19 de fevereiro de 2020

O Guardião


Talion olhou para o enorme sol que se preparava para desaparecer no horizonte. Era uma luz tão forte e intensa que mesmo o elfo não conseguiu contemplá-la por muito. Talion virou-se para o homenzinho atrás de si, riu e disse:

- Sinto-me seguro aqui.

O homenzinho riu em resposta. Era baixo e coberto de pelos. Girek era como Talion, último membro de sua raça, mas não passou tanto da sua vida em solidão já que aldeia em que estava era muito bem habitada. Talion, por outro lado, passou sua juventude entre a nobreza élfica no seu planeta natal, Andor, agora uma ruína. Porém, a maior parte de sua vida viveu em fuga, fugindo de todos que cobiçavam o seu maior tesouro.

Girek apontou para a chave negra pendurada no pescoço de Talion e disse:

- Fyrumir, a chave que abre os portões de Qiratun. Que bom que você nunca a perdeu, Talion. Fez bem vir até meu planeta, ela está a salvo aqui.

- Tenho certeza que Fyrumir está segura – Talion respondeu, tocando o objeto em seu colo – Todos os grandes impérios do universo já caíram e todos os meus vilões já foram derrotados.

O rosto de Talion, outrora angelical e perfeito, era agora cheio de cicatrizes de batalhas e de marcas de velhice. Talion tinha milhares de anos. Havia visto tanto. Viu Andor em seu esplendor máximo, mas também assistiu sua queda. Lembra-se bem do dia em que seu pai, um dos maiores cientistas do planeta, confiou a ele e seus irmãos a chave Fyrumir. Talion não gostava de lembrar o que levou a queda de seu mundo, ou talvez de tão traumatizado se recusava a lembrar, mas sabia que não haveria salvação para o seu povo. Ele e seus irmãos foram obrigados a fugir com a chave.

Não demorou até terem que enfrentar inimigos. Caçadores de recompensas, saqueadores, fanáticos, reis com sede de poder. Todos atrás da chave. Talion foi o último que sobrou dos irmãos, todos os outros foram mortos ou desapareceram. O último elfo por muito tempo viajou, na maioria das vezes só ou de vez em quando com uma companhia indesejável, pelo universo. Não tinha destino, apenas fugia de seus vilões.

Talion sempre soube o que estava em jogo: a sobrevivência do universo. Caso alguém colocasse as mãos em Fyrumir, seria possível abrir todas as portas de Qiratun. Um poder ancestral e incomensurável adormercia lá, um poder há muito esquecido pela maioria, mas que os elfos de Andor conheciam bem. Foram eles que, muito antes do avô de Talion nascer, haviam o aprisionado no planeta. Imperadores galáticos, cheios de cobiça, almejavam tão poder. Tolos, Talion pensava, não tinham ideia da destruição que trariam a todo o cosmos.

Mas não só a Fyrumir os vilões perseguiam, mas ao próprio Talion também. O último de sua raça, o elfo era o único que conhecia as exatas coordenadas espaciais de Qiratun. Sem Talion, Fyrumir seria inútil. Talion aacreditava que era por causa disso que tinha conseguido sobreviver por tanto tempo.

Mas agora estava finalmente em paz. Depois de milhares de anos, Talion finalmente podia descansar no planeta de Girek. O planeta gélido tinha longas noites e o dia era banhado por um fortíssimo sol, uma enorme estrela vermelha, que quando tocava sua luz na superfície do planeta, evaporava toda a neve. Mas as pessoas daquele vilarejo eram de natureza serena, pacifistas como Girek.

Talion sabia que não precisava mais se preocupar, pois não havia mais inimigos na sua cola.

Ou assim ele pensava. O passado ainda perseguia o viajante elfo. Ainda havia uma figura sombra atrás de Fyrumir. Arzeg, ou O Caçador, como era chamado por alguns, era o último da linhagem real do Império Negro. Assim como Talion, Arzeg teve seu planeta destruído e todo o seu povo dizimado. Na sua juventude, o jovem imperador useu de todos os seus recursos para perseguir Talion, mas não teve sucesso. Tornou-se obcecado em por suas mãos em Fyrumir, tanto que ele abandonou o trono, levando o seu mundo a uma guerra civil e seu império galático à ruína.

Arzeg não desistiria até ter a Fyrumir.

Anos se passaram no planeta de Girek e Talion, tão seguro que não confrontaria mais nenhum adversário, teve que lutar uma última vez. Uma nave pousou na distância, além das montanhas. Um dos aldeões que morava afastado da vila veio alertar a Girek e Talion sobre uma figura sombria que estava causando terror nas proximidades.

- Será que... - Talion disse, olhando para Girek.

O elfo levantou-se e armou-se com seu rifle de plasma, arma que já usara muitas vezes para derrubar inimigos das mais diferentes espécies pelas galáxias.

Talion rezava para que não fosse nada. Em seu instinto, porém, sabia que alguém procurava pela Fyrumir.

Arzeg a procurava. Há milhas dali, O Caçador montava em seu talurun, um réptil ágil e de presas afiadas, comum naquela região da galáxia, uma besta treinada para farejar seus alvos e destroçá-los impiedosamente. O animal perfeito para Arzeg.

O talurun ergueu o focinho, apreensivo.

- Sentiu alguma coisa? - Arzeg falou ao animal – Vá, mas não o mate. Preciso dele vivo.

A besta partiu velozmente, sua boca cheia de uma saliva pegajosa, faminto, embora fosse ciente das ordens de seu mestre.

O talurun soltava rugidos uma hora ou outra, sinais de terror.

Talion ouviu os sons que a criatura soltava. O elfo sabia que não tinha acabado, a perseguição não tinha acabado. Mas estava prestes a ter um fim.

Talion posicionou-se no centro da vila. Os aldeões, assustados, não faziam ideia de qual era a fonte daquele som tão bestial. Os habitantes do planeta, em suas vidas pacíficas, não conheciam predadores.

- Fiquem em suas casas. É perigoso aqui – Talion disse, preparando sua mira.

Ao longe, surgindo entre as fendas da montanha que se erguia ao pé do vilarejo, a figura de Arzeg montado em seu réptil aparecia, um emissário do medo.

O talurun soltou um último estridente rosnado. Arzeg, observando quem o esperava no centro do vilarejo com a ajuda de um binóculo, riu.

O Caçador gritou com todas as suas forças:

- Eu vou ter o meu tesouro, Talion! Eu vim pegar a chave de Qiratun!

O elfo andoriano não moveu um músculo, permanecia parado como uma estatua, sua mira travada no inimigo, dedo no gatilho.

O talurun partiu para o ataque. A criatura era rápida como um raio, cada passo seu era um salto e ele e seu montador se aproximavam rapidamente.

Arzeg também sacou sua arma, uma pistola de plasma, antiga mas letal.

Cada pisada era um terremoto. Talion começou a tremer, não tremia assim há muito tempo.

Arzeg se aproximava. Justo quando Talion estava querendo esquecer a como usar um rifle de plasma.

O monstro escamoso abriu sua boca. O elfo atirou, duas vezes, acertou em cheio.

O réptil de outro mundo tombou, sua boca ainda aberta, mas ao invés de uma pegajosa saliva, de dentro dela saia sangue. A criatura estava morta.

Talion suspirou, alívio. Sentiu seu coração bater forte, seu corpo tremia, uma sensação que não sentia desde o tempo que fugia dos exércitos do Lorde dos Insetos, o antigo Imperador de Andrômeda.

Olhou para os pés que tremiam. Quando voltou os olhos à besta caída aos seus pés, viu Arzeg se erguendo.

- Elfo...- Arzeg rosnou.

Talion apontou seu rifle. Um tiro na cabeça, ele pensou. Apertou o gatilho, mas não funcionou. A munição de plasma havia acabado. Estava só ele e Arzeg, e seu insano perseguidor não hesitaria em matá-lo.

Arzeg preparou-se para atirar com sua pistola, mas naquele momento, um tiro o acertou no ombro. Mas não fora Talion quem o disparou. Quando o elfo olhou para trás, viu o velho Girek com uma pistola de plasma.

- Corra, Talion! Fuja, como sempre o fez! - disse o ancião.

O elfo sabia aonde ir. Deixou a cena, um tiroteio a laser, e foi à sua nave. Era um velho cargueiro YTK-2200 da época do Quinto Império Feridiano, estacionado longe de onde Talion estava. O elfo sabia da destreza de Arzeg, tendo o enfrentado muitas vezes no passado, então apressou-se. A força física e agilidade élficas eram notórias, mas Talion estava demais cansado e despreparado para um combate. Sabe-se lá em que nível de poder Arzeg se encontrava.

Tropeçando em pedras, o viajante estelar correu, desviando de disparos lasers enquanto ouvia o grito assustador de seu perseguidor. Virando a cabeça de vez em quando, Talion tinha o vislumbre sinistro de Arzeg atirando descontroladamente em sua direção, um sorriso sádico em seu rosto.

- Eu não quero matar você, Talion! - ele gritava – Só pretendo derrubá-lo, e então pegar a chave e descobrir onde fica Qiratun.

Talion tinha milhares de anos e o peso da idade e dos anos de fuga enfim alcançaram ele. Sentiu, talvez pela primeira vez, uma fadiga verdadeira, digna de um raça inferior. Seus ossos doíam e seu corpo tremiam. Enquanto corria, tocou na chave pendurada de seu pescoço. Ninguém iria pôr as mãos nela.

O elfo olhou para o céu: o grande sol vermelho brilhava ardente.

Finalmente, ele se aproximava da nave. Mas antes de conseguir entrar em seu cargueiro, um tiro acertou Talion, na coxa. Talion gritou, nunca tinha gritado tanto daquele jeito. Pela primeira vez em muito tempo, sentiu uma dor verdadeira.

Mas não sentiu-se derrotado. Entrou no cargueiro e notou que Arzeg não disparava mais. Sua munição havia se esgotado e sacara uma lâmina negra. Em sua face havia um sorriso diabólico.

Talion foi rápido em entrar na espaçonave feridiana e decolar antes que Arzeg se aproximasse. Mas O Caçador não desistiria. Tinha sua própria nave esperando por ele do outro lado da montanha.

No espaço, Talion olhou para o planeta de Girek, agora um mundo alaranjado que se tornava cada vez mais distante. Ele não permitiria que Arzeg o capturasse e nem a chave. Passou tanto tempo protegendo aquele objeto que não via mais pelo o que lutar, não havia mais sentido em nada. Aquela seria sua última batalha, e Talion a venceria.

Travou as cordenadas da nave em direção ao sol vermelho. Talion sabia que não era só a localização daquele sistema em região não mapeada que tornava o planeta um bom esconderijo, mas era também por causa daquela estrela. A gigante vermelha tinha um núcleo extremamente denso, as temperaturas eram altíssimas na superfície. Os elfos andorianos tinham conhecimentos das propriedades únicas daqueles corpos celestes, somente eles poderiam destruir a Fyrumir.

Arzeg vinha logo atrás, sua nave, um verdadeiro caça de combate, era muito mais rápida e não demoraria para alcançar o desgastado cargueiro que carregava Talion e a Fyrumir. Ao perceber o plano do elfo, Arzeg rangeu os dentes.

O caça, armado com dois poderosos lasers, disparou e acertou em cheio a nave feridiana, fazendo-a chacoalhar. Talion sentiu o tremor, mas já não se preocupava.

Coordenadas travas no alvo. O Guardião da Fyrumir, em seu último ato de heroísmo, acionou os motores de dobra e a nave cortou o espaço em direção ao enorme sol escarlate. O cargueiro não precisou nem chegar perto da estrela e toda sua lataria já estava derretida. Com o impulso dos propulsores, o resto foi jogado para frente em velocidades próximas da luz e tudo que estava na nave, incluindo Fyrumir e seu protetor, foram dizimados.

Poucos segundos depois de se jogar contra a estrela, Arzeg, em total desespero, fez o mesmo, acionando seu sistema de dobra espacial e atirando-se contra a colossal esfera de plasma.

Assim terminou a história da Fyrumir, a lendária chave que abriria as portas de Qiratun, e de Talion de Andor, seu guardião. Nunca mais se ouviu falar sobre a mística chave ou sobre o planeta esquecido, a não ser na forma de uma lenda boba contada para crianças.

Mas há quem diga que em Qiratun o poder dos deuses ainda resida, esperando para ser despertado.


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