Eu não me considerava
feliz. Odiava minha vida. Minha mulher era uma chata e meus dois
filhos eram duas pestes. Meu emprego era terrível e eu tinha um
péssimo salário, mal dava para sustentar minha família horrível.
Estava atolado em dívidas. Vivia na base dos antidepressivos,
remédios inúteis. As bebidas não resolviam, só pioravam.
Eu era infeliz assim até
aceitar meu lado animal.
Queria viver de maneira
simples, de maneira primitiva. Trabalho? Crianças? Contas? Isso tudo
é desnecessário. O essencial da vida é comer, dormir e fazer o
resto das nossas necessidades. Foi para isso que nascemos. A condição
humana, isso é, a construção de uma sociedade com regras e normas
estabelecidas, é falha.
Então decidi abandonar o
homem dentro de mim. Mas tinha que escolher uma espécie nova. Eram
muitas opções. Pensei em um gato, mas queria algo mais energético.
Cavalos são criaturas nobres mas não serviria à minha causa ser
subjugado por outro humano.
Cachorro. Escolha perfeita.
Cães são bonitos e inteligentes. Além disso, eu contaria com uma
fileira de presas afiadas e a permissão para perambular pelas ruas
da minha cidade procurando por comida e árvores onde eu poderia
mijar.
Assim, aconteceu um dia que
eu tirei as minhas roupas, fiquei de quatro e comecei a me comportar
como um cão. Comecei a me lamber e a morder ossos. Minha esposa
chorou muito naquele dia, a coitada não entendia. Antes de abraçar
a causa eu tentei convencê-la a se unir a mim, mas a idiota acha
mais importante pagar os impostos idiotas dela. Tola.
Tive que sair de
casa. Não precisava de uma casa, cães não tem casa. O mundo é minha
casa, posso urinar onde bem entender e defecar onde bem quiser.
Tentei, inicialmente, fazer
amizade com outros cães da vizinhança. Porém, acho que não
gostaram de mim. Me cheiraram muito e latiram muito contra mim e eu,
claro, lati em resposta. Falava bem a língua deles e tentei comunicar
respeito, mas eles não pareceram me aceitar.
Viajei grandes distâncias
fazendo tudo que um cachorro tem direito. Uivei durante a madrugada,
briguei com outros cães e até conheci uma cadela bonitinha (não
deu certo, acho que eu não fazia o tipo dela).
Enfim, conheci uma
lanchonete onde jogavam os restos de comida em uma área no quintal.
Humanos tolos, por que se incomodam em criar uma casa para servir
comida se vão terminar jogando uma parte no lixo? O lugar acabou se
tornando uma parada diária para mim.
Foi nos fundos desta
lanchonete onde conheci... onde conheci meu amigo. É um cão, como
eu. Mas não tem nome. Cães não tem nome, esse é um ponto
importante. Animais não têm nome, é uma invenção humana idiota.
Para saber quem é quem basta cheirar o rabo. Enfim, esse cão e eu
viramos muito amigos e passamos o dia todo vadiando pela cidade.
Formamos uma grande conexão, acho que é porque ele sabe o que
significa ser um cachorro. Tem tudo a ver com a liberdade, somos
livres para latir e rosnar.
Agora, aqui estou, uivando
para a lua cheia. Posso ouvir os uivos que seguem o meu em resposta.
É um coro, um coro que grita simultaneamente "nós somos
irmãos". Tudo bem que alguns cachorros da vizinhança nunca me
aceitaram, mas eles sabem, no fundo que sou um deles. Humanos são
complicados, são cheios de regulamentos. Mas ser cachorro é ser
livre.
Enquanto eu viver aceitando
quem eu sou, só preciso me preocupar com uma coisa: correr atrás de
meu rabinho e coçar meu pescoço com a pata traseira. Como é bom
ser um cachorro.
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