão. Certa noite, enquanto descansava em seu acampamento, Tajek recebeu a visita de um Falcão Vermelho, raça treinada pelos garonos para a caça e para a troca de mensagens, que lhe contou (Tajek entendia a linguagem dos Falcões Vermelhos) que Bekka estava sendo mantida prisioneira no castelo do Senhor dos Cães.

Na manhã seguinte que recebeu a mensagem, Tajek estava pronto para partir e resgatar sua esposa e não esperaria para que Nildo terminasse sua refeição.

VII

Cavalgaram velozmente para o oeste. Tajek ficou sabendo que o covil do Senhor dos Cães ficava em uma ilha no meio de um lago de água venenosa e que para chegar lá teriam que enfrentar os mais atrozes monstros que habitavam aquela parte do deserto.

Mas não precisaram fazê-lo, pois no caminho até lá encontraram um importante aliado.

Era um homenzinho, do tamanho de uma criança, de barba ruiva, muito musculoso. Vestia uma túnica e um avental. Encontraram-no no meio do nada, concertando uma estranha máquina que nem Tajek nem Nildo haviam visto antes, uma espécie de carroça de ferro mas sem nenhum cavalo.

Tajek o reconheceu assim que se aproximou.

- Brodda? - ele o indagou.

O homenzinho se virou e olhou Tajek nos olhos.

- Tajek! Nildo! - a figura barbuda disse.

Era Brodda, o Anão. Fora o companheiro de muitas aventuras de Tajek nos meses que se seguiram depois da morte de Fanastar. Apresentou o garono a muitas tecnologias, como o relógio de pulso e a máquina fotográfica. Um dos mais brilhantes membros de sua espécie, o anão Brodda era um dos poucos a deixar o conforto apertado e escuro da sua cidadela subterrânea de Truzurak para visitar o mundo dos homens e elfos.

- O que faz aqui? - Brodda perguntou.

- Eu que pergunto, amigo. Que troço é esse?

- É um automôvel – Brodda disse com um sorriso orgulhoso no rosto – Nova invenção de meu povo. Eu estava dando uma volta com ele quando de repente o motor pifou. Estou tentando dar um jeito...

- Motor? O que é pifar?

- Esqueça. Estará pronto em uma hora. Acomodem-se e me digam para onde estão indo.

Depois de contarem toda a história (inacreditável) ao anão, Tajek e Nildo estavam prontos para partir, agora dentro do veículo, que era enorme, tão grande que cabia o cavalo Tarok dentro.

- Não vamos precisar temer o ataque de nenhuma criatura. Além de ser extremamente rápido, este meu trator está equipado um bom arsenal de mísseis!

- Mísseis? - Nildo perguntou.

- Como flechas, só que mais poderosas.

O veículo era de fato mais rápido do que o mais veloz dos corceis e deslizava velozmente pelo solo rochoso do deserto.

Não demoraram para chegar ao infâme lago venenoso de que haviam ouvido falar.

- Então, planejam atravessar este lago?

- Sim.

- Bem, vão precisar de uma carona!

- Não será preciso, Brodda. Não preciso envolvê-lo nesta aventura, não desta vez. Além do mais, precisamos de um barco para atrevssar toda essa água.

- Já passamos por muito, Tajek. E pelo o que me disse, esta é sua aventura mais importa. E fique sabendo que este meu veículo se dá muito bem na água.

O anão pisou no pedal de aceleração e o veículo jogou-se contra a água e começou a afundar lentamente para o desespero de Nildo e Tajek. Mas o anão, conhecedor de seus artifícios, apertou um enorme botão vermelho no seu painel e o carro armadura começou a subir, lentamente, de volta a superfície e então a flutuar como uma pluma sobre a água.

- Esta minha invenção é cheia de segredos! Agora, vamos continuar – disse Brodda.

- Tem certeza – interrompeu Tajek – que deseja me acompanhar até o covil do Senhor dos Cães?

- Estarei ao seu lado, Deus do Fogo! - disse Brodda.
E acelerou, atravessando o verdadeiro mar de água tóxica que se estendia por quilômetros. Uma neblina densa cobria tudo, mas conforme foram progredindo, avistaram o castelo do inimigo em uma ilha no meio do lago e era uma visão de terror.

Tajek percebeu a atmosfera que ali pairava. Não era só o Senhor dos Cães que habitava naquele castelo. Havia algo mais...

O veículo do mestre anão finalmente atingiu a praia. Saindo do carro, o grupo vislumbrou melhor a gigantesca construção que emanava medo à sua frente. Havia um colossal portão de cor escarlate, parecia indestrutível.

- Como vamos entrar? - disse Nildo.

- Tive uma ideia – Brodda foi correndo ao veículo.

De repente, uma voz cruel cortou o ar. Não havia mais som algum, apenas as palavras sussurrantes que diziam:

- Está prestes a enfrentar seu maior desafio, garono...

Nildo tremeu de medo. Até Tajek teve calafrios.

Brodda, como estava dentro do seu carro, não ouviu nada mais que um sussurro abafado. Dirigiu mais alguns metros a frente e com o apertar de um botão lançou um míssel em direção ao enorme portão vermelho que bloqueava a entrada ao castelo.

O míssel viajou como uma flecha até o seu alvo, detonando em uma explosão de fogo e fumaça, fazendo o chão tremer. Tajek sacou sua espada, mas logo ouviu o riso do anão vindo de trás.

- Mísseis! Como eu tinha dito! Agora vamos lá! - o anão disse.

O grupo continuou rumo ao seu maior desafio.

VIII

O interior do castelo era escuro e frio, como uma catacumba. Mesmo a luz das tochas não pareciam ser párea contra a escuridão que os envolvia. Tajek então lembrou-se de um presente deixado por Edrel, seu amigo elfo, e que ele havia guardado em sua bolsa.

- O Cristal de Lorenán – Tajek ergueu a belíssima pedra de cor azulada e, recitando palavras que ele mal conseguia, ela acendeu, emitindo uma fortíssima luz e revelando todo o ambiente em que estavam.

- Nunca pensei que o Senhor dos Cães tivesse um covil assim – disse Brodda.

- Eu sinto que não é só ele que mora aqui – Tajek disse com uma expressão preocupada no rosto.

Havia magia negra naquele castelo e era muito mais sinistro do que os calabouços da montanha de Fanastar.

Subiram muitas escadas e atravessaram muitas portas, algumas exigiram fortes empurrões, outras um complicado jogo de abrir fechaduras. Chegaram a descobrir muitos tesouros, entre ele sum baú com peças de ouro (que Nildo guardou para uso futuro) e alguns armas velhas. Outros baús eram guardados por homens-cão, esqueletos ou goblins.

Encontraram inclusive um mapa em uma mesa em um cômodo que parecia ser, ou que um dia já fora, uma cozinha. O mapa os salvou de muitas horas de exploração, pois graças a ele o grupo enfim chegou à sala mais importante em todo o castelo: a sala do trono do Senhor dos Cães.

Era guardada por um enorme porta, não tão grande quanto a da entrada do castelo, mas era da mesma cor, um intenso vermelho escarlate, um portão infernal.

Brodda desejou ter seus lança-mísseis naquele momento, mas não precisou. Antes mesmo de tentarem sequer empurrar a grande porta, houve um som de ranger e ela abriu-se por si só.

O que viram na sala do trono os chocou.

Havia, sim, um trono, mas quem o ocupava não era o Senhor dos Cães. Este estava, na verdade, no chão, com os olhos revirados e sangue saindo de sua boca. Era o Senhor dos Cães que Tajek conhecia, seu mesmo rosto feroz de cão e vestia até seu casaco feito de pele animal. Mas estava morto.

Quem ocupava o trono era um homem, não sabia se eram um rapaz ou um velho pois parte de sua pele parecia podre, mas tinha cabelo loiro e longo e vestia-se bem.

Tajek sacou sua espada, Brodda a sua besta e Nildo a sua adaga.

De trás das colunas saíram vários homens-cão, liderados não mais pelo antigo mestre, mas, aparentemente, pelo novo ocupante do trono.

- Bem-vindos – o personagem misterioso disse – Eu sou o Rei Filósofo.

- Eu iria perguntar se é amigo ou inimigo, mas acho que não preciso – Tajek disse.

- Podemos ser amigos! – o Rei Filósofo riu.

Estalou os dedos e dois homens-cão, que mais pareciam estar sob ação de um hipnose, trouxeram uma jaula sustentada por rodas que carregava uma pessoa muito querida por Tajek dentro.

- Bekka, minha esposa! - o garono gritou.

A pobre mulher, outrora uma valente guerreira garona, estava abatida e mal se sustentava de pé. Como se não bastasse, estava quase que totalmente despida.

- Solte-a! - Tajek protestou.

- Tente lutar, tenho um dos meus escravos com uma lança apontada para a gargante de sua esposa – o Rei Filósofo apontou para um homem-cão que estava em posição de desferir um golpe contra o pescoço da garona – Eu só desejo conversar.

- Afinal, quem é você? - perguntou Brodda.

- Como já disse, me chamo Rei Filósofo, embora outros tenham apelidos diferentes para mim. Meu verdadeiro nome eu me esqueci. Sou só uma pessoa que procurou muito e encontrou mais. Estou aqui para desafiá-lo, Tajek.

- Vou matá-lo se continuar me enrolando... - disse Tajek, furioso – Diga-me o que quer!

- Quero que renuncie ao seu poder. Abandone seu cargo de Deus do Fogo. Ou será que você cobiça tanto o poder, Tajek?

- A única coisa que cobiço é ver sua cabeça em uma estaca!

- Pense bem, Tajek, por que está aqui? Você derrotou o Deus do Fogo em nome da justiça e da bondade, mas acabou tomando o seu lugar e agora está aplicando a mesma vingança que Fanastar aplicava. Não seja cego, Tajek. Estou aqui para abrir seus olhos. Renuncie ao seu cargo como Deus do Fogo!

Tajek parou por um segundo, refletindo sobre as palavras ditas. Mesmo vindas de um criatura tão detestável como aquela, pareciam fazer sentido.

Tajek abaixou sua espada, um olhar pesado em seu rosto. O Rei Filósofo sorriu.

- Então, garono, vai desistir de sua carreira divina?

Tajek, então, olhou para o Rei Filósofo.

- Eu posso não ser digno de ser o Deus do Fogo, mas no fundo, eu ainda sou um garono. E garonos não abaixam suas armas e nem fogem de uma luta! - Tajek gritou.

Brodda, institivamente, pareceu entender um sinal na voz do companheiro que mandava atacar. Com sua besta, disparou na garganta de um dos homens-cão que guardava a sela de Bekka.

Em um impulso, outro homem-cão que também vigiava Bekka rapidamente cravou sua lança no ombro da mulher garona, fazendo-a gritar de dor, o sangue jorrando e escorrendo pelo seu braço moreno. Mas aquele homem-cão não demorou muito, flecha de besta no crânio.

Começou uma brutal batalha ali naquela sala do trono, muito parecida com a que havia acontecido na montanha de Fanastar. Mas dessa vez Tajek tinha mais motivos para lutar, pois ali estava sua amada.

Brodda atirava insanamente com sua besta, derrubando homens-cão como um velho anão guerreiro faria. Tajek nunca estave tão furioso, chegando quase a babar. Até Nildo jogou no chão sua adaga e sacou sua espada curta, cortando e rasgando os inimigos.

O Rei Filósofo, observando o caos do qual não se prepara, se contorcia de pavor.

Nildo, em meio ao caos da batalha, libertou Bekka, ainda fisicamente abatida, mas furiosa por dentro como qualquer garona. Já fora de seu apertado cativeiro, pôs as mãos na primeira arma que viu: um das lanças que um homem-cão morto carregava.

A fúria de Bekka em combate era comparável a de Tajek e ela era mais ágil e ainda mais precisa em seus golpes.

O Rei Filósofo, confrontado com o destino trágico e patético que teria, gaguejou duas ou três palavras de ordem que não valeram nada em meio a algazarra sangrenta que se instalara na sua sala do trono.

Tentou fugir, mas não foi longe. Brodda acertou em cheio uma flecha em sua perna e o homem loiro caiu no chão, gemendo de dor.

Não houve uma palavra final, não houve nenhuma cena épica. O fim do Rei Filósofo foi pela lâmina cruel de Tajek, que o perfurou impiedosamente com sua espada, uma visão brutal. O Rei Filósofo cuspiu sangue e mais um líquido escuro e então seu cadáver começou a derreter, soltando um chero insuportável.

- Bruxo ou demônio... vá para o inferno! - Tajek disse.

Mas depois de concluir sua frase, Tajek sentiu um golpe nas costas. Só não caiu no chão por conta do seu físico divino e dos poderes mágicos que protegiam seu corpo, mas quando se virou viu que era um homem-cão, ainda sob o efeito da bruxaria hipnotizante que o controlava, que cravava suas costas com uma lança.

Tajek o derrubou com um golpe só. Era aquele o último deles.

Não festejaram a vitória, pois Bekka logo percebeu que Tajek estava ferindo e sangrando.

- Esposo, está ferido – ela disse se aproximando..

- Vamos sair daqui – Tajek respondeu.

- Tajek, o seu irmão, Utsu – Bekka disse.

- O que?

- Ele está morto. E teve uma morte horrível nas mãos do Rei Filósofo – Bekka começou a chorar com a lamebrança.

Tajek chorou. Garonos não têm medo de lágrimas.

Olhou para trás e viu os restos liquefeitos do que já foi o Filósofo e desejou cuspir neles. Mas não o fez. O trabalho estava feito.

Bekka ainda tinha seu braço sangrando. Mesmo doendo, não se importou pois estava concentrada na batalha. Graças a uma poção de cura, a última, teve sua ferida cicatrizada e curada.

Tajek tocou nas costas, estava sangrando muito. Todos olharam para o Deus do Fogo, como se já soubessem o que iria acontecer.

IX

Deixaram o castelo, agora não mais que um calabouço escuro e amaldiçoado no qual nunca mais desejavam retornar.

Atravessaram o lago venenosa com o veículo de Brodda em seu modo anfíbio. Bekka e Nildo em vão tentavam estocar o sangramento, mas o machuado parecia ter ido fundo demais.

Tajek tocou a mão de Bekka. A mão do garono estava fria como gelo e sua face branca. A chama que queimava em si estava se apagando.

Chegando ao outro lado, o grupo resolveu montar acampamento e descansar. O sol estava se pondo no horizonte laranja.

Ao pé de uma fogueira, os heróis se sentaram ao redor de Tajek que deitava no chão.

- Meu marido... - Bekka disse, suas lágrimas pesadas.

Nildo tirou seu gorro em honra ao homem que um dia o salvou do ataque de um urso feroz. Brodda lamentou perder um humano digno de chamar amigo.

Então, depois de um silêncio, Tajek ergueu seu braço pálido e enfiou a mão na sua enorme bolsa, fuçando. Era a Tocha Eterna, ainda ardendo, embora em um fogo fraco e pequeno, incapaz mesmo de criar luz.

Entregou o item divino à sua esposa. Bekka não soube o que dizer.

Tajek olhou para o lado e viu uma figura apagada, como um fantasma. Era o seu pai, Talok, e tinha um sorriso no rosto.

- Não deixe a chama se apagar – disse Tajek fracamente, voltando seus olhos para a esposa.

Passou a Tocha para Bekka e a chama lentamente começou a ganhar mais força e cor, tornando-se um laranja vibrante como o céu sob suas cabeças. E houve calor, um calor que percorrou a todo o corpo de Bekka, fazendo-a regalar o olhos e abrir a boca em espanto com o novo poder.

Tajek fechou os olhos e deu seu último suspiro.

Mas as lágrimas que haviam de ser derramadas já tinham sido esgotadas e não houve mais tristeza naquela noite e nem nos dias seguintes, pois havia morrido uma lenda e nascido outra.

Os heróis partiram na manhã seguinte. Brodda foi em seu veículo e despediu-se de Bekka e Nildo assim que chegaram à Cordilheira de Tanzar, casa da Oitava Tribo dos Anões, povo de Brodda.

A garona e o jovem de Tynsgard continuaram galopando pelas terras do continente, em busca de aventuras e de oponentes dignos. Mas mesmo a Nildo ela teve que se despedir quando chegaram em Tynsgard.

Mas Nildo tinha então uma grande história para contar, de um guerreiro do deserto que se tornou o Deus do Fogo e da sua esposa, a Deusa do Fogo, cavalgando pelo mundo com o cavalo Taru, matando trolls e dragões.

FIM