29 de fevereiro de 2020

Dor de Dente


Renan pôs a mão na bochecha. Um dos seus molares doía fazia uma semana, uma dor quase insuportável. O pior era o barulho da maquininha do dentista que não acalmava em nada os pobres coitados na sala de espera.

Eram quatro. Renan era o que tinha mais medo de dentista. Lembra-se da primeira vez que foi quando ainda era garoto e de como ficou traumatizado com a agulha. Desde então tem cuidado bem da saúde bocal, mas mesmo assim conseguiu uma cárie. Outro era uma mulher de uns quarenta anos que tinha trazido o filho. Renan observou como estava aflita a criança, coitadinha. Ao lado da mulher havia um homem barbudo e que usava um estranho chapéu. Renan achou seus jeitos muito peculiares. Além desses, tinha outro homem sentado no canto, lendo uma revista com uma expressão séria.

O silêncio reinava, interrompido de vez em quando pela maquininha.

- Mãe... - o garoto disse.

- Não dói, filho – a mãe respondeu.

Renan fechou os olhos. Em momentos como esse, aprendera que devia buscar ajuda interior. Nunca foi uma pessoa religiosa. Quando cresceu, resolveu se afastar desse meio (crescera entre católicos) e abraçar o freethought. Mas havia situações que sua mente cutucava a Renan e lhe mandava pedir socorro a alguma divindade ou força superior. Renan acreditava ser instinto humano.

Renan abriu os olhos e viu o menininho com as palmas coladas, quase riu, achou cômico.

- Não reze em vão, menino. - a mãe disse.

- Rezar ou não rezar... não adianta nada. - o homem no canto que lia uma revista interrompeu.

- Besteira. - a mulher disse baixinho.

- Besteira? - o homem continuou – Diga isso às vítimas de desastres!

Renan colocou a mão na testa. Lá vamos nós, ele pensou. Uma discussão teológica havia se iniciado e ele só estava preocupado com o tamanho da agulha que o esperava.

- Como é que você pode viver sem Deus? - a mulher continuava.

- Bem, sou ateu e aqui estou! - o homem respondia.

- Vocês discutem e discutem mas a verdade é que são todos infiéis – o homem do chapéu peculiar de repente falou, era na verdade um muçulmano – Só existe um Deus.

- Eu sei e acredito nisso – a mulher disse.

- Vocês cristãos na verdade creem em três deuses e só fingem acreditar em um. É ridículo. Jesus não é Deus, é um profeta somente!

A discussão continuava. Um lado atacava a qualidade do deus de um, o outro lado atacava a falta de fé do outro. Era uma guerra, na verdade. Renan olhou para o garotinho e o viu ainda rezando, dessa vez com mais intensidade, falando mil rezas por segundo.

De repente, todo o barulho cessou quando a porta se abriu e de dentro do consultório (ou sala de operações, para os mais temerosos) saiu um rapaz com um lenço sobre a boca, expressão de dor.

- Lembre-se de cuidar dos dentes daqui em diante! - o dentista disse, logo atrás – Muito bem, quem é o próximo?

Todos na sala de espera se entreolharam, estavam mudos, e então o homem ateu se levantou e entrou na sala para sua realizar sua extração.

Renan observou claramente o semblante no rosto do ateu antes de entrar na sala. Era medo.

Assim que a porta se fechou, a mulher olhou para o garotinho e disse:

- Vamos rezar, filho, vamos rezar.


19 de fevereiro de 2020

O Guardião


Talion olhou para o enorme sol que se preparava para desaparecer no horizonte. Era uma luz tão forte e intensa que mesmo o elfo não conseguiu contemplá-la por muito. Talion virou-se para o homenzinho atrás de si, riu e disse:

- Sinto-me seguro aqui.

O homenzinho riu em resposta. Era baixo e coberto de pelos. Girek era como Talion, último membro de sua raça, mas não passou tanto da sua vida em solidão já que aldeia em que estava era muito bem habitada. Talion, por outro lado, passou sua juventude entre a nobreza élfica no seu planeta natal, Andor, agora uma ruína. Porém, a maior parte de sua vida viveu em fuga, fugindo de todos que cobiçavam o seu maior tesouro.

Girek apontou para a chave negra pendurada no pescoço de Talion e disse:

- Fyrumir, a chave que abre os portões de Qiratun. Que bom que você nunca a perdeu, Talion. Fez bem vir até meu planeta, ela está a salvo aqui.

- Tenho certeza que Fyrumir está segura – Talion respondeu, tocando o objeto em seu colo – Todos os grandes impérios do universo já caíram e todos os meus vilões já foram derrotados.

O rosto de Talion, outrora angelical e perfeito, era agora cheio de cicatrizes de batalhas e de marcas de velhice. Talion tinha milhares de anos. Havia visto tanto. Viu Andor em seu esplendor máximo, mas também assistiu sua queda. Lembra-se bem do dia em que seu pai, um dos maiores cientistas do planeta, confiou a ele e seus irmãos a chave Fyrumir. Talion não gostava de lembrar o que levou a queda de seu mundo, ou talvez de tão traumatizado se recusava a lembrar, mas sabia que não haveria salvação para o seu povo. Ele e seus irmãos foram obrigados a fugir com a chave.

Não demorou até terem que enfrentar inimigos. Caçadores de recompensas, saqueadores, fanáticos, reis com sede de poder. Todos atrás da chave. Talion foi o último que sobrou dos irmãos, todos os outros foram mortos ou desapareceram. O último elfo por muito tempo viajou, na maioria das vezes só ou de vez em quando com uma companhia indesejável, pelo universo. Não tinha destino, apenas fugia de seus vilões.

Talion sempre soube o que estava em jogo: a sobrevivência do universo. Caso alguém colocasse as mãos em Fyrumir, seria possível abrir todas as portas de Qiratun. Um poder ancestral e incomensurável adormercia lá, um poder há muito esquecido pela maioria, mas que os elfos de Andor conheciam bem. Foram eles que, muito antes do avô de Talion nascer, haviam o aprisionado no planeta. Imperadores galáticos, cheios de cobiça, almejavam tão poder. Tolos, Talion pensava, não tinham ideia da destruição que trariam a todo o cosmos.

Mas não só a Fyrumir os vilões perseguiam, mas ao próprio Talion também. O último de sua raça, o elfo era o único que conhecia as exatas coordenadas espaciais de Qiratun. Sem Talion, Fyrumir seria inútil. Talion aacreditava que era por causa disso que tinha conseguido sobreviver por tanto tempo.

Mas agora estava finalmente em paz. Depois de milhares de anos, Talion finalmente podia descansar no planeta de Girek. O planeta gélido tinha longas noites e o dia era banhado por um fortíssimo sol, uma enorme estrela vermelha, que quando tocava sua luz na superfície do planeta, evaporava toda a neve. Mas as pessoas daquele vilarejo eram de natureza serena, pacifistas como Girek.

Talion sabia que não precisava mais se preocupar, pois não havia mais inimigos na sua cola.

Ou assim ele pensava. O passado ainda perseguia o viajante elfo. Ainda havia uma figura sombra atrás de Fyrumir. Arzeg, ou O Caçador, como era chamado por alguns, era o último da linhagem real do Império Negro. Assim como Talion, Arzeg teve seu planeta destruído e todo o seu povo dizimado. Na sua juventude, o jovem imperador useu de todos os seus recursos para perseguir Talion, mas não teve sucesso. Tornou-se obcecado em por suas mãos em Fyrumir, tanto que ele abandonou o trono, levando o seu mundo a uma guerra civil e seu império galático à ruína.

Arzeg não desistiria até ter a Fyrumir.

Anos se passaram no planeta de Girek e Talion, tão seguro que não confrontaria mais nenhum adversário, teve que lutar uma última vez. Uma nave pousou na distância, além das montanhas. Um dos aldeões que morava afastado da vila veio alertar a Girek e Talion sobre uma figura sombria que estava causando terror nas proximidades.

- Será que... - Talion disse, olhando para Girek.

O elfo levantou-se e armou-se com seu rifle de plasma, arma que já usara muitas vezes para derrubar inimigos das mais diferentes espécies pelas galáxias.

Talion rezava para que não fosse nada. Em seu instinto, porém, sabia que alguém procurava pela Fyrumir.

Arzeg a procurava. Há milhas dali, O Caçador montava em seu talurun, um réptil ágil e de presas afiadas, comum naquela região da galáxia, uma besta treinada para farejar seus alvos e destroçá-los impiedosamente. O animal perfeito para Arzeg.

O talurun ergueu o focinho, apreensivo.

- Sentiu alguma coisa? - Arzeg falou ao animal – Vá, mas não o mate. Preciso dele vivo.

A besta partiu velozmente, sua boca cheia de uma saliva pegajosa, faminto, embora fosse ciente das ordens de seu mestre.

O talurun soltava rugidos uma hora ou outra, sinais de terror.

Talion ouviu os sons que a criatura soltava. O elfo sabia que não tinha acabado, a perseguição não tinha acabado. Mas estava prestes a ter um fim.

Talion posicionou-se no centro da vila. Os aldeões, assustados, não faziam ideia de qual era a fonte daquele som tão bestial. Os habitantes do planeta, em suas vidas pacíficas, não conheciam predadores.

- Fiquem em suas casas. É perigoso aqui – Talion disse, preparando sua mira.

Ao longe, surgindo entre as fendas da montanha que se erguia ao pé do vilarejo, a figura de Arzeg montado em seu réptil aparecia, um emissário do medo.

O talurun soltou um último estridente rosnado. Arzeg, observando quem o esperava no centro do vilarejo com a ajuda de um binóculo, riu.

O Caçador gritou com todas as suas forças:

- Eu vou ter o meu tesouro, Talion! Eu vim pegar a chave de Qiratun!

O elfo andoriano não moveu um músculo, permanecia parado como uma estatua, sua mira travada no inimigo, dedo no gatilho.

O talurun partiu para o ataque. A criatura era rápida como um raio, cada passo seu era um salto e ele e seu montador se aproximavam rapidamente.

Arzeg também sacou sua arma, uma pistola de plasma, antiga mas letal.

Cada pisada era um terremoto. Talion começou a tremer, não tremia assim há muito tempo.

Arzeg se aproximava. Justo quando Talion estava querendo esquecer a como usar um rifle de plasma.

O monstro escamoso abriu sua boca. O elfo atirou, duas vezes, acertou em cheio.

O réptil de outro mundo tombou, sua boca ainda aberta, mas ao invés de uma pegajosa saliva, de dentro dela saia sangue. A criatura estava morta.

Talion suspirou, alívio. Sentiu seu coração bater forte, seu corpo tremia, uma sensação que não sentia desde o tempo que fugia dos exércitos do Lorde dos Insetos, o antigo Imperador de Andrômeda.

Olhou para os pés que tremiam. Quando voltou os olhos à besta caída aos seus pés, viu Arzeg se erguendo.

- Elfo...- Arzeg rosnou.

Talion apontou seu rifle. Um tiro na cabeça, ele pensou. Apertou o gatilho, mas não funcionou. A munição de plasma havia acabado. Estava só ele e Arzeg, e seu insano perseguidor não hesitaria em matá-lo.

Arzeg preparou-se para atirar com sua pistola, mas naquele momento, um tiro o acertou no ombro. Mas não fora Talion quem o disparou. Quando o elfo olhou para trás, viu o velho Girek com uma pistola de plasma.

- Corra, Talion! Fuja, como sempre o fez! - disse o ancião.

O elfo sabia aonde ir. Deixou a cena, um tiroteio a laser, e foi à sua nave. Era um velho cargueiro YTK-2200 da época do Quinto Império Feridiano, estacionado longe de onde Talion estava. O elfo sabia da destreza de Arzeg, tendo o enfrentado muitas vezes no passado, então apressou-se. A força física e agilidade élficas eram notórias, mas Talion estava demais cansado e despreparado para um combate. Sabe-se lá em que nível de poder Arzeg se encontrava.

Tropeçando em pedras, o viajante estelar correu, desviando de disparos lasers enquanto ouvia o grito assustador de seu perseguidor. Virando a cabeça de vez em quando, Talion tinha o vislumbre sinistro de Arzeg atirando descontroladamente em sua direção, um sorriso sádico em seu rosto.

- Eu não quero matar você, Talion! - ele gritava – Só pretendo derrubá-lo, e então pegar a chave e descobrir onde fica Qiratun.

Talion tinha milhares de anos e o peso da idade e dos anos de fuga enfim alcançaram ele. Sentiu, talvez pela primeira vez, uma fadiga verdadeira, digna de um raça inferior. Seus ossos doíam e seu corpo tremiam. Enquanto corria, tocou na chave pendurada de seu pescoço. Ninguém iria pôr as mãos nela.

O elfo olhou para o céu: o grande sol vermelho brilhava ardente.

Finalmente, ele se aproximava da nave. Mas antes de conseguir entrar em seu cargueiro, um tiro acertou Talion, na coxa. Talion gritou, nunca tinha gritado tanto daquele jeito. Pela primeira vez em muito tempo, sentiu uma dor verdadeira.

Mas não sentiu-se derrotado. Entrou no cargueiro e notou que Arzeg não disparava mais. Sua munição havia se esgotado e sacara uma lâmina negra. Em sua face havia um sorriso diabólico.

Talion foi rápido em entrar na espaçonave feridiana e decolar antes que Arzeg se aproximasse. Mas O Caçador não desistiria. Tinha sua própria nave esperando por ele do outro lado da montanha.

No espaço, Talion olhou para o planeta de Girek, agora um mundo alaranjado que se tornava cada vez mais distante. Ele não permitiria que Arzeg o capturasse e nem a chave. Passou tanto tempo protegendo aquele objeto que não via mais pelo o que lutar, não havia mais sentido em nada. Aquela seria sua última batalha, e Talion a venceria.

Travou as cordenadas da nave em direção ao sol vermelho. Talion sabia que não era só a localização daquele sistema em região não mapeada que tornava o planeta um bom esconderijo, mas era também por causa daquela estrela. A gigante vermelha tinha um núcleo extremamente denso, as temperaturas eram altíssimas na superfície. Os elfos andorianos tinham conhecimentos das propriedades únicas daqueles corpos celestes, somente eles poderiam destruir a Fyrumir.

Arzeg vinha logo atrás, sua nave, um verdadeiro caça de combate, era muito mais rápida e não demoraria para alcançar o desgastado cargueiro que carregava Talion e a Fyrumir. Ao perceber o plano do elfo, Arzeg rangeu os dentes.

O caça, armado com dois poderosos lasers, disparou e acertou em cheio a nave feridiana, fazendo-a chacoalhar. Talion sentiu o tremor, mas já não se preocupava.

Coordenadas travas no alvo. O Guardião da Fyrumir, em seu último ato de heroísmo, acionou os motores de dobra e a nave cortou o espaço em direção ao enorme sol escarlate. O cargueiro não precisou nem chegar perto da estrela e toda sua lataria já estava derretida. Com o impulso dos propulsores, o resto foi jogado para frente em velocidades próximas da luz e tudo que estava na nave, incluindo Fyrumir e seu protetor, foram dizimados.

Poucos segundos depois de se jogar contra a estrela, Arzeg, em total desespero, fez o mesmo, acionando seu sistema de dobra espacial e atirando-se contra a colossal esfera de plasma.

Assim terminou a história da Fyrumir, a lendária chave que abriria as portas de Qiratun, e de Talion de Andor, seu guardião. Nunca mais se ouviu falar sobre a mística chave ou sobre o planeta esquecido, a não ser na forma de uma lenda boba contada para crianças.

Mas há quem diga que em Qiratun o poder dos deuses ainda resida, esperando para ser despertado.


7 de fevereiro de 2020

A Jornada de Tatá


Tatá não estava gostando nada das mudanças em sua vida. Tinha acabado de completar catorze anos e ia se mudar do conforto de sua vida urbana para o interior. Mel, a mãe de Tatá, não parava de falar no tal Sítio dos Ferreira, um lugar que ela iria gostar muito. Mas Tatá não gostava de mudanças drásticas. Não gostou e nunca se conformou com a morte do pai anos antes, perda que afetou a garota profundamente. Também nunca aceitou o padrasto, Seu Ferreira, dono do sítio para onde se mudariam. Um homem ríspido e severo, nada parecido com o que a menina esperaria de um novo pai.

Mas ela respirou fundo e seguiu em frente. Tinha seu violão, presente deixado pelo pai. Tatá era apaixonada por música, encontrando nos acordes e nas melodias e letras lindos hinos que falavam das maravilhas do universo e da vida, fonte de grande felicidade para a menina. Mas Seu Ferreira não gostava nada do apego da menina pela música e nem parecia apoiá-la. Na verdade, o padrasto parecia apenas tolerá-la, o que magoava bastante Tatá. Porém, demonstrava afeto com Mel, mulher que encantou seu coração duro.

Chegando ao sítio, teve que conhecer melhor sua vida nova e se habituar àquele cotidiano. Seus novos irmãos já tinha conhecido: Bruno, rapaz que imitava o pai em seus modos e que chegava a ser ainda mais rígido e amedrontador, Débora, outra que puxou Seu Ferreira, e havia Luana, a caçula e último fruto do relacionamento de Seu Ferreira com sua finada esposa. Um doce de garota de dez anos, Luana foi a única de seus novos irmãos que demonstrou apego por Tatá e a única deles que ficaria do seu lado do começo ao fim dessa história.

Outra figura muito importante na jornada de Tatá foi Beto, garoto de dezesseis anos que trabalhava no sítio com os cavalos. Mas muitos o chamavam de Mestre dos Cavalos, pois ele tinha uma facilidade enorme em montar e domar os animais. Tatá o conheceu em uma manhã de sábado enquanto lia um livro debaixo um pé de manga. Ele surgiu de dentro do mato, um cavaleiro cheio de valentia e coragem. A vaidosa e delicada Tatá o viu cavalgando enquanto segurava uma pequena flor vermelha que ela logo reconheceu como a que ela sempre usava na orelha.

O Mestre dos Cavalos se aproximou:

- É seu?

- Sim. Obrigada. - Tatá disse, devolvendo o adorno ao seu lugar.

- Sou Beto, o Mestre dos Cavalos.

- Sou Tatá.

Ele se virou, sorrindo, e foi embora. Tatá o viu partindo com um sorriso tímido no seu rosto de menina. Beto foi uma das melhores coisas que viriam a acontecer a Tatá, mas ficaria ainda mais emocionante para ela.

Infelizmente, nem tudo era tão bom quanto os momentos ao lado do Mestre dos Cavalos. O relacionamento com a maioria das pessoas do sítio era muito difícil para tanta. Muitos ou pareciam não gostar ou eram muito distantes. O pior personagem de todos foi o seu padrasto. Seu Ferreira foi se mostrando ainda mais intimidador, chegando a proibir Tatá de tocar seu instrumento em sua casa.

- Eu não gosto desse violão. Saia daqui! - ele dizia.

Tatá não entendia o motivo de tanta raiva. Como alguém poderia odiar algo tão bonito? Mas ela não procurava entender, só procurava conforto. Sua mãe parecia cada dia mais distante. Era como se Dona Mel não tivesse mais olhos para a sua filhinha, só para a sua nova vida como esposa do rancheiro. Bruno e Débora não ajudavam, mal falavam com a garota e quando o faziam era com hostilidade. "Sua burra", diziam, "você não é dessa família". A pequena Luana era um ombro amigo, mas mesmo assim, havia momentos que ela fugia para o mato e chorava a tarde inteira longe de todos.

Ficava imaginando como seria se seu pai estivesse ali e se tudo fosse diferente.

No sítio, porém, em meio a tudo isso, Tatá conheceu mais uma pessoa bondosa e sábia para contrastar com todo o resto que lá morava, Dona Chica. Tia de Seu Ferreira, a senhorinha passava o dia em casa costurando, assistindo televisão e conversando. Ela serviu como voz da razão muitas vezes, embora nem sempre pudesse aconselhar Tatá da maneira certa.

Contou-lhe muito sobre as história do sítio, e isso era o bastante em momentos de tristeza para Tatá pois ela podia se distrair com contos fantásticos, coisas que a interessavam bastante.

Dona Chica contou-lhe, inclusive, da história dos gnomos que, segundo a lenda, moravam no sítio. A avó de Dona Chica contava-lhe tais histórias. Os gnomos são pequenos e ágeis, criaturinhas de pele verde que moram na Vila Cogumelo em um lugar secreto no sítio.

- Eles só podem ser vistos por pessoas de um bom coração ou então por quem eles acharem que deveria vê-los. – dizia Dona Chica para a atenciosa Tatá – Os gnomos são criaturas mágicas. Mas é só uma história boba, minha filha.

Tatá, amante de livros desde pequena, achou a lenda fascinante. Em contraste com sua rotina em casa, ela desejou muito que os gnomos fossem reais e que ela pudesse viver na Vila Cogumelo. Ao contar tais pensamentos à mãe, foi confrontada por Bruno, que tirou sarro do que ele considerou um delírio, magoando ainda mais Tatá.

Mas as coisas estavam prestes a mudar. Em uma certa noite triste, ela testemunhou uma briga entre Seu Ferreira e sua mãe, o motivo ela não compreendeu por completo, mas envolvia os afazeres no sítio e a situação econômica da família. O pior: viu de perto seu padrasto gritar com Dona Mel e viu sua pobre mãe acuada de medo. Inconformada, a valente Tatá se pôs entre Mel e o rancheiro.

- Pare de gritar com ela! - Tatá disse.

- Saia daqui, menina! - ele respondeu.

E ergueu sua mão, como se fosse dar um tapa em Tatá, mas foi parado por Mel. O resto da briga Tatá não viu, pois foi correndo para seu quarto, em prantos. Arrumou sua mochila apressadamente e pegou seu violão. Lembrou-se de se despedir de Luana, sua irmãzinha, com um beijo na testa.

Tatá não pretendia voltar. Saiu pelo mato, correndo, nem sabia para onde ir. Só queria fugir de tudo aquilo, ir para um lugar onde tudo fosse melhor, talvez encontrasse uma forma de voltar à sua vida antiga quando vivia com seu pai e sua mãe. Ou mesmo ir parar na lendária Vila Cogumelo, onde moram, segundo a história de Dona Chica, os gnomos, um lugar cheio de alegria.

Tatá então correu e correu, lágrimas no rosto, violão na mão. Estava escuro e já nem conseguia enxergar as luzes das casas de tão distante que estava, mas felizmente a lua brilhava clara naquela noite.

Achou uma clareira e decidiu sentar em um tronco velho. Em um acesso de raiva, Tatá se levantou, pegou seu violão e o chocou contra o tronco inúmeras vezes. Bateu contra o tronco como ele fosse Seu Ferreira, como se fosse Bruno, como se fosse os trabalhadores do sítio que a tratavam com grosseria, como se fosse todos os males do mundo. E quando se deu conta, seu violão estava em pedaços, o instrumento que o seu pai havia lhe dado estava destruído.

Tatá caiu de joelhos e chorou. E suas lágrimas tocaram o chão.

Naquele instante, Tatá estava entrando em um mundo novo, como se seus desejos se tornassem realidade. De repente, ela parou de chorar. Tudo ficou silencioso, mesmo os grilos se calaram. Tatá sentiu algo ao redor, uma presença.

Ouviu um som entre as árvores, um farfalhar agressivo de folhas. Havia algo se aproximando, e rápido!

Tatá saltou de medo quando viu uma figura saindo de dentro do mato. Toda a sua angústia tinha ido embora pois só o que a garota tinha era espanto. Tratava-se de uma criaturinha de forma humanoide, mas bem pequena, do tamanho de uma criança, nariz grande e gordo, sobrancelhas grossas, pele verde. Vestia um gorro e uma túnica, era parecido com um personagem de um conto medieval (Tatá conhecia tais figuras de livros que tinha lido na infância).

- Fuja, ele está chegando! - a criaturinha disse com uma voz fofa.

O homenzinho verde voltou a correr e tomou a mão de Tatá que continuava achando estar sonhando. Os dois correram, mas Tatá não tinha ideia do quê. Então, houve um rugido de fera, de monstro, e a menina se arrepiou e passou a correr ainda mais rápido. Quando olhou para trás, Tatá viu algo que a deixou ainda mais espantada: uma figura da altura de um homem adulto, muito escura e de olhos vermelhos e garras gigantes. Não era mais um sonho, era um pesadelo!

- O que é isso? - ela perguntou, mal podendo falar.

- Um orc – o homenzinho disse – À propósito, eu sou Bolin!

Bolin, que apesar do tamanho não parecia demonstrar tanto medo quanto Tatá, enfiou sua mãozinha numa bolsa que carregava na cintura e a remexeu por um segundo com a língua para fora até encontrar algo. Olhou para trás carregando um punhado de pó vermelho e jogou nos olhos do monstro perseguidor, fazendo a criatura parar e por mãos cheias de garras no rosto, dolorido.

Bolin e Tatá pararam, ofegantes.

- O que houve? - a garota perguntou.

- Pó vermelho, os orcs detestam! Mas sabe o que eles detestam ainda mais?

Bolin mais uma vez levou sua mão à bolsinha que carregava e tirou uma flauta e começou a tocá-la. Uma melodia encantadora saiu do instrumento. O orc, ainda chorando de dor, levou tirou suas mãos dos olhos e as levou aos ouvidos. O monstro foi embora, apavorado.

- Eles odeiam ainda mais música. Mas ele vai voltar. Temos que ir embora. Quem é você, garota humana?

- Sou Tatá – a menina respondeu – Moro neste sítio.

- Você é o primeiro humano que consegue nos ver em muito tempo! Quando eu te vi na clareira, imediatamente reconheci que você podia me perceber por conta do seu olhar de assustada. Você está bem?

- Não. Eu só quero um lugar onde possa me sentir bem, eu estava fugindo de...

- Ora! - Bolin a interrompeu – Vamos para a minha vila! Nós gnomos somos bem hospedeiros, e você parece ser uma boa humana!

- Você é um gnomo, então?!

Agora fazia tudo sentido. As histórias de Dona Chica eram reais e havia gnomos e outras criaturas vivendo no sítio. Isso ou Tatá estava realmente sonhando.

Os dois partiram rumo à Vila Cogumelo. Não foi um viagem muito longa até lá. Bolin, um gnomo vivido, conhecia os caminhos da mata do Sítio dos Ferreira, lugar onde a sua espécie habitava há muito tempo. Tatá percebeu que, conforme seguia ao lado de Bolin, era como se ela estivesse entrando em um portal para uma dimensão diferente. Havia magia no ar, uma atmosfera encantada os cercava e ela logo percebeu que estava em uma versão paralela do Sítio.

Chegaram, enfim, à Vila Cogumelo. A vila era composta de várias casas esculpidas no interior de gigantescos cogumelos, Tatá nunca tinha visto fungos tão grandes. E havia muitos. A única casa diferente era feita de pedra e ficava no centro da vila, mais parecia um castelinho. Lá, uma multidão de outros gnomos que, como Bolin, eram verdes e pequeninos (Tatá era mais alta que todos) se acumulava. A multidão estava ao redor de um gnomo velho e que usava trajes bem mais elegantes.

O nobre gnomo velho o saudou.

- Bem-vindo de volta, Bolin, que bom tê-lo aqui. Teve sucesso em sua jornada?

Bolin se ajoelhou. Tatá percebeu que tratava-se de algum monarca. Os gnomos todos a admiravam, mas o rei continuava encarando Bolin.

- Vossa Majestade, sinto informar que não consegue o resto da melodia.

- E quem é esta humana? - o gnomo disse, olhando para Tatá.

- É Tatá, Vossa Majestade. Ela é uma humana que vive neste Sítio. Ela disse que precisava de um lugar para ficar.

O rei gnomo aproximou-se de um grupo de gnomos que pareciam fazer parte de um clero e começou com eles a cochichar. Pareceram chegar a uma conclusão depois de alguns segundos.

- Ela pode ficar conosco esta noite. Amanhã, decidiremos o destino da humana Tatá.

Como as casas-cogumelo eram muito pequenas para que Tatá coubesse nelas, a menina foi obrigada a dormir do lado de fora da casa de Bolin, sob um amontoado de folhas.

Na manhã seguinte, ela ficou sabendo mais sobre o reino mágico que havia descoberto. Puk, o rei dos gnomos, estava preocupadíssimo com a ameaça que havia surgido contra seu povo. Grokomel, o líder do exército dos orcs, maiores inimigos dos gnomos, estava preparando um novo exército para atacar a Vila Cogumelo e acabar de uma vez com toda com as criaturinhas verdes que habitavam o Sítio.

- Os orcs odeiam nossa magia e odeiam música também, seja qual for o tipo. - Bolin explicou à Tatá assim que ela despertou - Eles vivem no subterrâneo do Sítio, em cavernas silenciosas e desprovidas de melodia. Eles também não sabem o que é amor, são criaturias terríveis.

- Como derrotá-los? - Tatá perguntou.

- Grokomel é o líder dos orcs e o mais poderoso de sua espécie. A única maneira de derrotá-lo é tocando a Canção do Amor.

- Canção do Amor?

- É uma canção mágica composta há muito tempo atrás por nossos ancestrais. É uma música tão poderosa que é capaz de acabar com todo o mal! Mas infelizmente não sabemos como tocá-la. Perdemos as cifras. Por isso eu estava correndo ontem. Eu, Bolin, fui designado para buscar as cifras que faltam. Temos apenas dois quintos da canção, eu tenho procurando pelo resto.

Tatá olhou para o chão, ponderando. Ela pensou em entrar em uma aventurar, participar de algo grande, talvez mesmo salvar a Vila Cogumelo dos orcs. Mas parecia estar pensando longe demais. No fundo, ela sentia falta de sua mãe. Não acreditava em nada daquilo, achava ainda estar sonhando.

Tatá levantou-se, mas assim que o fez, viu se aproximar rei Puk e uma grupo de gnomos.

Puk disse:

- Decidimos, jovem Tatá, que você seria de grande ajuda em nossa missão atrás das cifras que faltam. Nossos clérigos notaram que você possui uma grande força de vontade, o que é muito bom. E a sua capacidade de nos enxergar não é mera coincidência, apenas poucos humanos já foram capazes de ver nosso mundo.

- Você é música – disse Bolin – Eu vi seu violão quebrado na clareira. Se você conhece a música e seu poder, deve nos ajudar a salvar nossa vila, Tatá. Se não derrotarmos Grokomel e seus orcs, não só os gnomos serão destruídos mas também os humanos que moram no sítio!

Mas Tatá não queria ouvir nada daquilo. Estava entrando em um mundo muito perigoso, um mundo de monstros ainda mais aterrorizantes do que seu padrastro. Saiu correndo da vila. Todos os gnomos ficaram sem entender o motivo da sua fuga. A garota foi para o mato e sentou-de, os mesmos pensamentos de solidão retornaram à sua cabeça. Ela só queria que seu pai estivesse ali.

Era de manhã, o sol brilhava. Mas mesmo assim, Tatá deu de caras com uma figura maligna. Desta vez tinha a forma de um enorme cão de pele cinzenta e presas demoníacas. Tatá não sabia, mas era um warg, feras treinadas pelos orcs e que habitam suas cavernas subterrâneas mas que pouco a pouco estavam se acostumando com a superfície.

Tatá ficou petrificada, não sabia para onde ir. A garota começou a suar. O warg apenas a observava com a boca babando, olhos de fogo.

De repente, como se por intervenção maior, ela sentiu a presença da pessoa que mais amava: seu pai. Era como se ele estivesse ali, ao seu lado. Tatá pôde ouvir sua voz sussurrando uma canção em seu ouvido. As lembranças voltaram, uma canção que ela muito ouviu quando pequena. Tatá levantou-se e começou a cantar baixinho:

Minha menina
Você sabia
Que eu amo muito
Essa sua carinha

Ela nem terminou de cantar, bastou alguns versos e o cão começou a se contorcer de dor. Saiu correndo, com o rabinho entre as pernas. Naquele momento, Tatá percebeu o verdadeiro poder que tinha de combater o mal, o poder da música.

Ela não mais teria medo, desde que tivesse esse poder consigo.

Tatá retornou à Vila Cogumelo de cabeça erguida. Aproximou-se do rei Puk e disse:

- Vamos destruir Grokomel e os orcs!

E todos os gnomos festejaram aquela decisão pois tinha mais uma aliada.

O resto do dia foi de preparativos, pois Bolin e Tatá sairiam em uma jornada atrás das três cifras que faltavam para completar a Canção do Amor. Tatá também aproveitou para conhecer melhor a Vila Cogumelo e a cultura dos gnomos. Ela inclusive experimentou a torta de sapo, iguaria entre os pequeninos verdes mas que não agradou nada a garota.

- Nenhuma criatura no mundo gosta de torta de sapo, só os gnomos! - disseram.

Bolin explicou que a primeira cifra que procurariam estava com Guka, uma criatura antiga que vivia em uma lagoa no sítio. Embora tivesse uma descrição assustadora, Bolin explicou que Guka era na verdade um ser gentil, mas um tanto que sensível, e que não gostava muito de ser perturbado. O pior era que a cifra, escrita em um pergaminho dourado, estava em sua barriga!

Quando chegaram na pequena lagoa de água escura perdida no meio do sítio, não encontraram nem sinal da tal criatura aquática. Tentaram chamá-lo pelo nome, mas nada. Foi quando Tatá teve uma ideia.

- Vamos atrair o seu olfato!

Tatá tirou de sua mochila um pedaço da nada apetitosa torta de sapo que havia guardado mais cedo. Exposta, a preciosidade culinária dos gnomos teve forte impacto em Guka, que até então residindo no fundo da lagoa emergiu rapidamente, o que causou grande espanto tanto em Bolin quanto em Tatá.

Guka tinha um longo pescoço como o de uma girafa, mas sua cabeça era como de um dinossauro. Seu corpo era gordo e pesado e se movimentava com nadadeiras. Tinha uma aparência ameaçadora, mas mostrou-se inocente e delicado.

- Hmm, o que vocês têm aí? - disse Guka – Tem cheiro bom!

Tatá e Bolin taparam seus narizes com as pontas dos dedos ao mesmo tempo que fingiam um sorriso.

- É torta de... - Tatá ia revelando o sabor da torta, mas resolveu mudar para algo mais apetitoso afim de convencer Guka – Torta de maçã!

- Hmm, muito bom! Me dê!

Abriu seu bocão e Tatá jogou o pedaço da torta dentro. Guka mastigou e mastigou e então engoliu. Tatá ficou espantada, achou que ele tinha adorado. Mas passou-se alguns segundos e a sua expressão mudou de "muito satisfeito" para "não me sinto bem".

Ouviram um som, um estrondo poderoso. Era a barriga do monstro que se remexia em negação à horrendo comida que havia recebido.

- Ótimo plano, Tatá! – Bolin disse.

- Estou enjoado... - Guka disse.

Houve um estrondoso arroto saído da boca da criatura. Foi seguido por um vômito nojento, um líquido amarelado jogado em direção à Tatá e Bolin que por pouco não foram atingidos.

Guka irou-se, mas garantiu que não se vingaria dos dois por conta do sua intoxicação recém-adquirida e retornou ao fundo da lagoa.

O vômito estava esparramado na beira da lagoa. Entre os conteúdos da bile estava latinhas de refrigerante, botas velhas, peixes, a própria torta de sapo e algo muito especial: um pergaminho dourado!

Bolin abriu e lá estavam as cifras. O gnomo dançou de alegria e tocou sua flauta em comemoração.

- Graças à sua ideia, Tatá! - ele disse

- Mas como foi parar na barriga dele? - Tatá disse.

- Deve ter comido algum gnomo que o carregava há muito tempo. O importante que você foi de grande ajuda. Agora faltam dois pergaminhos.

- Onde está o outro, então?

Bolin ganhou um olhar severo. Ele fechou os olhos e respirou fundo, como se o pior pesadelo passava em sua mente.

- Está com Baba Yaga, a Bruxa do Charco! Tatá, a pior parte de nossa aventura começa aqui. Esta bruxa é amiga dos orcs e muito perigosa. Devemos ter cuidado, ela vai tentar nos transformar em grilos!

Tatá se arrepiou, mas não teve muito medo pois sabia que tinha a música do seu lado.

Como já estava tarde, decidiram acampar ali perto. Passaram a noite cantando e contando histórias à beira da fogueira.

Tatá sentia falta da sua mãe e se perguntava se ela estaria sentindo falta dela naquela hora. Mas sabia que ajudar os gnomos era algo muito importante e iria até o fim.

- Não tenha medo, Tatá, você é esperta e tem muito valor – Bolin disse, com sua voz sábia de gnomo – Mas a bruxa Baba Yaga é, como eu já disse, bem perigosa. Há muito tempo, ela roubou dois dos pergaminhos dourados contendo as cifras. Um deles ela mantém trancando em um baú em sua cabana e o outro ela destruiu assim que ensinou a cifra ao seu filho.

- Ela tem um filho? - Tatá perguntou, muito interessada em contos de fada.

- Sim, um filho muito mal. Mas dizem que esta pessoa não sabe que é filho de Baba Yaga e vive hoje entre os humanos.

Tatá ficou silenciosa, pensando na história. Não soube explicar, mas é como conhecesse aquele tal filho de Baba Yaga. Havia algo de familiar naquela história que a deixava intrigada.

Mas estava com tanto sono que não conseguiu pensar mais nesse assunto naquela noite e acabou adormecendo ao lado de Bolin.

No dia seguinte, partiram cedo. Enquanto se dirigiam ao charco (que ficava do outro lado do sítio), começou a chover. Em certo ponto da viagem, Bolin e Tatá tiveram que atravessar um campo e foi lá onde Tatá viu Beto, o Mestre dos Cavalos, montado em seu corcel.

- Tatá! Você está aqui! - ele disse ao vê-la.

Como era só um humano comum, Beto não viu Bolin. Achou que a garota tinha fugido e estava há dois dias procurando por ela. Beto falou da situação na família e como todos estavam preocupados e como Seu Ferreira estava irado com Tatá. A menina sentiu-se culpada por tudo aquilo, mas era muito tarde para voltar. Sentiu vontade de poder contar tudo a Beto.

- Você precisa voltar, Tatá – o rapaz disse – ou isso vai ficar pior tanto para você quanto para mim.

Agarrou seu braço e a puxou. Naquele instante, Bolin puxou sua flauta e tocou uma rápida melodia carregada de uma poderosa magia. Beto desgrudou do braço de Tatá e cambaleou por alguns segundos em um gesto de tontura. Esfregou os olhos e sentiu muita dor de cabeça. Ao abri-los, não via só Tatá ali, mas Bolin também.

- Mas o que?! - o Mestre dos Cavalos se assustou, sacando sua pequena faca – O que é isso?!

- É um amigo, Beto – Tatá disse – O nome dele é Bolin e é um gnomo. Estou ajudando ele em uma missão, estou fazendo algo muito importante e você não pode me parar. Agora entende?

- Gnomos... Eu só posso estar doido!

Beto montou rápido em seu cavalo e foi embora tão rápido como havia chegado, totalmente incrédulo.

- Por que usou sua magia nele? - Tatá perguntou ao gnomo.

- Mesmo que ele conte, ninguém nunca vai acreditar naquele garoto. Eu precisava dar um susto nele. Espero ter feito a coisa certa, Tatá.

- Fez sim, Bolin.

Mais uma vez, um pensamento estranho cruzou a mente da garota. E se Beto contasse ao Seu Ferreira sobre a criaturinha verde que acompanhava sua enteada? Por algum motivo, desde a conversa na noite anterior Tatá não tirava o seu padrasto da cabeça, como se ele fizesse parte daquela história.

Mas continuou mesmo assim a sua jornada. Chegaram, enfim, ao charco onde morava a bruxa. A chuva tinha ficado mais forte e logo tudo estava alagado. Tatá atravessou toda a água com ela batendo em sua cintura e teve que carregar o pobre Bolin nos braços, assim por vários metros.

Avistaram uma casinha e uma fogueira.

- É ali! - apontou Bolin.

A casinha ficava sob umas altas árvores em uma região plana do charco. Havia uma pessoa sentada em um banco na frente da casa e um homem muito alto em pé ao lado. Aproximando-se, Tatá viu que a pessoa sentada era uma velha de aparência terrível. Seus olhos eram amendoados, sua pele extremamente enrugada e seus braços muito finos. Tinha um sorriso sinistro no rosto. A figura ao seu lado era de um homem de dois metros de altura e que tinha olhos sem pupilas, um verdadeiro frankestein. O homem sem pupílas carregava um pequeno baú.

Ficou claro para Tatá que se tratava da temida Baba Yaga.

- Quem é? - a velha disse.

- Um gnomo e uma humana, minha senhora – o homem respondeu com uma voz grave e assustadora.

- Humanos e gnomos juntos? Não creio. São corajosos. Quem são vocês? Quero nomes!

- Sou Bolin e esta é Tatá. Atravessamos este sítio para buscar o que pertence aos gnomos por direito, um dos pedaços que faltam da Canção do Amor. Estamos dispostos a enfrentar suas mais cruéis magias.

- Magias? Não. Serei gentil. Sinto que conheço esta menina, ela tem cheiro familiar. Se querem o que esta neste baú, vão ter que me responder uma pergunta.

- Pergunta? - Tatá deixou escapar baixinho.

- Sim – Baba Yaga respondeu – Onde está a última cifra? A resposta errada trará consequências terríveis aos dois.

A velha riu maldosamente.

Bolin e Tatá passaram a tarde toda tentando encontrar uma resposta. Sabiam que só tinham uma chance de responder ou se não seriam transformados em carvão (isso é, torrados). Bolin não parecia ter ideia, tudo que o gnomo sabia era que ela havia ensinado as notas ao seu filho. Mas quem seria o filho?

Tatá tinha teorias. Pensou em todas as pessoas que conhecia no sítio. Seria Beto? Seria um dos trabalhadores? Seria a Dona Chica que tem tanto conhecimento dessas histórias? Ou seria Bruno ou Débora?

Pensou muito mas chegou finalmente ao que pareceu ser uma conclusão. Teria que ser a pessoa que ela mais associava com a maldade. A pessoa que havia feito ela fugir de casa.

- É o Seu Ferreira, o dono deste sítio – Tatá disse.

A velha Baba Yaga se levantou lentamente com a ajuda de sua bengala. Sorriu maliciosamente e apontou para os dois.

- Aí está seu tesouro. - ela disse.

O baú se abriu e dentro dele saiu o pergaminho dourado. Flutuando como uma pluma ao vento, foi aterrissar aos pés de Tatá, que o recolheu, cheia de suspeitas mas também aliviada. Mas o alívio era somente temporário.

- Não sairão de meu charco tão facilmente. - a velha bruxa deu uma risada de arrepiar e ergueu seu dedo ossudo para cima.

Das águas que os cercavam, vários lagartos atrozes emergiram, como dragões sem asas e de escamas negras que se rastejavam e colocavam para fora suas fresas afiadas e línguas vermelhas. Logo cercaram Tatá e Bolin.

O gnomo tocou sua flauta em uma tentativa de espantar os monstros, mas a magia não parecia ter efeito algum naqueles répteis que estavam chegando cada vez mais perto.

Tatá fechou os olhos. Ela pensou que tudo terminaria assim. Um estrondo, porém, rompeu a tensão mórbida do momento, pois havia chegado um herói para resgatá-los. Ele estava a cavalo e armado com uma espingarda.

- Beto! - gritou Tatá.

O Mestre dos Cavalos fez jus ao seu nome ao cavalgar com incrível habilidade o seu corcel. Ao mesmo tempo que galopava, o garoto atirava com sua espingarda, acertando os lagartos que futilmente mostravam suas presas em resposta.

Atrás de Beto, meia dúzia de cavalos trotavam a toda velocidade. Os répteis negros fugiram de medo dos animais, retornando assim ao fundo do charco amaldiçoado de onde vieram.

Tatá e Bolin saltaram de alegria. Beto e os cavalos pararam em frente a bruxa e seu sinistro servo. O Mestre dos Cavalos apontou-lhe o cano de sua arma.

- Vá embora! - ele disse – Nos deixe!

- Raios! Tenho que conseguir uma dessas para mim! - Baba Yaga disse batendo com o pé no chão.

Ela soltou um assobiou e uma vassoura foi de encontro à sua asquerosa mão. Montando sobre ela como se monta em um cavalo, a bruxa má levitou e foi embora, deixando o seu leal servo frankestein para trás que não viu outra opção se não seguir a sua mestra.

Beto baixou sua arma e olhou para Tatá, sorrindo.

- Obrigada por nos salvar – Tatá disse.

- Muito obrigado! - disse também Bolin.

- Moro aqui desde pequeno, Tatá. - falou Beto – Já ouvi todas as histórias de Dona Chica. Acho que no fundo sempre acreditei nelas.

Desceu de seu cavalo e aproximou-se da garota.

- Seja lá o que esteja fazendo aqui, você precisa retornar.

- Não se posso.

- Deve.

- Não...

- Todos sentem sua falta – Beto disse com uma voz meiga. E então, em um movimento inesperado, beijou Tatá na bochecha. A garota ficou vermelha.

- Preciso recuperar o resto da Canção do Amor, Beto. Sem ela não podemos derrotar o Rei dos Orcs, Grokomel.

O céu ficava nublado. O vento começava a soprar com força e a chuva era eminente.

- E onde está o resto desta canção? - perguntou Beto.

As primeiras gotas caíram pesadas nos ombros de Tatá. Ela olhou para trás, para o sul.

- Eu sei onde estão! - ela disse.

Era a hora do confronto final. Tatá não teria escolha senão enfrentar o seu maior antagonista, o seu próprio padrastro. Beto montou em seu cavalo e Tatá, que já tinha montado algumas vezes, tomou o seu. Bolin foi junto com a garota.

Naquele momento, um mensageiro chegou. Os gnomos não domesticavam cavalos por razões óbvias, mas sempre que um animal pequeno escapava do sítio, eles faziam questão de adestrá-lo. Assim, um gnominho jovem apareceu ao grupo montado em um porco.

- Mensagem para Bolin! - o gnomo disse sob a chuva que ficava cada vez mais forte – Nossos batedores avistaram um exército de orcs marchando rumo à Vila do Cogumelo! Eles vieram de suas cavernas subterrâneas e estão bem armados!

- Poxa, vida – disse Bolin – Se nós não recuperarmos a última cifra, não seremos páreos às forças de Grokomel. Tatá, precisamos fazer algo. Aquele exército logo vai se tornar mais poderoso e ser capaz de interagir com o mundo dos humanos e destruí-lo também!

O mensageiro entregou as notícias e logo partiu. Tatá pensou e pensou. Sua mente foi parar na coisa que havia começado tudo aquilo.

- Beto, vá para casa! Arme todos os homens de lá. Bolin, temos que voltar ao lugar onde nos conhecemos.

Cavalgaram por sob a chuva que já era grossa, quase uma tormenta. Era noite, ou pelo menos assim parecia já que estava tudo completamente nublado.
Os dois amigos pararam perto da clareira onde haviam se conhecido há três dias. No centro da clareira, perto de uma grande pedra pontuda, estava o velho instrumento que o pai de Tatá dera à sua querida filha. Ela se ajoelhou e suas finas lágrimas de frustração e mágoa se misturaram à água que caia do céu.

- Eu queria poder concertar... - ela disse.

Bolin aproximou-se com sua flauta e tentou uma canção, mas não conseguiu terminar o seu encantamento.

Tatá fechou os olhos. Ela conseguiu quase que ficar inconsciente. Era só o som da chuva e da persistente flauta mágica de Bolin. Então, não havia mais barulho. Tatá sentiu uma presença, uma presença boa e soube que era seu pai. A menina ouviu notas de violão, reconheceu o som das cordas e lembrou-se de quando seu pai o tocava.

Ela reconheceu a melodia. Tatá abriu os olhos.

- Eu vi! - ela disse, espantando Bolin e interrompendo sua flauta – Eu vi a quinta parte da Canção do Amor, ou pelo menos um pedaço dela.

Tatá ficou de pé e contra o som da chuva tentou expôr seu frágil canto de menina. Sua voz era agora um instrumento e ela tocou quase toda a Canção do Amor. A chuva recuou e ficou mais fraca, o vento parou e Bolin ficou de boca aberta, admirado com a beleza melódica daquela composição.

De repente, os pedaços do violão destruído começaram a se movimentar. Pouco a pouco, cada parte do instrumento foi se juntando à outra e assim eles foram se tornando um só.

Completo de novo, Tatá pegou seu velho amigo musical do chão. Como o pai de Tatá poderia ter sabido da canção era algo que Tatá não compreendeu no momento. Não se recordava de ter ouvido uma música parecida. Entretanto, não era a canção completa, ainda havia um pedaço e Tatá e Bolin sabiam onde encontrá-lo.

Montaram em seus cavalos e foram rumo à fazenda.

Bolin soltou um "essa não!" ao olhar para o horizonte e ver uma cor alaranjada tingindo os céus.

- Tochas dos orcs! O fogo deles é o mais forte que existe. Eles estão chegando! - disse o gnomo.

Enquanto isso, a Vila Cogumelo estava deserta pois todos os seus habitantes haviam se escondido nas cavernas secretas dos gnomos que só eles conhecem. Porém, seria apenas uma questão de tempo até serem encontrados por Grokomel.

Tatá e Bolin finalmente chagaram ao sítio. Descendo de seu cavalo, violão na mão, a garota deu de cara com Seu Ferreira que não estava nada feliz.

Dona Mel apareceu chorando e abraçou sua filha como nunca tinha abraçado. Era uma imagem comovente mas que foi logo quebrada pelas palavras duras de Seu Ferreira:

- Essa menina não tem vergonha! Meus homens quase morrem procurando por ela! Onde é que você tinha se metido, peste? Você vai apanhar muito!

Dona Mel protestou, mas Tatá não teve medo e olhou seu padrasto nos olhos. Saindo do conforto dos braços da mãe, ela se dirigiu a Seu Ferreira.

- Você não é quem pensa que é, meu padrasto – a garota disse – E eu não acredito que você seja todo maldade. Existe algo muito bonito escondido no seu coração.

- Mas que diabos é que você está falando? - Seu Ferreira retrucou, tirando seu cinto e preparando uma surra na menina.

Tatá ergueu seu violão e começou a tocar assim que ele deu o primeiro passo em sua direção. As primeiras notas não surtiram muito efeito, mas assim que a canção foi progredindo, Seu Ferreira mudou sua expressão. Passou de um rosto brutal e cruel para um melancólico sorriso de menino.

Deixou cair seu cinto e parou ali mesmo, contemplando a menina.

Todos ao redor ficaram encantados pela música. Terminada, Tatá disse:

- Só falta o resto.

- Eu sei – Seu Ferreira respondeu.

O padrasto a guiou até o celeiro. Foi a primeira vez que ele a tratou com um sorriso no rosto e as pessoas ao redor não compreendiam o comportamento de Seu Ferreira. No celeiro, debaixo de umas tralhas, Seu Ferreira descobriu um baú grande e velho e muito empoeirado.

Abrindo o baú, havia um violão.

- Meu antigo amigo – Seu Ferreira disse.

Abraçou sua enteada e beijou no rosto.

- Perdão, Tatá. Minha mãe, aquela bruxa, havia selado a bondade dentro de mim. Mas aqui estou. Vamos acabar com aqueles orcs.

Saíram de pé até o mato, carregando lanternas e os seus violões. Bolin, a quem Seu Ferreira podia ver agora, foi também.

- Faz tempo que não vejo um gnomo! - disse Seu Ferreira assim que avistou o pequenino verde.

Dona Mel não entendeu o que acontecia, mas chorou ao ver o pai e filha juntos como uma família. O Mestre dos Cavalos tinha sua espingarda, mas não havia ainda alertado os homens do sítio sobre a presença de um "exército de orcs", ideia demais ridículo.

Estavam bem distantes de casa, no meio de uma mata aberta. Tatá e Seu Ferreira viram aquela massa de monstros se aproximar lentamente. Bolin teve medo e se escondeu atrás de Tatá.

Os orcs eram ainda mais terríveis do que aquele que Tatá tinha visto há três dias. Estes estavam vestindo armaduras e portando lanças e escudos, verdadeiros guerreiros. No meio deles, se destacava um orc bem maior e que usava um capacete com chifres.

- Grokomel... - Tatá e Seu Ferreira disseram em conjunto.

- Eu sabia que esse dia viria quando eu ouvisse essa canção, Tatá – disse Seu Ferreira – No fundo eu sabia. Na minha juventude, eu me aventurei por este sítio entre gnomos e orcs. Não sei como fui deixar o lado mal vencer.

- Nunca é tarde para se redimir. - Tatá disse.

O exército se aproximou. Grokomel, que tinha dois metros e meio de altura e carregava um machado de batalha, se pôs na frente de Tatá, Seu Ferreira e Bolin.

- Dois vermes humanos e um miserável gnomo. – o orc riu – Não encontrei gnomos no seu patético vilarejo, mas em breve eu vou encontrá-los e materei todos. Agora, vou fazer uma visitinha ao mundo dos humanos. Não haverá mais barreiras. Assim que eu matar vocês dois, o homem do sítio e a violinista, o selo que deixa os humanos cegos ao nosso universo será removido e eu poderia enfim conquistar todo este lugar!

- Pai, toque! - disse Tatá.

Os dois músicos começaram a tocar, batendo com força nas cordas dos seus violões. As notas vieram como relâmpagos e tinham o som de trovões. O chão estremeceu e todos os orcs, incluindo seu líder, deram um passo atrás. Estavam com medo.

Bolin tomou coragem e se juntou à banda com sua flauta mágica, adicionando ainda mais poder à poderosa Canção do Amor. Alguns orcs começaram a tapar seus ouvidos e desabar de dor, mas os mais fortes se mantinham de pé.

Mas não era o bastante.

Embora sentisse seus músculos quase que paralisados, Grokomel arranjou forças para erguer seu pesado machado de guerra. Seria um ataque certeira na garota.

Nesse momento, ouve um outro estrondo. Fora mais um tiro de Beto, o Mestre dos Cavalos, montado em seu animal. Grokomel tocou seu ombro onde tinha sido atingido e viu o sangue negro escorrer pelo seu braço. O orc sentiu dor, e dor e música deixava sua raça com ódio.

Preparou mais um ataque, mas dessa vez não foi parado por uma balada, mas pela adição de mais um instrumento musical àquela orquestra. Beto revelou sua sofona, sua companheira em horas de solidão no sítio. Muito habilidoso, ele adicionou ainda mais força ao ritmo e à melodia daquela orquestra.

Grokomel sentiu-se fraco, seu corpo doía. Mas seu ódio por tudo que era bonito, por tudo que era bom e precioso era muito maior. Mais uma vez o Rei dos Orcs ergueu sua arma afiada, pronto para matar Tatá.

Mais sons surgiram. Outros cavaleiros, colegas de Beto, saíram das sombras. Alguns carregavam ukeleles, outros gaitas, outros tambores e um até tinha um triângulo.

Assim, mais pessoas do Sítio dos Ferreiras foram se juntando à Canção do Amor. Até mesmo Dona Mel surgiu, que junto com suas amigas, incluindo Dona Chica, aplaudiam sistematicamente contra o exército invisível de orcs.

- Vocês não conseguem ver, mas eles estão aqui! - dizia Dona Chica – Continuem fazendo música!

Os orcs começaram um a um a morrerem de agonia. Os cadáveres que caíam duros no chão com os olhos revirados derretiam e se transformavam em um vapor ácido.

Grokomel, em seu último suspiro, olhou para a orquestra e deu um último grito estridente e então caiu morto no chão. Derreteu, como os seus soldados, e aquele foi o seu último dia. Os orcs foram extintos.

Bolin, Tatá e Seu Ferreira cessaram com a música, e assim fizeram o resto daquele povo. Houve um silêncio, somente o som da chuva. Dona Mel abraçou sua filha, contente, sua pedra preciosa. Seu Ferreira juntou-se ao abraço e eram então uma família feliz.

Tatá não sonhou naquela noite. Não teve pesadelos e nem viajou para um mundo onírico cheio de fantasia. Já estava vivendo algo muito bom.

Na manhã seguinte, Tatá despediu-se de Bolin. Chorou e agradeçeu por tudo, contando até com um abraço emocionado na pequena criaturinha verde.

- Vou sentir sua falta, humana Tatá. – disse Bolin – Vou remover a magia que a permite nos enxergar. O rei Puk não aconselha que humanos interajam conosco por muito tempo. Mas se precisar de algo, cante uma música e eu vou aparecer!

E desapareceu na mata, saltitante.

Quanto a Beto, ele deixou os cavalos de lado por um tempo. Parecia ter ficado ainda mais interessado em sua sanfona depois de toda a batalha musical contra os orcs. Também passou a interessar-se mais em poesia e chegou a recitar uns versos para Tatá.

Certo manhã, enquanto Tatá lia um livro debaixo de um pé de mangá, Beto surgiu, o Mestre da Sanfona, das Flores e dos Poemas.

- Achei uma flor que combina com seus olhos – o rapaz disse, entregando uma rosa para Tatá.

Tatá ficou vermelha e fechou os seus olhos. Sentiu um beijo nos lábios. Quando os abriu, não havia mais Beto, só a rosa que ele deixara em sua mão. Não seria o último beijo que ela receberia daquele garoto.

Em casa, finalmente Tatá se sentia entre uma família. Não era assim fazia tempo. Tudo era alegria e havia união e amor. Bruno e Débora, embora ainda secos, pareciam ter se livrado da maldição que tinha origem em Seu Ferreira, assim como todos os outros no sítio que tratavam Tatá mal. Seu Ferreira todo dia agora era um pai de verdade para Tatá. Pai de três, Débora, Tatá e Luana, o homem era todo sorriso e sempre tocava uma música com sua enteada antes de dormir.

Algumas vezes, Tatá despertava de manhã e parecia que tudo era um sonho, que tudo era de mentira. Como se fosse bom demais para ser verdade. Ela se pergunta constantemente se toda história dos orcs e gnomos não era produto da sua imaginação. Mas assim que se sentava na mesa de jantar junto à sua família, ela se sentia completa. Era tudo verdade, uma fantasia verdadeira.

FIM