26 de outubro de 2019

Vida de Cachorro

Outro dia eu vi um documentário na televisão sobre hienas. Achei muito interessante. São criaturas que transpiram selvageria, seres que têm como a própria natureza a bestialidade. Aquele programa me tocou, senti inveja daquelas criaturas tão puras e felizes.

Eu não me considerava feliz. Odiava minha vida. Minha mulher era uma chata e meus dois filhos eram duas pestes. Meu emprego era terrível e eu tinha um péssimo salário, mal dava para sustentar minha família horrível. Estava atolado em dívidas. Vivia na base dos antidepressivos, remédios inúteis. As bebidas não resolviam, só pioravam.

Eu era infeliz assim até aceitar meu lado animal.

Queria viver de maneira simples, de maneira primitiva. Trabalho? Crianças? Contas? Isso tudo é desnecessário. O essencial da vida é comer, dormir e fazer o resto das nossas necessidades. Foi para isso que nascemos. A condição humana, isso é, a construção de uma sociedade com regras e normas estabelecidas, é falha.

Então decidi abandonar o homem dentro de mim. Mas tinha que escolher uma espécie nova. Eram muitas opções. Pensei em um gato, mas queria algo mais energético. Cavalos são criaturas nobres mas não serviria à minha causa ser subjugado por outro humano.

Cachorro. Escolha perfeita. Cães são bonitos e inteligentes. Além disso, eu contaria com uma fileira de presas afiadas e a permissão para perambular pelas ruas da minha cidade procurando por comida e árvores onde eu poderia mijar.

Assim, aconteceu um dia que eu tirei as minhas roupas, fiquei de quatro e comecei a me comportar como um cão. Comecei a me lamber e a morder ossos. Minha esposa chorou muito naquele dia, a coitada não entendia. Antes de abraçar a causa eu tentei convencê-la a se unir a mim, mas a idiota acha mais importante pagar os impostos idiotas dela. Tola.

Tive que sair de casa. Não precisava de uma casa, cães não tem casa. O mundo é minha casa, posso urinar onde bem entender e defecar onde bem quiser.

Tentei, inicialmente, fazer amizade com outros cães da vizinhança. Porém, acho que não gostaram de mim. Me cheiraram muito e latiram muito contra mim e eu, claro, lati em resposta. Falava bem a língua deles e tentei comunicar respeito, mas eles não pareceram me aceitar.

Viajei grandes distâncias fazendo tudo que um cachorro tem direito. Uivei durante a madrugada, briguei com outros cães e até conheci uma cadela bonitinha (não deu certo, acho que eu não fazia o tipo dela).

Enfim, conheci uma lanchonete onde jogavam os restos de comida em uma área no quintal. Humanos tolos, por que se incomodam em criar uma casa para servir comida se vão terminar jogando uma parte no lixo? O lugar acabou se tornando uma parada diária para mim.

Foi nos fundos desta lanchonete onde conheci... onde conheci meu amigo. É um cão, como eu. Mas não tem nome. Cães não tem nome, esse é um ponto importante. Animais não têm nome, é uma invenção humana idiota. Para saber quem é quem basta cheirar o rabo. Enfim, esse cão e eu viramos muito amigos e passamos o dia todo vadiando pela cidade. Formamos uma grande conexão, acho que é porque ele sabe o que significa ser um cachorro. Tem tudo a ver com a liberdade, somos livres para latir e rosnar.

Agora, aqui estou, uivando para a lua cheia. Posso ouvir os uivos que seguem o meu em resposta. É um coro, um coro que grita simultaneamente "nós somos irmãos". Tudo bem que alguns cachorros da vizinhança nunca me aceitaram, mas eles sabem, no fundo que sou um deles. Humanos são complicados, são cheios de regulamentos. Mas ser cachorro é ser livre.

Enquanto eu viver aceitando quem eu sou, só preciso me preocupar com uma coisa: correr atrás de meu rabinho e coçar meu pescoço com a pata traseira. Como é bom ser um cachorro. 

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