Luke não conhecia o
mundo além daqueles muros. Ocasionalmente, seus donos o levavam para
passear, mas não o permitiam que seguisse o seu rumo pois estava
sempre preso por uma corrente. Luke respeitava muito os seus donos.
Davam-lhe comida e abrigo, saúde e proteção. Luke sabia que
existia mais lá fora, um mundo inteiro a ser descoberto. Mas mesmo
assim, o jovem cão labrador não se atrevia a fugir de seu lar, onde
mora o conforto, e explorar aquele universo exterior.
O mundo de Luke era
basicamente aquele quintal cercado pela parede da casa e por quatro
muros. Quando chovia, Luke refugiava-se em sua pequena casinha que
tornava-se uma fonte de muita claustrofobia para o animal durante
longos temporais.
Mas não estava
sozinho naquele mundinho. Pietro estava sempre ali em sua gaiola,
vigiando Luke e imitando seus latidos. O papagaio havia chegado na
casa bem antes de Luke, que chegara ainda filhote (nem se recordava
direito do primeiro dia na casa) e tinha o respeito e até admiração
de Luke, que via sabedoria na ave engaiolada.
Luke contava ao seu
companheiro papagaio sobre os sonhos que tinha sobre o mundo lá
fora. Quando um avião sobrevoava a casa, Luke não tirava os olhos
do céu. O cão dizia:
- Talvez um dia eu
saia daqui, Pietro, e explore até mesmo os céus!
- Duvido. Eu, que
sou um papagaio e posso voar, estou preso aqui. Como espera que um
cachorro como você saia voando?
Pietro ria, mas Luke
não ligava.
Assim foi a vida do
cão Luke por um bom tempo. A sede de aventura crescia dentro dele e,
embora não descartasse o amor pelos donos, começou com o tempo a
questionar as intenções daqueles humanos para com ele. Essas
indagações que surgiram de maneira natural na mente do cão
ganharam força com a chegada de Milly, uma gata.
No começo, ela
surgia de vez em quando só para tentar comer um pouco da ração de
Luke, porém, a gatinha era ameaçada pela longa fileira de presas do
labrador. Magra e de miado fraco, não era certa a origem de Milly,
mas assim que ela chegava, normalmente ficando sobre o muro, a lamber
suas patas, colocava Luke para pensar.
- Não vai me dar um
pouco da sua comida, cão? - ela disse certa vez sobre o muro.
- Nem pensar! - Luke
respondeu - Esta é minha refeição. Os meus donos deram para mim.
- Donos? Seja como
eu, cão, sem donos. Nós gatos da rua não vivemos presos como você.
E lhe garanto que existem muitos cães de rua e selvagens, sem donos,
por aí. E há também papagaios que voam livres pelos céus - a gata
olhou para Pietro.
- Eu gosto de meus
donos - disse Luke.
- Mas tem certeza
que eles gostam de você? - a gata disse - Acorde. Você só é mais
um boneco de estimação para eles.
Deu um pulo para o
outro lado e sumiu.
Luke ficou pensando
naquilo por dias e dias. Será que seus donos realmente lhe davam o
valor que ele pensava? Ele sabia que os seus donos humanos tinha um
filhote da espécie deles. Mas Luke sabia que aquele pequeno humano
não era de estimação como Luke. O que, afinal, era Luke para eles?
Na vez seguinte que
foi levado para passear, Luke observou com mais clareza o universo
que o rodeava. Viu outros donos levando seus cães para passeio,
todos como Luke, presos por uma corrente. Viu uma garota na porta de
uma casa com um coelho na mão. O coelho lutava para escapar, mas a
garota humana o puxava para entre seus braços. Viu pássaros voando
pelos céus e se lembrou de Pietro, que vivia preso em sua gaiola.
Luke então viu dois cães de rua, mas estes não estavam presos ou
eram segurados por alguém, estavam livres.
Liberdade,
escravidão, Luke não se esqueceria daquelas palavras.
Quando voltou do
passeio, tanto Luke quanto os humanos ficaram chocados com o que
viram.
Pietro estava morto.
Os humanos chegaram a conclusão errônea de que o papagaio tinha
preso seu pescoço entre as grades da gaiola e se enforcado. Mas Luke
sabia o que tinha acontecido, sabia que Pietro não seria tão
estúpido para morrer daquele jeito. Pietro tinha se matado. Luke
sabia que sim.
O cão ficou chocado
com aquilo e por muitos dias ficou deprimido, refletindo sobre sua
condição de escravo, uma condição compartilhada por todos os
bichos de estimação. Tão terrível era aquela existência que
tinha levado Pietro ao suicídio. Poucos dias depois da morte do
papagaio, os humanos arranjaram um novo pássaro, dessa vez um
periquito jovem e energético.
- Olá! Sou Dennis.
Sou um periquito! É tão bom te conhecer!
Mas Luke tinha se
fechado, não queria mais saber de conversas. Em sua mente, estava
arquitetando um plano para fugir daquela casa. Um plano simples que
dependeria somente do uso de sua mais pura essência canina: a
ferocidade.
Luke não tinha mais
amor pelos donos. Não eram mais seus amigos. Um ódio por eles
crescia dentro do labrador por aqueles humanos imundos que o
acorrentavam, não só ele mas sua espécie inteira e muitas outras
espécies. Os animais de estimação não eram mais que um
divertimento para aqueles bípedes. Luke não aguentava mais.
Noutro dia em que o
levaram para passear pela rua, Luke viu a oportunidade de escapar.
Assim que seu dono e ele já estavam bem longe de casa e sem ninguém
por perto, Luke virou-se e atacou o homem no braço com suas presas
pontudas. O homem caiu no chão, sangrando e sentindo uma dor
agoniante. Ao cair, soltou a corrente que se ligava à coleira de
Luke e o labrador viu o momento perfeito de fugir dali.
Adentrou uma mata
escura e fechada e continuou seguindo por ela até certo ponto em que
percebeu estar longe de qualquer presença humana. O cão andou
muito, tomou chuva (dessa vez não tinha sua casinha) e a escuridão
assustadora do mundo selvagem. Sentiu fome e pela primeira vez
cassou, conseguiu matar um teiú, o sangue que escorria de sua boca
era sensação nova para Luke.
Finalmente, depois
de muito andar, encontrou um cão enorme e preto. O cachorro o
cheirou e depois disse para segui-lo.
Chegou a uma casa
velha e abandonada que havia em uma clareira no mato. Não havia
humanos lá, mas estava cheia de animais. Cães, gatos, aves,
coelhos, hamsters e tartarugas, além de outras espécies habitavam a
casa que era como um santuário para animais de estimação que
haviam abandonado o conforto da vida entre os humanos.
Uma gata saudou Luke
e o cachorro a reconheceu imediatamente. Era Milly.
- Olá, cão. Está
gostando da liberdade?
Luke respondeu com
um uivo. Ele não trocaria sua liberdade por nada.