5 de junho de 2017

O Julgamento

Piauí, 1918

Foi descoberto que Maurício, o negro que levou um tiro, estava de namoro com a filha do Coronel Silvestre. Este dizia que Maurício havia invadido sua propriedade.

"Não sou odiador de negro", disse o Coronel no dia do julgamento, "minha filha do meio, a Anastácia, tem caso com um rapaz de cor mas que é trabalhador".

Aí então foi revelado que esse namorado de Anastácia era ninguém menos que o próprio Maurício, que havia penetrado na fazenda do Coronel apenas para ver sua amada.

Um tiro na coxa, rapaz quase morre.

Silvestre brigava com sua filha, "por que não me contaste?", e ela dizia que o pai era um tolo desatencioso.

O advogado de defesa de Silvestre era ninguém menos que Júlio. Vinte e cinco anos, recém formado, jeito de maricas mas peito de homem (quando ele estufava).

No dia do julgamento, um lado do júri gritava "enforca o preto bandido", e o outro gritava "prende o Coronel e deixa ele na sala solitária por dois meses." Este último grupo era na maioria formado pela família de Maurício (era grande; ele tinha seis irmãos, quatorze tios e trinta e nove primos; mas eles todos não estavam lá) e os pobres da região que sofriam nas mãos do Coronel Silvestre (este fazia voto de cabresto).

O outro grupo era do lado do Silvestre, é claro, e eram muito racistas.

O advogado que defendia Silvestre era um homem baixo e gordo, mas de olhar furioso. Na hora de falar, o que ele disse foi: "O réu Maurício é acusado de invadir a propriedade do Sr. João Silvestre da Silva, além de estar em relacionamento com uma moça branca. Isso não é crime onde vivemos, pelo menos não no papel, mas todos aqui sabem que gente branca e negra não dão certo juntas. Por isso, acredito que o jovem... marginal... Maurício merece o enforcamento."

Uma porção do júri aplaudiu. Júlio disse: "Isso é ridículo! Maurício não tinha a intenção de roubar nada ao adentrar na propriedade do Coronel, tudo que ele queria era ver a Anastácia. E relacionamentos como esses aqui não são crimes de forma nenhuma, nunca foram. Poucos apoiam isso, compare a composição do júri. Eu não defendo a prisão de Silvestre e muito menos a morte de Maurício! Mas sim eu acredito que vinte mil contos de réis seriam o bastante para deixar Maurício e sua família felizes."

Aplausos. O juiz pede por silêncio.

É hora do júri votar... composto por cinquenta pessoas, quarenta e um votaram para a proposta de Júlio, apenas oito defenderam o enforcamento de Maurício.

Com a ajuda da democracia e da boa defesa, Maurício foi liberto. Ele não continuou o namoro com Anastácia, mas pegou seu dinheiro e se mudou com a família para a Bahia.

Silvestre resolveu ergues altos muros ao redor de sua fazenda. Anastácia só foi namorar de novo aos trinta e cinco anos!

Quanto a Júlio... algumas semanas depois ele começou a visitar bares e se embriagar. Em uma bairro ordinário de Teresina, ele disse a um velho que mal o ouvia: "eu livrei um negro da cadeia porque o povo daqui não é racista. Sabe o que é engraçado? É que poderia muito bem ter sido o contrário. É o mundo em que vivemos, assim pensamos, é nossa verdade..."

Bebeu um gole.

"Sabe o que ainda é mais engraçado? Que o negro desgraçado nem me agradeceu!"

E desmaiou de bêbado!

FIM

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