Tatá não estava gostando
nada das mudanças em sua vida. Tinha acabado de completar catorze
anos e ia se mudar do conforto de sua vida urbana para o interior.
Mel, a mãe de Tatá, não parava de falar no tal Sítio dos
Ferreira, um lugar que ela iria gostar muito. Mas Tatá não gostava
de mudanças drásticas. Não gostou e nunca se conformou com a morte
do pai anos antes, perda que afetou a garota profundamente. Também
nunca aceitou o padrasto, Seu Ferreira, dono do sítio para onde se
mudariam. Um homem ríspido e severo, nada parecido com o que a
menina esperaria de um novo pai.
Mas ela respirou fundo e
seguiu em frente. Tinha seu violão, presente deixado pelo pai. Tatá
era apaixonada por música, encontrando nos acordes e nas melodias e
letras lindos hinos que falavam das maravilhas do universo e da vida,
fonte de grande felicidade para a menina. Mas Seu Ferreira não
gostava nada do apego da menina pela música e nem parecia apoiá-la.
Na verdade, o padrasto parecia apenas tolerá-la, o que magoava
bastante Tatá. Porém, demonstrava afeto com Mel, mulher que
encantou seu coração duro.
Chegando ao sítio, teve que
conhecer melhor sua vida nova e se habituar àquele cotidiano. Seus
novos irmãos já tinha conhecido: Bruno, rapaz que imitava o pai em
seus modos e que chegava a ser ainda mais rígido e amedrontador,
Débora, outra que puxou Seu Ferreira, e havia Luana, a caçula e
último fruto do relacionamento de Seu Ferreira com sua finada
esposa. Um doce de garota de dez anos, Luana foi a única de seus
novos irmãos que demonstrou apego por Tatá e a única deles que
ficaria do seu lado do começo ao fim dessa história.
Outra figura muito
importante na jornada de Tatá foi Beto, garoto de dezesseis anos que
trabalhava no sítio com os cavalos. Mas muitos o chamavam de Mestre
dos Cavalos, pois ele tinha uma facilidade enorme em montar e domar
os animais. Tatá o conheceu em uma manhã de sábado enquanto lia um
livro debaixo um pé de manga. Ele surgiu de dentro do mato, um
cavaleiro cheio de valentia e coragem. A vaidosa e delicada Tatá o
viu cavalgando enquanto segurava uma pequena flor vermelha que ela
logo reconheceu como a que ela sempre usava na orelha.
O Mestre dos Cavalos se
aproximou:
- É seu?
- Sim. Obrigada. - Tatá
disse, devolvendo o adorno ao seu lugar.
- Sou Beto, o Mestre dos
Cavalos.
- Sou Tatá.
Ele se virou, sorrindo, e
foi embora. Tatá o viu partindo com um sorriso tímido no seu rosto
de menina. Beto foi uma das melhores coisas que viriam a acontecer a
Tatá, mas ficaria ainda mais emocionante para ela.
Infelizmente, nem tudo era
tão bom quanto os momentos ao lado do Mestre dos Cavalos. O
relacionamento com a maioria das pessoas do sítio era muito difícil
para tanta. Muitos ou pareciam não gostar ou eram muito distantes. O
pior personagem de todos foi o seu padrasto. Seu Ferreira foi se
mostrando ainda mais intimidador, chegando a proibir Tatá de tocar
seu instrumento em sua casa.
- Eu não gosto desse
violão. Saia daqui! - ele dizia.
Tatá não entendia o motivo
de tanta raiva. Como alguém poderia odiar algo tão bonito? Mas ela
não procurava entender, só procurava conforto. Sua mãe parecia
cada dia mais distante. Era como se Dona Mel não tivesse mais olhos
para a sua filhinha, só para a sua nova vida como esposa do
rancheiro. Bruno e Débora não ajudavam, mal falavam com a garota e
quando o faziam era com hostilidade. "Sua burra", diziam,
"você não é dessa família". A pequena Luana era um
ombro amigo, mas mesmo assim, havia momentos que ela fugia para o
mato e chorava a tarde inteira longe de todos.
Ficava imaginando como seria
se seu pai estivesse ali e se tudo fosse diferente.
No sítio, porém, em meio a
tudo isso, Tatá conheceu mais uma pessoa bondosa e sábia para
contrastar com todo o resto que lá morava, Dona Chica.
Tia de Seu Ferreira, a senhorinha passava o dia em casa costurando,
assistindo televisão e conversando. Ela serviu como voz da razão
muitas vezes, embora nem sempre pudesse aconselhar Tatá da maneira
certa.
Contou-lhe muito sobre as
história do sítio, e isso era o bastante em momentos de tristeza
para Tatá pois ela podia se distrair com contos fantásticos, coisas
que a interessavam bastante.
Dona Chica contou-lhe,
inclusive, da história dos gnomos que, segundo a lenda, moravam no
sítio. A avó de Dona Chica contava-lhe tais histórias. Os gnomos
são pequenos e ágeis, criaturinhas de pele verde que moram na Vila
Cogumelo em um lugar secreto no sítio.
- Eles só podem ser vistos
por pessoas de um bom coração ou então por quem eles acharem que
deveria vê-los. – dizia Dona Chica para a atenciosa Tatá – Os
gnomos são criaturas mágicas. Mas é só uma história boba, minha
filha.
Tatá, amante de livros
desde pequena, achou a lenda fascinante. Em contraste com sua rotina
em casa, ela desejou muito que os gnomos fossem reais e que ela
pudesse viver na Vila Cogumelo. Ao contar tais pensamentos à mãe,
foi confrontada por Bruno, que tirou sarro do que ele considerou um
delírio, magoando ainda mais Tatá.
Mas as coisas estavam
prestes a mudar. Em uma certa noite triste, ela testemunhou uma briga
entre Seu Ferreira e sua mãe, o motivo ela não compreendeu por
completo, mas envolvia os afazeres no sítio e a situação econômica
da família. O pior: viu de perto seu padrasto gritar com Dona Mel
e viu sua pobre mãe acuada de medo. Inconformada, a valente Tatá se
pôs entre Mel e o rancheiro.
- Pare de gritar com ela! -
Tatá disse.
- Saia daqui, menina! - ele
respondeu.
E ergueu sua mão, como se
fosse dar um tapa em Tatá, mas foi parado por Mel. O resto da briga
Tatá não viu, pois foi correndo para seu quarto, em prantos.
Arrumou sua mochila apressadamente e pegou seu violão. Lembrou-se de
se despedir de Luana, sua irmãzinha, com um beijo na testa.
Tatá não pretendia voltar.
Saiu pelo mato, correndo, nem sabia para onde ir. Só queria fugir de
tudo aquilo, ir para um lugar onde tudo fosse melhor, talvez
encontrasse uma forma de voltar à sua vida antiga quando vivia com
seu pai e sua mãe. Ou mesmo ir parar na lendária Vila Cogumelo,
onde moram, segundo a história de Dona Chica, os gnomos, um lugar
cheio de alegria.
Tatá então correu e
correu, lágrimas no rosto, violão na mão. Estava escuro e já nem
conseguia enxergar as luzes das casas de tão distante que estava,
mas felizmente a lua brilhava clara naquela noite.
Achou uma clareira e decidiu
sentar em um tronco velho. Em um acesso de raiva, Tatá se levantou,
pegou seu violão e o chocou contra o tronco inúmeras vezes. Bateu
contra o tronco como ele fosse Seu Ferreira, como se fosse Bruno,
como se fosse os trabalhadores do sítio que a tratavam com
grosseria, como se fosse todos os males do mundo. E quando se deu
conta, seu violão estava em pedaços, o instrumento que o seu pai
havia lhe dado estava destruído.
Tatá caiu de joelhos e
chorou. E suas lágrimas tocaram o chão.
Naquele instante, Tatá
estava entrando em um mundo novo, como se seus desejos se tornassem
realidade. De repente, ela parou de chorar. Tudo ficou silencioso,
mesmo os grilos se calaram. Tatá sentiu algo ao redor, uma presença.
Ouviu um som entre as
árvores, um farfalhar agressivo de folhas. Havia algo se
aproximando, e rápido!
Tatá saltou de medo quando
viu uma figura saindo de dentro do mato. Toda a sua angústia tinha
ido embora pois só o que a garota tinha era espanto. Tratava-se de
uma criaturinha de forma humanoide, mas bem pequena, do tamanho de
uma criança, nariz grande e gordo, sobrancelhas grossas, pele verde.
Vestia um gorro e uma túnica, era parecido com um personagem de um
conto medieval (Tatá conhecia tais figuras de livros que tinha lido
na infância).
- Fuja, ele está chegando!
- a criaturinha disse com uma voz fofa.
O homenzinho verde voltou a
correr e tomou a mão de Tatá que continuava achando estar sonhando.
Os dois correram, mas Tatá não tinha ideia do quê. Então, houve
um rugido de fera, de monstro, e a menina se arrepiou e passou a
correr ainda mais rápido. Quando olhou para trás, Tatá viu algo
que a deixou ainda mais espantada: uma figura da altura de um homem
adulto, muito escura e de olhos vermelhos e garras gigantes. Não era
mais um sonho, era um pesadelo!
- O que é isso? - ela
perguntou, mal podendo falar.
- Um orc – o homenzinho
disse – À propósito, eu sou Bolin!
Bolin, que apesar do tamanho
não parecia demonstrar tanto medo quanto Tatá, enfiou sua mãozinha
numa bolsa que carregava na cintura e a remexeu por um segundo com a
língua para fora até encontrar algo. Olhou para trás carregando um
punhado de pó vermelho e jogou nos olhos do monstro perseguidor,
fazendo a criatura parar e por mãos cheias de garras no rosto,
dolorido.
Bolin e Tatá pararam,
ofegantes.
- O que houve? - a garota
perguntou.
- Pó vermelho, os orcs
detestam! Mas sabe o que eles detestam ainda mais?
Bolin mais uma vez levou sua
mão à bolsinha que carregava e tirou uma flauta e começou a
tocá-la. Uma melodia encantadora saiu do instrumento. O orc, ainda
chorando de dor, levou tirou suas mãos dos olhos e as levou aos
ouvidos. O monstro foi embora, apavorado.
- Eles odeiam ainda mais
música. Mas ele vai voltar. Temos que ir embora. Quem é você,
garota humana?
- Sou Tatá – a menina
respondeu – Moro neste sítio.
- Você é o primeiro humano
que consegue nos ver em muito tempo! Quando eu te vi na clareira,
imediatamente reconheci que você podia me perceber por conta do seu
olhar de assustada. Você está bem?
- Não. Eu só quero um
lugar onde possa me sentir bem, eu estava fugindo de...
- Ora! - Bolin a interrompeu
– Vamos para a minha vila! Nós gnomos somos bem hospedeiros, e
você parece ser uma boa humana!
- Você é um gnomo, então?!
Agora fazia tudo sentido. As
histórias de Dona Chica eram reais e havia gnomos e outras criaturas
vivendo no sítio. Isso ou Tatá estava realmente sonhando.
Os dois partiram rumo à
Vila Cogumelo. Não foi um viagem muito longa até lá. Bolin, um
gnomo vivido, conhecia os caminhos da mata do Sítio dos Ferreira,
lugar onde a sua espécie habitava há muito tempo. Tatá percebeu
que, conforme seguia ao lado de Bolin, era como se ela estivesse
entrando em um portal para uma dimensão diferente. Havia magia no
ar, uma atmosfera encantada os cercava e ela logo percebeu que estava
em uma versão paralela do Sítio.
Chegaram, enfim, à Vila
Cogumelo. A vila era composta de várias casas esculpidas no interior
de gigantescos cogumelos, Tatá nunca tinha visto fungos tão
grandes. E havia muitos. A única casa diferente era feita de pedra e
ficava no centro da vila, mais parecia um castelinho. Lá, uma
multidão de outros gnomos que, como Bolin, eram verdes e pequeninos
(Tatá era mais alta que todos) se acumulava. A multidão estava ao
redor de um gnomo velho e que usava trajes bem mais elegantes.
O nobre gnomo velho o
saudou.
- Bem-vindo de volta, Bolin,
que bom tê-lo aqui. Teve sucesso em sua jornada?
Bolin se ajoelhou. Tatá
percebeu que tratava-se de algum monarca. Os gnomos todos a
admiravam, mas o rei continuava encarando Bolin.
- Vossa Majestade, sinto
informar que não consegue o resto da melodia.
- E quem é esta humana? - o
gnomo disse, olhando para Tatá.
- É Tatá, Vossa Majestade.
Ela é uma humana que vive neste Sítio. Ela disse que precisava de
um lugar para ficar.
O rei gnomo aproximou-se de
um grupo de gnomos que pareciam fazer parte de um clero e começou
com eles a cochichar. Pareceram chegar a uma conclusão depois de
alguns segundos.
- Ela pode ficar conosco
esta noite. Amanhã, decidiremos o destino da humana Tatá.
Como as casas-cogumelo eram
muito pequenas para que Tatá coubesse nelas, a menina foi obrigada a
dormir do lado de fora da casa de Bolin, sob um amontoado de folhas.
Na manhã seguinte, ela
ficou sabendo mais sobre o reino mágico que havia descoberto. Puk, o
rei dos gnomos, estava preocupadíssimo com a ameaça que havia
surgido contra seu povo. Grokomel, o líder do exército dos orcs,
maiores inimigos dos gnomos, estava preparando um novo exército para
atacar a Vila Cogumelo e acabar de uma vez com toda com as
criaturinhas verdes que habitavam o Sítio.
- Os orcs odeiam nossa magia
e odeiam música também, seja qual for o tipo. - Bolin explicou à
Tatá assim que ela despertou - Eles vivem no subterrâneo do Sítio,
em cavernas silenciosas e desprovidas de melodia. Eles também não
sabem o que é amor, são criaturias terríveis.
- Como derrotá-los? - Tatá
perguntou.
- Grokomel é o líder dos
orcs e o mais poderoso de sua espécie. A única maneira de
derrotá-lo é tocando a Canção do Amor.
- Canção do Amor?
- É uma canção mágica
composta há muito tempo atrás por nossos ancestrais. É uma música
tão poderosa que é capaz de acabar com todo o mal! Mas infelizmente
não sabemos como tocá-la. Perdemos as cifras. Por isso eu estava
correndo ontem. Eu, Bolin, fui designado para buscar as cifras que
faltam. Temos apenas dois quintos da canção, eu tenho procurando
pelo resto.
Tatá olhou para o chão,
ponderando. Ela pensou em entrar em uma aventurar, participar de algo
grande, talvez mesmo salvar a Vila Cogumelo dos orcs. Mas parecia
estar pensando longe demais. No fundo, ela sentia falta de sua mãe.
Não acreditava em nada daquilo, achava ainda estar sonhando.
Tatá levantou-se, mas assim
que o fez, viu se aproximar rei Puk e uma grupo de gnomos.
Puk disse:
- Decidimos, jovem Tatá,
que você seria de grande ajuda em nossa missão atrás das cifras
que faltam. Nossos clérigos notaram que você possui uma grande
força de vontade, o que é muito bom. E a sua capacidade de nos
enxergar não é mera coincidência, apenas poucos humanos já foram
capazes de ver nosso mundo.
- Você é música – disse
Bolin – Eu vi seu violão quebrado na clareira. Se você conhece a
música e seu poder, deve nos ajudar a salvar nossa vila, Tatá. Se
não derrotarmos Grokomel e seus orcs, não só os gnomos serão
destruídos mas também os humanos que moram no sítio!
Mas Tatá não queria ouvir
nada daquilo. Estava entrando em um mundo muito perigoso, um mundo de
monstros ainda mais aterrorizantes do que seu padrastro. Saiu
correndo da vila. Todos os gnomos ficaram sem entender o motivo da
sua fuga. A garota foi para o mato e sentou-de, os mesmos pensamentos
de solidão retornaram à sua cabeça. Ela só queria que seu pai
estivesse ali.
Era de manhã, o sol
brilhava. Mas mesmo assim, Tatá deu de caras com uma figura maligna.
Desta vez tinha a forma de um enorme cão de pele cinzenta e presas
demoníacas. Tatá não sabia, mas era um warg, feras treinadas pelos
orcs e que habitam suas cavernas subterrâneas mas que pouco a pouco
estavam se acostumando com a superfície.
Tatá ficou petrificada, não
sabia para onde ir. A garota começou a suar. O warg apenas a
observava com a boca babando, olhos de fogo.
De repente, como se por
intervenção maior, ela sentiu a presença da pessoa que mais amava:
seu pai. Era como se ele estivesse ali, ao seu lado. Tatá pôde
ouvir sua voz sussurrando uma canção em seu ouvido. As lembranças
voltaram, uma canção que ela muito ouviu quando pequena. Tatá
levantou-se e começou a cantar baixinho:
Minha menina
Você sabia
Que eu amo muito
Essa sua carinha
Ela nem
terminou de cantar, bastou alguns versos e o cão começou a se
contorcer de dor. Saiu correndo, com o rabinho entre as pernas.
Naquele momento, Tatá percebeu o verdadeiro poder que tinha de
combater o mal, o poder da música.
Ela não
mais teria medo, desde que tivesse esse poder consigo.
Tatá
retornou à Vila Cogumelo de cabeça erguida. Aproximou-se do rei Puk
e disse:
- Vamos
destruir Grokomel e os orcs!
E todos
os gnomos festejaram aquela decisão pois tinha mais uma aliada.
O resto
do dia foi de preparativos, pois Bolin e Tatá sairiam em uma jornada
atrás das três cifras que faltavam para completar a Canção do
Amor. Tatá também aproveitou para conhecer melhor a Vila Cogumelo e
a cultura dos gnomos. Ela inclusive experimentou a torta de sapo,
iguaria entre os pequeninos verdes mas que não agradou nada a
garota.
-
Nenhuma criatura no mundo gosta de torta de sapo, só os gnomos! -
disseram.
Bolin
explicou que a primeira cifra que procurariam estava com Guka, uma
criatura antiga que vivia em uma lagoa no sítio. Embora tivesse uma
descrição assustadora, Bolin explicou que Guka era na verdade um
ser gentil, mas um tanto que sensível, e que não gostava muito de
ser perturbado. O pior era que a cifra, escrita em um pergaminho
dourado, estava em sua barriga!
Quando
chegaram na pequena lagoa de água escura perdida no meio do sítio,
não encontraram nem sinal da tal criatura aquática. Tentaram
chamá-lo pelo nome, mas nada. Foi quando Tatá teve uma ideia.
- Vamos atrair o seu olfato!
Tatá
tirou de sua mochila um pedaço da nada apetitosa torta de sapo que
havia guardado mais cedo. Exposta, a preciosidade culinária dos
gnomos teve forte impacto em Guka, que até então residindo no fundo
da lagoa emergiu rapidamente, o que causou grande espanto tanto em
Bolin quanto em Tatá.
Guka
tinha um longo pescoço como o de uma girafa, mas sua cabeça era
como de um dinossauro. Seu corpo era gordo e pesado e se movimentava
com nadadeiras. Tinha uma aparência ameaçadora, mas mostrou-se
inocente e delicado.
- Hmm, o
que vocês têm aí? - disse Guka – Tem cheiro bom!
Tatá e
Bolin taparam seus narizes com as pontas dos dedos ao mesmo tempo que
fingiam um sorriso.
- É
torta de... - Tatá ia revelando o sabor da torta, mas resolveu mudar
para algo mais apetitoso afim de convencer Guka – Torta de maçã!
- Hmm,
muito bom! Me dê!
Abriu
seu bocão e Tatá jogou o pedaço da torta dentro. Guka mastigou e
mastigou e então engoliu. Tatá ficou espantada, achou que ele tinha
adorado. Mas passou-se alguns segundos e a sua expressão mudou de
"muito satisfeito" para "não me sinto bem".
Ouviram
um som, um estrondo poderoso. Era a barriga do monstro que se remexia
em negação à horrendo comida que havia recebido.
- Ótimo
plano, Tatá! – Bolin disse.
- Estou
enjoado... - Guka disse.
Houve um
estrondoso arroto saído da boca da criatura. Foi seguido por um
vômito nojento, um líquido amarelado jogado em direção à Tatá e
Bolin que por pouco não foram atingidos.
Guka
irou-se, mas garantiu que não se vingaria dos dois por conta do sua
intoxicação recém-adquirida e retornou ao fundo da lagoa.
O vômito
estava esparramado na beira da lagoa. Entre os conteúdos da bile
estava latinhas de refrigerante, botas velhas, peixes, a própria
torta de sapo e algo muito especial: um pergaminho dourado!
Bolin
abriu e lá estavam as cifras. O gnomo dançou de alegria e tocou sua
flauta em comemoração.
- Graças
à sua ideia, Tatá! - ele disse
- Mas
como foi parar na barriga dele? - Tatá disse.
- Deve
ter comido algum gnomo que o carregava há muito tempo. O importante
que você foi de grande ajuda. Agora faltam dois pergaminhos.
- Onde
está o outro, então?
Bolin
ganhou um olhar severo. Ele fechou os olhos e respirou fundo, como se
o pior pesadelo passava em sua mente.
- Está
com Baba Yaga, a Bruxa do Charco! Tatá, a pior parte de nossa
aventura começa aqui. Esta bruxa é amiga dos orcs e muito perigosa.
Devemos ter cuidado, ela vai tentar nos transformar em grilos!
Tatá se
arrepiou, mas não teve muito medo pois sabia que tinha a música do
seu lado.
Como já
estava tarde, decidiram acampar ali perto. Passaram a noite cantando
e contando histórias à beira da fogueira.
Tatá
sentia falta da sua mãe e se perguntava se ela estaria sentindo
falta dela naquela hora. Mas sabia que ajudar os gnomos era algo
muito importante e iria até o fim.
- Não
tenha medo, Tatá, você é esperta e tem muito valor – Bolin
disse, com sua voz sábia de gnomo – Mas a bruxa Baba Yaga é, como
eu já disse, bem perigosa. Há muito tempo, ela roubou dois dos
pergaminhos dourados contendo as cifras. Um deles ela mantém
trancando em um baú em sua cabana e o outro ela destruiu assim que
ensinou a cifra ao seu filho.
- Ela
tem um filho? - Tatá perguntou, muito interessada em contos de fada.
- Sim,
um filho muito mal. Mas dizem que esta pessoa não sabe que é filho
de Baba Yaga e vive hoje entre os humanos.
Tatá
ficou silenciosa, pensando na história. Não soube explicar, mas é
como conhecesse aquele tal filho de Baba Yaga. Havia algo de familiar
naquela história que a deixava intrigada.
Mas
estava com tanto sono que não conseguiu pensar mais nesse assunto
naquela noite e acabou adormecendo ao lado de Bolin.
No dia
seguinte, partiram cedo. Enquanto se dirigiam ao charco (que ficava
do outro lado do sítio), começou a chover. Em certo ponto da
viagem, Bolin e Tatá tiveram que atravessar um campo e foi lá onde
Tatá viu Beto, o Mestre dos Cavalos, montado em seu corcel.
- Tatá!
Você está aqui! - ele disse ao vê-la.
Como era
só um humano comum, Beto não viu Bolin. Achou que a garota tinha
fugido e estava há dois dias procurando por ela. Beto falou da
situação na família e como todos estavam preocupados e como Seu
Ferreira estava irado com Tatá. A menina sentiu-se culpada por tudo
aquilo, mas era muito tarde para voltar. Sentiu vontade de poder
contar tudo a Beto.
- Você
precisa voltar, Tatá – o rapaz disse – ou isso vai ficar pior
tanto para você quanto para mim.
Agarrou
seu braço e a puxou. Naquele instante, Bolin puxou sua flauta e
tocou uma rápida melodia carregada de uma poderosa magia. Beto
desgrudou do braço de Tatá e cambaleou por alguns segundos em um
gesto de tontura. Esfregou os olhos e sentiu muita dor de cabeça. Ao
abri-los, não via só Tatá ali, mas Bolin também.
- Mas o
que?! - o Mestre dos Cavalos se assustou, sacando sua pequena faca –
O que é isso?!
- É um
amigo, Beto – Tatá disse – O nome dele é Bolin e é um gnomo.
Estou ajudando ele em uma missão, estou fazendo algo muito
importante e você não pode me parar. Agora entende?
-
Gnomos... Eu só posso estar doido!
Beto
montou rápido em seu cavalo e foi embora tão rápido como havia
chegado, totalmente incrédulo.
- Por
que usou sua magia nele? - Tatá perguntou ao gnomo.
- Mesmo
que ele conte, ninguém nunca vai acreditar naquele garoto. Eu
precisava dar um susto nele. Espero ter feito a coisa certa, Tatá.
- Fez
sim, Bolin.
Mais uma
vez, um pensamento estranho cruzou a mente da garota. E se Beto
contasse ao Seu Ferreira sobre a criaturinha verde que acompanhava
sua enteada? Por algum motivo, desde a conversa na noite anterior
Tatá não tirava o seu padrasto da cabeça, como se ele fizesse
parte daquela história.
Mas
continuou mesmo assim a sua jornada. Chegaram, enfim, ao charco onde
morava a bruxa. A chuva tinha ficado mais forte e logo tudo estava
alagado. Tatá atravessou toda a água com ela batendo em sua cintura
e teve que carregar o pobre Bolin nos braços, assim por vários
metros.
Avistaram
uma casinha e uma fogueira.
- É
ali! - apontou Bolin.
A
casinha ficava sob umas altas árvores em uma região plana do
charco. Havia uma pessoa sentada em um banco na frente da casa e um
homem muito alto em pé ao lado. Aproximando-se, Tatá viu que a
pessoa sentada era uma velha de aparência terrível. Seus olhos eram
amendoados, sua pele extremamente enrugada e seus braços muito
finos. Tinha um sorriso sinistro no rosto. A figura ao seu lado era
de um homem de dois metros de altura e que tinha olhos sem pupilas,
um verdadeiro frankestein. O homem sem pupílas carregava um pequeno
baú.
Ficou
claro para Tatá que se tratava da temida Baba Yaga.
- Quem
é? - a velha disse.
- Um
gnomo e uma humana, minha senhora – o homem respondeu com uma voz
grave e assustadora.
-
Humanos e gnomos juntos? Não creio. São corajosos. Quem são vocês?
Quero nomes!
- Sou
Bolin e esta é Tatá. Atravessamos este sítio para buscar o que
pertence aos gnomos por direito, um dos pedaços que faltam da Canção
do Amor. Estamos dispostos a enfrentar suas mais cruéis magias.
-
Magias? Não. Serei gentil. Sinto que conheço esta menina, ela tem
cheiro familiar. Se querem o que esta neste baú, vão ter que me
responder uma pergunta.
-
Pergunta? - Tatá deixou escapar baixinho.
- Sim –
Baba Yaga respondeu – Onde está a última cifra? A resposta errada
trará consequências terríveis aos dois.
A velha
riu maldosamente.
Bolin e
Tatá passaram a tarde toda tentando encontrar uma resposta. Sabiam
que só tinham uma chance de responder ou se não seriam
transformados em carvão (isso é, torrados). Bolin não parecia ter
ideia, tudo que o gnomo sabia era que ela havia ensinado as notas ao
seu filho. Mas quem seria o filho?
Tatá
tinha teorias. Pensou em todas as pessoas que conhecia no sítio.
Seria Beto? Seria um dos trabalhadores? Seria a Dona Chica que tem
tanto conhecimento dessas histórias? Ou seria Bruno ou Débora?
Pensou
muito mas chegou finalmente ao que pareceu ser uma conclusão. Teria
que ser a pessoa que ela mais associava com a maldade. A pessoa que
havia feito ela fugir de casa.
- É o
Seu Ferreira, o dono deste sítio – Tatá disse.
A velha
Baba Yaga se levantou lentamente com a ajuda de sua bengala. Sorriu
maliciosamente e apontou para os dois.
- Aí
está seu tesouro. - ela disse.
O baú
se abriu e dentro dele saiu o pergaminho dourado. Flutuando como uma
pluma ao vento, foi aterrissar aos pés de Tatá, que o recolheu,
cheia de suspeitas mas também aliviada. Mas o alívio era somente
temporário.
- Não
sairão de meu charco tão facilmente. - a velha bruxa deu uma risada
de arrepiar e ergueu seu dedo ossudo para cima.
Das
águas que os cercavam, vários lagartos atrozes emergiram, como
dragões sem asas e de escamas negras que se rastejavam e colocavam
para fora suas fresas afiadas e línguas vermelhas. Logo cercaram
Tatá e Bolin.
O gnomo
tocou sua flauta em uma tentativa de espantar os monstros, mas a
magia não parecia ter efeito algum naqueles répteis que estavam
chegando cada vez mais perto.
Tatá
fechou os olhos. Ela pensou que tudo terminaria assim. Um estrondo,
porém, rompeu a tensão mórbida do momento, pois havia chegado um herói
para resgatá-los. Ele estava a cavalo e armado com uma espingarda.
- Beto!
- gritou Tatá.
O Mestre
dos Cavalos fez jus ao seu nome ao cavalgar com incrível habilidade
o seu corcel. Ao mesmo tempo que galopava, o garoto atirava com sua
espingarda, acertando os lagartos que futilmente mostravam suas
presas em resposta.
Atrás
de Beto, meia dúzia de cavalos trotavam a toda velocidade. Os
répteis negros fugiram de medo dos animais, retornando assim ao
fundo do charco amaldiçoado de onde vieram.
Tatá e
Bolin saltaram de alegria. Beto e os cavalos pararam em frente a
bruxa e seu sinistro servo. O Mestre dos Cavalos apontou-lhe o cano
de sua arma.
- Vá
embora! - ele disse – Nos deixe!
- Raios!
Tenho que conseguir uma dessas para mim! - Baba Yaga disse batendo
com o pé no chão.
Ela
soltou um assobiou e uma vassoura foi de encontro à sua asquerosa
mão. Montando sobre ela como se monta em um cavalo, a bruxa má
levitou e foi embora, deixando o seu leal servo frankestein para
trás que não viu outra opção se não seguir a sua mestra.
Beto
baixou sua arma e olhou para Tatá, sorrindo.
-
Obrigada por nos salvar – Tatá disse.
- Muito
obrigado! - disse também Bolin.
- Moro
aqui desde pequeno, Tatá. - falou Beto – Já ouvi todas as
histórias de Dona Chica. Acho que no fundo sempre acreditei nelas.
Desceu
de seu cavalo e aproximou-se da garota.
- Seja
lá o que esteja fazendo aqui, você precisa retornar.
- Não
se posso.
- Deve.
- Não...
- Todos
sentem sua falta – Beto disse com uma voz meiga. E então, em um
movimento inesperado, beijou Tatá na bochecha. A garota ficou
vermelha.
-
Preciso recuperar o resto da Canção do Amor, Beto. Sem ela não
podemos derrotar o Rei dos Orcs, Grokomel.
O céu
ficava nublado. O vento começava a soprar com força e a chuva era
eminente.
- E onde
está o resto desta canção? - perguntou Beto.
As
primeiras gotas caíram pesadas nos ombros de Tatá. Ela olhou para
trás, para o sul.
- Eu sei
onde estão! - ela disse.
Era a
hora do confronto final. Tatá não teria escolha senão enfrentar o
seu maior antagonista, o seu próprio padrastro. Beto montou em seu
cavalo e Tatá, que já tinha montado algumas vezes, tomou o seu.
Bolin foi junto com a garota.
Naquele
momento, um mensageiro chegou. Os gnomos não domesticavam cavalos
por razões óbvias, mas sempre que um animal pequeno escapava do
sítio, eles faziam questão de adestrá-lo. Assim, um gnominho jovem
apareceu ao grupo montado em um porco.
-
Mensagem para Bolin! - o gnomo disse sob a chuva que ficava cada vez
mais forte – Nossos batedores avistaram um exército de orcs
marchando rumo à Vila do Cogumelo! Eles vieram de suas cavernas
subterrâneas e estão bem armados!
- Poxa,
vida – disse Bolin – Se nós não recuperarmos a última cifra,
não seremos páreos às forças de Grokomel. Tatá, precisamos fazer
algo. Aquele exército logo vai se tornar mais poderoso e ser capaz
de interagir com o mundo dos humanos e destruí-lo também!
O
mensageiro entregou as notícias e logo partiu. Tatá pensou e
pensou. Sua mente foi parar na coisa que havia começado tudo aquilo.
- Beto,
vá para casa! Arme todos os homens de lá. Bolin, temos que voltar
ao lugar onde nos conhecemos.
Cavalgaram
por sob a chuva que já era grossa, quase uma tormenta. Era noite, ou
pelo menos assim parecia já que estava tudo completamente nublado.
Os dois
amigos pararam perto da clareira onde haviam se conhecido há três
dias. No centro da clareira, perto de uma grande pedra pontuda,
estava o velho instrumento que o pai de Tatá dera à sua querida
filha. Ela se ajoelhou e suas finas lágrimas de frustração e mágoa
se misturaram à água que caia do céu.
- Eu
queria poder concertar... - ela disse.
Bolin
aproximou-se com sua flauta e tentou uma canção, mas não conseguiu
terminar o seu encantamento.
Tatá
fechou os olhos. Ela conseguiu quase que ficar inconsciente. Era só o
som da chuva e da persistente flauta mágica de Bolin. Então, não
havia mais barulho. Tatá sentiu uma presença, uma presença boa e
soube que era seu pai. A menina ouviu notas de violão, reconheceu o
som das cordas e lembrou-se de quando seu pai o tocava.
Ela
reconheceu a melodia. Tatá abriu os olhos.
- Eu vi!
- ela disse, espantando Bolin e interrompendo sua flauta – Eu vi a
quinta parte da Canção do Amor, ou pelo menos um pedaço dela.
Tatá
ficou de pé e contra o som da chuva tentou expôr seu frágil canto
de menina. Sua voz era agora um instrumento e ela tocou quase toda a
Canção do Amor. A chuva recuou e ficou mais fraca, o vento parou e
Bolin ficou de boca aberta, admirado com a beleza melódica daquela
composição.
De
repente, os pedaços do violão destruído começaram a se
movimentar. Pouco a pouco, cada parte do instrumento foi se juntando
à outra e assim eles foram se tornando um só.
Completo
de novo, Tatá pegou seu velho amigo musical do chão. Como o pai de
Tatá poderia ter sabido da canção era algo que Tatá não
compreendeu no momento. Não se recordava de ter ouvido uma música
parecida. Entretanto, não era a canção completa, ainda havia um
pedaço e Tatá e Bolin sabiam onde encontrá-lo.
Montaram
em seus cavalos e foram rumo à fazenda.
Bolin
soltou um "essa não!" ao olhar para o horizonte e ver uma
cor alaranjada tingindo os céus.
- Tochas
dos orcs! O fogo deles é o mais forte que existe. Eles estão
chegando! - disse o gnomo.
Enquanto
isso, a Vila Cogumelo estava deserta pois todos os seus habitantes
haviam se escondido nas cavernas secretas dos gnomos que só eles
conhecem. Porém, seria apenas uma questão de tempo até serem
encontrados por Grokomel.
Tatá e
Bolin finalmente chagaram ao sítio. Descendo de seu cavalo, violão
na mão, a garota deu de cara com Seu Ferreira que não estava nada
feliz.
Dona Mel
apareceu chorando e abraçou sua filha como nunca tinha abraçado.
Era uma imagem comovente mas que foi logo quebrada pelas palavras
duras de Seu Ferreira:
- Essa
menina não tem vergonha! Meus homens quase morrem procurando por
ela! Onde é que você tinha se metido, peste? Você vai apanhar
muito!
Dona Mel
protestou, mas Tatá não teve medo e olhou seu padrasto nos olhos.
Saindo do conforto dos braços da mãe, ela se dirigiu a Seu
Ferreira.
- Você
não é quem pensa que é, meu padrasto – a garota disse – E eu
não acredito que você seja todo maldade. Existe algo muito bonito
escondido no seu coração.
- Mas
que diabos é que você está falando? - Seu Ferreira retrucou,
tirando seu cinto e preparando uma surra na menina.
Tatá
ergueu seu violão e começou a tocar assim que ele deu o primeiro
passo em sua direção. As primeiras notas não surtiram muito
efeito, mas assim que a canção foi progredindo, Seu Ferreira mudou
sua expressão. Passou de um rosto brutal e cruel para um melancólico
sorriso de menino.
Deixou
cair seu cinto e parou ali mesmo, contemplando a menina.
Todos ao
redor ficaram encantados pela música. Terminada, Tatá disse:
- Só
falta o resto.
- Eu sei
– Seu Ferreira respondeu.
O
padrasto a guiou até o celeiro. Foi a primeira vez que ele a tratou
com um sorriso no rosto e as pessoas ao redor não compreendiam o
comportamento de Seu Ferreira. No celeiro, debaixo de umas tralhas, Seu Ferreira descobriu um baú grande e velho e muito empoeirado.
Abrindo
o baú, havia um violão.
- Meu
antigo amigo – Seu Ferreira disse.
Abraçou
sua enteada e beijou no rosto.
-
Perdão, Tatá. Minha mãe, aquela bruxa, havia selado a bondade
dentro de mim. Mas aqui estou. Vamos acabar com aqueles orcs.
Saíram
de pé até o mato, carregando lanternas e os seus violões. Bolin, a
quem Seu Ferreira podia ver agora, foi também.
- Faz
tempo que não vejo um gnomo! - disse Seu Ferreira assim que avistou
o pequenino verde.
Dona Mel
não entendeu o que acontecia, mas chorou ao ver o pai e filha juntos
como uma família. O Mestre dos Cavalos tinha sua espingarda, mas não
havia ainda alertado os homens do sítio sobre a presença de um
"exército de orcs", ideia demais ridículo.
Estavam
bem distantes de casa, no meio de uma mata aberta. Tatá e Seu
Ferreira viram aquela massa de monstros se aproximar lentamente.
Bolin teve medo e se escondeu atrás de Tatá.
Os orcs
eram ainda mais terríveis do que aquele que Tatá tinha visto há
três dias. Estes estavam vestindo armaduras e portando lanças e
escudos, verdadeiros guerreiros. No meio deles, se destacava um orc
bem maior e que usava um capacete com chifres.
-
Grokomel... - Tatá e Seu Ferreira disseram em conjunto.
- Eu
sabia que esse dia viria quando eu ouvisse essa canção, Tatá –
disse Seu Ferreira – No fundo eu sabia. Na minha juventude, eu me
aventurei por este sítio entre gnomos e orcs. Não sei como fui
deixar o lado mal vencer.
- Nunca
é tarde para se redimir. - Tatá disse.
O
exército se aproximou. Grokomel, que tinha dois metros e meio de
altura e carregava um machado de batalha, se pôs na frente de Tatá,
Seu Ferreira e Bolin.
- Dois
vermes humanos e um miserável gnomo. – o orc riu – Não
encontrei gnomos no seu patético vilarejo, mas em breve eu vou
encontrá-los e materei todos. Agora, vou fazer uma visitinha ao
mundo dos humanos. Não haverá mais barreiras. Assim que eu matar
vocês dois, o homem do sítio e a violinista, o selo que deixa os
humanos cegos ao nosso universo será removido e eu poderia enfim
conquistar todo este lugar!
- Pai,
toque! - disse Tatá.
Os dois
músicos começaram a tocar, batendo com força nas cordas dos seus
violões. As notas vieram como relâmpagos e tinham o som de trovões.
O chão estremeceu e todos os orcs, incluindo seu líder, deram um
passo atrás. Estavam com medo.
Bolin
tomou coragem e se juntou à banda com sua flauta mágica,
adicionando ainda mais poder à poderosa Canção do Amor. Alguns
orcs começaram a tapar seus ouvidos e desabar de dor, mas os mais
fortes se mantinham de pé.
Mas não
era o bastante.
Embora
sentisse seus músculos quase que paralisados, Grokomel arranjou
forças para erguer seu pesado machado de guerra. Seria um ataque
certeira na garota.
Nesse
momento, ouve um outro estrondo. Fora mais um tiro de Beto, o Mestre
dos Cavalos, montado em seu animal. Grokomel tocou seu ombro onde
tinha sido atingido e viu o sangue negro escorrer pelo seu braço. O
orc sentiu dor, e dor e música deixava sua raça com ódio.
Preparou
mais um ataque, mas dessa vez não foi parado por uma balada, mas
pela adição de mais um instrumento musical àquela orquestra. Beto
revelou sua sofona, sua companheira em horas de solidão no sítio.
Muito habilidoso, ele adicionou ainda mais força ao ritmo e à
melodia daquela orquestra.
Grokomel
sentiu-se fraco, seu corpo doía. Mas seu ódio por tudo que era
bonito, por tudo que era bom e precioso era muito maior. Mais uma vez
o Rei dos Orcs ergueu sua arma afiada, pronto para matar Tatá.
Mais
sons surgiram. Outros cavaleiros, colegas de Beto, saíram das
sombras. Alguns carregavam ukeleles, outros gaitas, outros tambores e
um até tinha um triângulo.
Assim,
mais pessoas do Sítio dos Ferreiras foram se juntando à Canção do
Amor. Até mesmo Dona Mel surgiu, que junto com suas amigas,
incluindo Dona Chica, aplaudiam sistematicamente contra o exército
invisível de orcs.
- Vocês
não conseguem ver, mas eles estão aqui! - dizia Dona Chica –
Continuem fazendo música!
Os orcs
começaram um a um a morrerem de agonia. Os cadáveres que caíam
duros no chão com os olhos revirados derretiam e se transformavam em
um vapor ácido.
Grokomel,
em seu último suspiro, olhou para a orquestra e deu um último grito
estridente e então caiu morto no chão. Derreteu, como os seus
soldados, e aquele foi o seu último dia. Os orcs foram extintos.
Bolin,
Tatá e Seu Ferreira cessaram com a música, e assim fizeram o resto
daquele povo. Houve um silêncio, somente o som da chuva. Dona Mel
abraçou sua filha, contente, sua pedra preciosa. Seu Ferreira
juntou-se ao abraço e eram então uma família feliz.
Tatá
não sonhou naquela noite. Não teve pesadelos e nem viajou para um
mundo onírico cheio de fantasia. Já estava vivendo algo muito bom.
Na manhã
seguinte, Tatá despediu-se de Bolin. Chorou e agradeçeu por tudo,
contando até com um abraço emocionado na pequena criaturinha verde.
- Vou
sentir sua falta, humana Tatá. – disse Bolin – Vou remover a
magia que a permite nos enxergar. O rei Puk não aconselha que
humanos interajam conosco por muito tempo. Mas se precisar de algo,
cante uma música e eu vou aparecer!
E
desapareceu na mata, saltitante.
Quanto a
Beto, ele deixou os cavalos de lado por um tempo. Parecia ter ficado
ainda mais interessado em sua sanfona depois de toda a batalha musical
contra os orcs. Também passou a interessar-se mais em poesia e chegou
a recitar uns versos para Tatá.
Certo
manhã, enquanto Tatá lia um livro debaixo de um pé de mangá, Beto
surgiu, o Mestre da Sanfona, das Flores e dos Poemas.
- Achei
uma flor que combina com seus olhos – o rapaz disse, entregando uma
rosa para Tatá.
Tatá
ficou vermelha e fechou os seus olhos. Sentiu um beijo nos lábios.
Quando os abriu, não havia mais Beto, só a rosa que ele deixara em
sua mão. Não seria o último beijo que ela receberia daquele
garoto.
Em casa,
finalmente Tatá se sentia entre uma família. Não era assim fazia
tempo. Tudo era alegria e havia união e amor. Bruno e Débora,
embora ainda secos, pareciam ter se livrado da maldição que tinha
origem em Seu Ferreira, assim como todos os outros no sítio que
tratavam Tatá mal. Seu Ferreira todo dia agora era um pai de verdade
para Tatá. Pai de três, Débora, Tatá e Luana, o homem era todo
sorriso e sempre tocava uma música com sua enteada antes de dormir.
Algumas
vezes, Tatá despertava de manhã e parecia que tudo era um sonho,
que tudo era de mentira. Como se fosse bom demais para ser verdade.
Ela se pergunta constantemente se toda história dos orcs e gnomos
não era produto da sua imaginação. Mas assim que se sentava na
mesa de jantar junto à sua família, ela se sentia completa. Era
tudo verdade, uma fantasia verdadeira.
FIM