5 de abril de 2020

Liberdade


Luke não conhecia o mundo além daqueles muros. Ocasionalmente, seus donos o levavam para passear, mas não o permitiam que seguisse o seu rumo pois estava sempre preso por uma corrente. Luke respeitava muito os seus donos. Davam-lhe comida e abrigo, saúde e proteção. Luke sabia que existia mais lá fora, um mundo inteiro a ser descoberto. Mas mesmo assim, o jovem cão labrador não se atrevia a fugir de seu lar, onde mora o conforto, e explorar aquele universo exterior.

O mundo de Luke era basicamente aquele quintal cercado pela parede da casa e por quatro muros. Quando chovia, Luke refugiava-se em sua pequena casinha que tornava-se uma fonte de muita claustrofobia para o animal durante longos temporais.

Mas não estava sozinho naquele mundinho. Pietro estava sempre ali em sua gaiola, vigiando Luke e imitando seus latidos. O papagaio havia chegado na casa bem antes de Luke, que chegara ainda filhote (nem se recordava direito do primeiro dia na casa) e tinha o respeito e até admiração de Luke, que via sabedoria na ave engaiolada.

Luke contava ao seu companheiro papagaio sobre os sonhos que tinha sobre o mundo lá fora. Quando um avião sobrevoava a casa, Luke não tirava os olhos do céu. O cão dizia:

- Talvez um dia eu saia daqui, Pietro, e explore até mesmo os céus!

- Duvido. Eu, que sou um papagaio e posso voar, estou preso aqui. Como espera que um cachorro como você saia voando?

Pietro ria, mas Luke não ligava.

Assim foi a vida do cão Luke por um bom tempo. A sede de aventura crescia dentro dele e, embora não descartasse o amor pelos donos, começou com o tempo a questionar as intenções daqueles humanos para com ele. Essas indagações que surgiram de maneira natural na mente do cão ganharam força com a chegada de Milly, uma gata.

No começo, ela surgia de vez em quando só para tentar comer um pouco da ração de Luke, porém, a gatinha era ameaçada pela longa fileira de presas do labrador. Magra e de miado fraco, não era certa a origem de Milly, mas assim que ela chegava, normalmente ficando sobre o muro, a lamber suas patas, colocava Luke para pensar.

- Não vai me dar um pouco da sua comida, cão? - ela disse certa vez sobre o muro.

- Nem pensar! - Luke respondeu - Esta é minha refeição. Os meus donos deram para mim.

- Donos? Seja como eu, cão, sem donos. Nós gatos da rua não vivemos presos como você. E lhe garanto que existem muitos cães de rua e selvagens, sem donos, por aí. E há também papagaios que voam livres pelos céus - a gata olhou para Pietro.

- Eu gosto de meus donos - disse Luke.

- Mas tem certeza que eles gostam de você? - a gata disse - Acorde. Você só é mais um boneco de estimação para eles.

Deu um pulo para o outro lado e sumiu.

Luke ficou pensando naquilo por dias e dias. Será que seus donos realmente lhe davam o valor que ele pensava? Ele sabia que os seus donos humanos tinha um filhote da espécie deles. Mas Luke sabia que aquele pequeno humano não era de estimação como Luke. O que, afinal, era Luke para eles?

Na vez seguinte que foi levado para passear, Luke observou com mais clareza o universo que o rodeava. Viu outros donos levando seus cães para passeio, todos como Luke, presos por uma corrente. Viu uma garota na porta de uma casa com um coelho na mão. O coelho lutava para escapar, mas a garota humana o puxava para entre seus braços. Viu pássaros voando pelos céus e se lembrou de Pietro, que vivia preso em sua gaiola. Luke então viu dois cães de rua, mas estes não estavam presos ou eram segurados por alguém, estavam livres.

Liberdade, escravidão, Luke não se esqueceria daquelas palavras.

Quando voltou do passeio, tanto Luke quanto os humanos ficaram chocados com o que viram.

Pietro estava morto. Os humanos chegaram a conclusão errônea de que o papagaio tinha preso seu pescoço entre as grades da gaiola e se enforcado. Mas Luke sabia o que tinha acontecido, sabia que Pietro não seria tão estúpido para morrer daquele jeito. Pietro tinha se matado. Luke sabia que sim.

O cão ficou chocado com aquilo e por muitos dias ficou deprimido, refletindo sobre sua condição de escravo, uma condição compartilhada por todos os bichos de estimação. Tão terrível era aquela existência que tinha levado Pietro ao suicídio. Poucos dias depois da morte do papagaio, os humanos arranjaram um novo pássaro, dessa vez um periquito jovem e energético.

- Olá! Sou Dennis. Sou um periquito! É tão bom te conhecer!

Mas Luke tinha se fechado, não queria mais saber de conversas. Em sua mente, estava arquitetando um plano para fugir daquela casa. Um plano simples que dependeria somente do uso de sua mais pura essência canina: a ferocidade.

Luke não tinha mais amor pelos donos. Não eram mais seus amigos. Um ódio por eles crescia dentro do labrador por aqueles humanos imundos que o acorrentavam, não só ele mas sua espécie inteira e muitas outras espécies. Os animais de estimação não eram mais que um divertimento para aqueles bípedes. Luke não aguentava mais.

Noutro dia em que o levaram para passear pela rua, Luke viu a oportunidade de escapar. Assim que seu dono e ele já estavam bem longe de casa e sem ninguém por perto, Luke virou-se e atacou o homem no braço com suas presas pontudas. O homem caiu no chão, sangrando e sentindo uma dor agoniante. Ao cair, soltou a corrente que se ligava à coleira de Luke e o labrador viu o momento perfeito de fugir dali.

Adentrou uma mata escura e fechada e continuou seguindo por ela até certo ponto em que percebeu estar longe de qualquer presença humana. O cão andou muito, tomou chuva (dessa vez não tinha sua casinha) e a escuridão assustadora do mundo selvagem. Sentiu fome e pela primeira vez cassou, conseguiu matar um teiú, o sangue que escorria de sua boca era sensação nova para Luke.

Finalmente, depois de muito andar, encontrou um cão enorme e preto. O cachorro o cheirou e depois disse para segui-lo.

Chegou a uma casa velha e abandonada que havia em uma clareira no mato. Não havia humanos lá, mas estava cheia de animais. Cães, gatos, aves, coelhos, hamsters e tartarugas, além de outras espécies habitavam a casa que era como um santuário para animais de estimação que haviam abandonado o conforto da vida entre os humanos.

Uma gata saudou Luke e o cachorro a reconheceu imediatamente. Era Milly.

- Olá, cão. Está gostando da liberdade?

Luke respondeu com um uivo. Ele não trocaria sua liberdade por nada.

30 de março de 2020

Crônica: Quarentena


Essa quarentena tem sido, para mim e meus conterrâneos, até que fácil de suportar. Nunca fui muito saideiro antes de tudo isso começar. Mas imagino o que os moradores de grandes cidade, como São Paulo ou Nova Iorque, devem estar passando. Devem estar putos, fervendo de frustração, que nem o meu achocolatado que eu tomo bem quentinho quase toda noite.

Mas quem devemos culpar?

Tem gente que culpa a China. Alguns teóricos da conspiração até chegaram a dizer que foi a China que criou o coronavírus com o objetivo de "desestabilizar a economia de países ocidentais". Para mim isso é a maior bosta que eu já ouvi e é justamente coisa que a gente ouviria de certos políticos que acreditam que a terra é plana e que existem mamadeiras eróticas.

Tem quem culpa o Bolsonaro pela nossa situação atual. Milhares de casos. O idiota ainda nega a seriedade da situação, dizendo que é uma gripezinha. Espero que ele saiba que está no grupo de risco, pois tem mais de sessenta.

Então acho que podemos culpar o Bolsonaro. Sempre temos que culpar alguém. Culpar é bom, é divertido. Sentir raiva é um prazer gostosa, coisa que a gente precisa nessa quarentena. Até aqui na minha cidade tem coisa fechando. Academia fechada, escola fechada.

Esse achocolatado que eu tô tomando? Na cara do Bolsonaro, fervendo.

29 de março de 2020

As Lições de Pitágoras


Marquinhos jogou a mochila sobre a cama e sentou-se em sua mesa de estudos, mãos na testa. O garoto não acreditava na nota que tinha tirado em matemática. Como posso ser tão ruim nesta matéria e me dar tão bem nas outras?, ele se perguntava.

Seu professor lhe dera mais uma chance de fazer uma nova prova que decidiria seu futuro naquela matéria, mas o aluno do ensino fundamental não tinha muitas esperanças. Obedecendo a sua mãe, foi logo para o quarto, mas não conseguiu estudar.

O assunto era "aplicação do teorema de Pitágoras" e só de ouvir aquele nome grego esquisito, Marquinhos sentia cólicas.

Para a sua surpresa, havia alguém para ajudá-lo. Enquanto estudava, faltando dois dias para a prova onde seus conhecimentos seriam novamente testados, Marquinhos recebeu uma inesperada visita. Um homem barbudo e de toga surgiu, em uma piscar de olhos, como mágica, em seu quarto.

Tão desorientado quanto Marquinhos, o homem disse, olhando para os lados:

- Onde estou?!

- Quem é você? - Marquinhos perguntou.

- Sou Pitágoras, um matemático e filósofo! E quem é você?

- Sou Marquinhos... - o garoto respondeu, cabisbaixo - Você é mesmo Pitágoras?

- O próprio. Preciso voltar à Grécia imediatamente, os meus discípulos estão me aguardando...

- O que você sabe sobre o teorema de Pitágoras? - Marquinhos o interrompeu.

O homem, que já tinha fios brancos em sua longa barba, ergueu as sobrancelhas e soltou um risinho.

- Sei tudo! Eu inventei, ou melhor, descobri este teorema.

- Pode me ensinar? Preciso de ajuda para a prova de amanhã. Sabe, eu não sou bom em matemática...

- Como não? - o velho espantou-se - Matemática é a base de tudo. O universo é feito de números, não sabia? Os números são responsáveis pela harmonia das coisas e são tão parte do mundo onde vivemos quanto o ar que você respira, garotinho.

O garoto baixou a cabeça, triste, olhando para o livro aberto sobre sua mesa de estudos.

- É para a prova de amanhã, moço. - Marquinhos disse.

- Bem - Pitágoras continuou - No triângulo retângulo, uma figura muito importante, temos uma hipotenusa, que é a aresta que está de frente para o ângulo de noventa graus, e dois catetos, que são as duas outras arestas. O teorema de Pitágoras, este sou eu, é usado para descobrir o valor da hipotenusa. Para isso, somamos os valores dos catetos ao quadrado.

Marquinhos coçou sua cabecinha cabeluda.

- Me dá um exemplo, seu Pitágoras?

- Imagine um triângulo retângulo que tem uma hipotenusa no valor de "x". Um dos catetos tem o valor de dois e o outro tem o valor de três. Agora faça as contas, garoto.

- Dois ao quadrado é...

- Quatro - completou Pitágoras.

- Três ao quadrado é nove. Então fica "quatro mais nove"...

- Que é igual a treze. O valor da hipotenusa é treze. Viu? O poder da matemática!

Marquinhos, finalmente compreendendo o teorema, se pôs a folhear seu livro e a responder as várias questões, dessa vez com sua língua para fora em sinal de esforço.

Pitágoras riu e ,vendo que já tinha cumprido seu dever, dirigiu-se a porta e então começou a perambular pela casa do menino.

Pitágoras pouca sabia, no entanto, que a casa estava longe de vazia. Enquanto Marquinhos aventurava-se no mundo harmonioso dos números, ele pôde ouvir os gritos da mãe vindos da cozinha:

- Marquinhos! Tem um mendigo aqui em casa!

Depois daquele dia, Marquinhos nunca mais teve problemas com matemática.

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28 de março de 2020

Um dragão em meu banheiro


Sempre fui fascinado pelas histórias que envolviam cavaleiros, dragões e princesas em perigo. Costumava me imaginar, quando menino, como um alto e forte espadachim lutando contra feras místicas no topo de montanhas e salvando a minha amada das garras do inimigo. Mas eu cresci e aqui estou: um homem de trinta anos que trabalha muito e dorme pouco morando em uma pensão de tamanho desconfortável.

Porém, recentemente, como um sinal de alguma força superior, fui surpreendido pela visita de um réptil escamoso, personagem tão frequente em minhas fantasias infantis. Ele preferiu, entretanto, não bater à porta e achou mais interessante - talvez em uma tentativa de me surpreender, o espertinho - procurar abrigo em meu banheiro. Foi uma boa decisão por parte daquele dragão, afinal o meu banheiro (um dos três cômodos de minha humilde casa) era aconchegante e úmido, assim como um ninho de dragão.

A fera era perigosa e exibia as presas assim que eu tentava me aproximar. Não arrisquei nenhum tipo de contato que não fosse visual, pois o próprio vislumbre daquela criatura já era assustador. Fui obrigado a usar o banheiro do vizinho por dias, sob o pretexto de que o meu estava "com problemas", para não enfrentar o monstro mitológico que tinha se mudado para debaixo de meu chuveiro.

Mas como em toda história de cavaleiro onde há um dragão, há também uma princesa. Em uma de minhas idas ao supermercado, me deparo com uma antiga colega de escola, Ângela. Era grande meu fascínio e admiração por aquela donzela (na época de escola era uma donzela, nos dias de hoje não sei dizer), por isso não hesitei em pedir seu número de telefone. Minha empreitada romântica com Ângela teve sucesso e depois de um encontro caloroso cheguei a convidá-la aos meus aposentos, sem me preocupar em qual seria sua reação ao se deparar com a modéstia de meu lar.

Somente chegando em casa fui me lembrar da presença de um dragão em meu banheiro. É de se estranhar que alguém se esqueça de um convidado tão ilustre, mas conjecturo que eu estava sob o efeito da "embriaguez do amor", como chamam os poetas, para não me recordar da fera que ali residia.

- Vamos para o seu quarto? - Ângela perguntou retoricamente, passando seu dedo indicador em minha testa suada, gesto seu que denotava intenções obviamente sexuais, mas pobre da moça mal sabia que a poucos metros de onde estávamos havia um dragão.

O suor em minha testa era, claro, fruto de meu temor. Mas, como um bom cavaleiro, nada temia. Naquele instante, ressuscitei todas as fantasias que eu tinha quando criança. Limpei o suor da testa e pedi que Ângela se afastasse. Fui à minha "cozinha" (a sala de estar e cozinha eram no mesmo cômodo) e da gaveta tirei uma faca de lâmina afiadíssima, aquisição recente que eu tinha feito com o único propósito de cortar cebolas, agora seria o instrumento heroico de abater dragões.

- O que está fazendo? - a moça novamente me indagou, dessa vez com uma expressão assustada, talvez pensando que ela fosse a vítima. Acalmei-a e a informei sobre minhas intenções com aquela arma. Em seguida, me dirige ao banheiro (uma jornada de três metros) e abri a porta, meu braço já em posição de ataque. Ângela estava atrás de mim.

A fera estava lá, terrível como sempre. Ela abriu sua boca, pronta para soltar a labareda de fogo ardente, pude sentir o ar esquentando, mas não conseguiu, fui mais rápido. Penetrei com minha faca em seu pescoço carnudo e escamoso, a besta se contorcia como uma serpente, o grito de dor era de doer os ouvidos. Continuei golpeando meu inimigo. Ângela só não gritava porque tinha a mão na boca, a pobre incrédula.

A cena terminou somente com a queda do dragão sob sua poça de sangue frio. Larguei a minha espada, embora parecesse mais uma faca, e me aproximei de minha princesa.

Beijei Ângela, como um cavaleiro que conquista o coração da bela donzela. A expressão de horror no rosto da moça sumira. O resto da noite não precisa ser contado. O cavaleiro vencera o dragão e se tornara um herói lendário.

21 de março de 2020

Urubus


Seu Jacinto olhou para a sua roça pela janela de sua casa. A roça era pequena, alguns metros quadrados no fundo de seu quintal, mas era motivo de orgulho para o velho senhor. Lembrava-se de um tempo em que aquilo tudo significava muito mais para ele.

Analisou as paredes da casa, tocando-as com as suas mãos morenas e enrugadas. O reboco desgrudava-se dos tijolos, revelando a fundação rústica da antiga residência. Ali já fora um dia tudo para seu Jacinto, aquele velho homem. Ali tinha nascido e crescido, tinha brincado com os irmãos, brigado com os irmãos, tinha construído sua família de seis filhos, um lugar apertado mas bom para se viver.

Agora parecia uma ruína.

Jacinto saiu. O sol torrava a sua pele e o silêncio era agonizante. A vegetação ao redor da sua casa, uma floresta de árvores retorcidas e escuras, ainda mais com a dúzia de urubus sobrevoando o terreno em busca de alguma carniça que Jacinto suspeitava ser ele mesmo, davam ao ambiente uma natureza infernal e deprimente. Tudo parecia morto. Mas seu Jacinto lembrava-se de quando aquilo era tudo vivo.

Lembrava-se de quando o seu pai o levava para trabalhar na roça do seu Antônio, milhas dali. Lembrava-se da primeira vez que montou num cavalo, de quando casou-se, de quando teve o primeiro filho. Tudo naquela casa. Mas agora estava vazia. Seus filhos todos tinham viajado para a cidade e sua mulher já tinha falecido.

Entrou e voltou com uma enxada. Estava tudo morto, mas seu Jacinto não aceitava. Pisou na roça e começou a roçar e roçar, como fazia na juventude. Roçou até seus braços tremerem, até começar a suar como um porco e a lacrimejar como uma criança.

De repente, caiu no chão, derrotado. Seu Jacinto olhou para o céu, os urubus estavam descendo.