Aquele foi, literalmente, o
fim do Paraíso. Éden nunca mais. Dali em diante eles estariam
sozinhos. Era o mundo e eles.
Eva ainda estava chocada com
o que havia acontecido. Não teve onde esconder o rosto envergonhado.
Por que fui comer aquela fruta, ela passou tempos pensando. E que
cobra era aquela? E ficava pior quando pensava no que estava por vir.
Gravidez? Ela não estava a fim de sofrer dores atrozes para conceber
um filho. E por que tinham que conceber daquele jeito? Bastava tirar
uma das costelas do parceiro como Deus fizera uma vez.
Adão estava com muita raiva
de Eva. Enquanto viviam no Éden, Adão tinha uma mentalidade muito
mais inocente. Não enxergava o ruim em Eva. Tudo era bom. Mas depois
que Deus os apresentou à vergonha, tudo que era de ruim ficou claro.
Ficou claro que a esposa (não gostava desse termo) era estúpida.
Foi tola o suficiente para dar ouvidos a uma cobra falante, besta que
nem ao menos constava nos planos divinos. Por causa dela, Adão
perdeu tudo que tinha e já não era mais o mesmo homem virtuoso e
puro como antes. Era primitivo, rude e até bárbaro. Uma sombra do
que já foi. Assim era tudo para ele.
E tinham que sobreviver, a
partir do dia em que foram expulsos, em uma terra seca e árida. Não
havia verde como antes. Os animais, antes pacíficos, agora eram
selvagens e procuravam matar o casal. Por isso, precisaram buscar
abrigo primeiramente em uma caverna e depois em uma cabana mal feita
que conseguiram erguer. A água era escassa, disponível apenas em
algumas fontes isoladas e cercadas por ferozes competidores.
Assim seria a vida. O preço
a pagar pelo pecado.
Passavam o dia sem se falar.
Apenas sobreviviam. Não suportavam um ao outro. O pecado havia os
transformado quase que em outras criaturas. Não eram mais os mesmos.
Passaram a ser humanos. Palavra nova era aquela. Estranha. Sentiam-se
quase que como diferentes entidades dentro do mapa divino. Tinham
espírito e alma, disso sabiam, mas desde o dia em que foram expulsos
tinham a sensação de estarem mais entrelaçados ao próprio chão
em que pisavam, como que se fizessem parte dele. "Do pó viestes
e ao pó retornarás". Eram fracos, mundanos, estúpidos e suas
vidas, embora durassem muito mais do que a maioria das criaturas,
eram frágeis.
Entretanto, havia algumas
coisas boas. Dentre as novas descobertas estava o amor carnal. Com a
criação da vergonha, foi necessário algo para cobrir suas partes
íntimas e para protegê-los de outras adversidades como o frio.
Devido à intensa convivência, o casal foi, entre desentendimentos,
desenvolvendo uma ternura não vista antes na face da Terra. Suas
vestimentas tornaram-se véus para segredos íntimos que aos poucos
foram sendo desvendados. Deitaram-se incontáveis vezes e as palavras
amor, afeto e tesão foram inventadas, algo inexistente no Éden.
Porém, era um amor envolto em paixão, não era puro, apenas físico.
Uma necessidade meramente humana de saciar os mais profundos desejos.
Quanto a Deus, este estava
distante. Não sentiam a Sua presença. Parecia que não existia.
Sabiam, na verdade, que Ele era real, mas ultimamente Seu Nome mais
soava como uma ideia. Adão, certo dia, chegou a pensar que talvez
Ele fosse uma invenção e que toda a vida que se lembravam te ter
tido no Jardim fora uma ilusão ou um sonho extremamente realista que
tiveram. Deus? Palavra curiosa, mas ainda carregada de poder.
Os dias passaram e Adão,
ainda irado, começou a bolar um plano: e se matasse Eva? Tal
mirabolância surgiu enquanto caçava em um campo perto de onde
viviam. Adão era um bom caçador, chegava a pegar grandes e gordos
animais. Lebres eram saborosas quando cozidas. Havia aves terrestres
de peito farto que enchiam bem a barriga do casal. E Adão caçava
com vontade, com vigor. Se lembrava de uma época em que considerava
todas as criaturas da Terra como amigas, como companheiras. Agora
agia com violência para com elas. Ou eram suas presas ou suas
competidoras. Tinha sangue nos olhos enquanto corria atrás de algum
javali com sua afiada lança. E como era bem afiada. Armas eram outro
invenção pós-Éden. Tudo era brutal naquela nova época,
principalmente para o homem que era mais voraz que a fêmea humana.
Inclusive os pensamentos e as reflexões de Adão. A ideia de matar a
parceira persistia. Tudo poderia voltar ao normal. Talvez existisse
uma chance de retornar ao Paraíso e conseguir o perdão de Deus. Eva
era um problema. O primeiro homem tinha saudades do Éden, saudades
de um tempo em que era só ele e os animais.
Por muito tempo conjecturou
o ato horrendo. Pensou em usar sua lança e dar um golpe fatal em
Eva. Poderia se alimentar do corpo dela. Canibalismo era um termo que
não existia e, portanto, não passava por nenhuma vistoria moral.
Moral nem existia. Era só Adão, Eva e o mundo. Nada de outros
humanos. Um plano perfeito, uma chance de redenção aos olhos do
Criador.
Eva nem suspeitava. Sua
rotina consistia em tomar conta do assentamento, isto é, uma cabana
aos pedaços feita de galhos velhos de árvores. Haviam
estabelecido-se perto de uma pequenina lagoa. Eram os donos dali. E
era ali onde pretendiam ficar. Eva fazia a comida (o fogo, descoberta
recente, ajudava bastante) enquanto o marido caçava. Com o tempo, a
coitada foi sentindo-se cada vez mais solitária. A infelicidade
surgira. A mulher começou a sofrer. Adão era autoritário, mal. Não
a tratava bem e ela não se surpreendia em levar umas surras do
terrível parceiro que Deus a dera. Sentia-se sozinha, como se não
pertencesse àquele planeta, como se o mundo não fosse dela. Houve
muitas noites que ela passou conversando com os astros, buscando um
amigo no meio das estrelas. Adão chegou a chamá-la de louca uma
vez, a primeira doida da História. Mas apesar de tudo, Eva
persistia.
E então, um dia, sentiu
enjoos. Vomitou muito, achou que a hora chegara para finalmente
morrer. Mas aguentou por muito tempo. Quando deu conta, Eva tinha uma
enorme barriga. Não tinha ideia do que estava acontecendo. Adão
estava pasmo com aquilo. Nenhum dos dois se lembrava de Deus os ter
contado sobre algo assim. Mas quando perceberam que o mesmo fenômeno
acontecia a vários animais, ficou tudo claro. Eva seria mãe. Adão
seria pai. A humanidade era a herdeira da Terra. "Crescei e
multiplicai-vos".
Eva ficou assustada e também
maravilhada. Pela primeira vez se sentia com alguém ao seu lado. Não
estava mais sozinha. Teria um filho, uma outra pessoa para realmente
fazer-lhe companhia. Por outro lado, estava com medo do que o futuro
guardava para ela. A criança poderia nascer de qualquer jeito. Seria
como eles ou pior? O que seria ensinado a ela? Menino ou menina?
Quando tempo demoraria para crescer ou será que já sairia de seu
ventre adulta?
Adão não gostou nada
daquilo. Não queria uma terceira pessoa no seu pequeno mundo. Assim
ele sentia-se: o dono de tudo. Será que teria que matar o bebê
também? Não temia fazer isso, já tia pecado o bastante. Não temia
punição de nenhum deus ou demônio. Quando a barriga de Eva já
estava enorme, Adão decidiu sair para caçar e ficou dois dias fora
sob a desculpa de ir procurar uma grande caça. Andou muito. Cruzou
inúmeros riachos e conheceu terras verdes e belas. Pensou consigo
que talvez não precisasse matar Eva e que talvez pudessem ser
felizes juntos. Afinal, foi esta a finalidade que Deus tinha em mente
quando a criou. Mas o mesmo espírito que habitava a Serpente ainda
vagava pelo mundo e conseguiu tocar o coração de Adão. Viu vários
bisões pastando sob um céu estrelado em sua frente e pensou: isso
tudo é meu, é o meu mundo, minhas bestas, meu céu, meu planeta e
minhas estrelas. Afiou sua lança e decidiu voltar para casa,
decidido a matar sua esposa.
Quando voltou deparou-se não
só com Eva, mas com um garotinho em seu colo. Era como Adão, mas
bem pequeno. Tinha ombros curtos, olhos brilhantes e bochechas
gordas. Eva, porém, não percebeu a chegada do marido e ficou a
nanar a criança. Deitada em um leito de palha, seus cabelos eram
como ramos de uma vinheira jogados sobre seu rosto cansado de mãe.
Palavra nova: mãe. E foi a primeira.
Adão veio lentamente por
trás já erguendo sua arma de caça pronto para desferir o golpe
fatal. Foi aí que ele ouviu as palavras proclamadas por Eva,
palavras que mudaram sua vida.
- Eu te amo. - Eva disse
para o bebê.
O amor era uma das muitas
palavras que os dois tinham aprendido. Mas Adão não entendia o que
era aquilo que ela dizia para a criança. Era uma emoção nova que
para o homem era desconhecida. Amor para ela era somente o coito
intenso nas trevas. Como ela poderia amar um serzinho daqueles? Como
era possível dedicar sua vida a uma criatura tão desprezível? Será
que era algo que só as mulheres conheciam? Ou será que Deus tinha
um plano para eles que ainda precisava ser descoberto envolvendo essa
palavra?
De qualquer forma, Adão não
filosofou muito. Sua emoção o dominou. Deixou cair sua lança. O
que teve não foi exatamente pena, mas amor. Amor real. Tocou o ombro
da amada esposa e a beijou na testa e então tomou a criança nos
braços. Brincava de cutucá-la no nariz para a diversão do pequeno,
que ria.
Adão conhecia seu lugar.
Eva não estava mais sozinha. A primeira família.
- Como ele vai se chamar? -
perguntou Adão.
- Cain – Eva respondeu. -
É um lindo nome.
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