16 de novembro de 2019

Amor Marginal


Marcos lembrava-se bem do rosto de sua vítima. O jovem ladrão nunca antes havia visto um rostinho tão lindo. Era de um natureza que por si só desafiava o seu jeito marginal de ser. Aconteceu numa rua pouco movimentada. A moça loira caminhava pelo calçamento, provavelmente voltando do trabalho. Parecia ter condições, admirável como resolveu ir a pé. Pouco ela sabia que Marcos já planejava naquele dia cometer um assalto. Já fora molequinho malandro, criado nas ruas, esperto para a maldade. Roubava para depois vender. Assim funciona o crime. As consequências não são estimadas por esses tipos bandidos. O mesmo valia para Marcos. No momento em que avistou a moça, esta estava de costas para ele. Marcos pilotava uma moto. Não usava capacete e nem óculos, só um boné. Era bandido solitário, mas um prodígio, e era corajoso. Não fora seu primeiro assalto.

- Passa a bolsa! - ele disse, enquanto apontava o revólver na direção da garota, que não era mais velha do que ele.

O velho trabuco tinha anos de uso e mais parecia um ferro-velho. Nem dava mais tanto medo, parecia peça sem uso. Mas a moça, que era de classe, se espantou. Assim que ela se virou, Marcos pôde ver seus lindos olhos que logo o encantaram. Ela tinha uma leveza e boniteza nos modos, mesmo assustada perante a realização do crime. A sua expressão de terror, mesmo realçando os traços grossos de seu rosto, ainda conseguiram conquistar Marcos.

Porém, mesmo sob o efeito do amor à primeira vista, Marcos não hesitou em concluir seu plano maléfico. Tomou a bolsa da moça e foi embora. Antes de ir, entretanto, uma rápida consideração cruzou o consciente do bandido: e seu roubar um beijo de minha vítima? Contudo, não o fez. Pensamento bobo. Acelerou e saiu dali o mais rápido possível. A ideia de ser pego pela polícia fazia cada fibra de seu corpo tremer. Já não era menor de idade e não gostava da ideia de ir para a cadeia.

Mas uma coisa era certeza: apaixonara-se.

Não viu a moça mais. Seu coração, todavia, era dela. Marcos tinha roubado da moça e ela roubado dele. Ladrão rouba ladrão. O que faria? Não parava mais de pensar nela. Voltou para casa, isto é, uma moradia aos pedaços que ficava nos subúrbios. Habitava uma parte pobre e escura da cidade, terra de bandidos como ele. Assim era a vida. E enquanto voltava ao seu lar, fantasiou mil e uma cenas, recriando incontavelmente os eventos de mais cedo enquanto assaltava aquela senhorita. Infelizmente, a única memória que tinha dela consistia de um semblante de medo. Não gostava de pensar naquilo. Fez mudanças quanto a sua cara. Imaginou-a rindo; não conseguiu.

Marcos tinha que fazer algo. Precisava revê-la. A primeira coisa que pensou foi em verificar sua identidade pelo celular roubado. Era bloqueado. Tinha que vendê-lo de qualquer forma. Precisava do dinheiro. O que um ladrão apaixonado poderia fazer? Foi na mesma rua que a assaltara nos dias seguintes, mas nunca mais a viu. Passou muito tempo rodado pelas ruas próximas do ocorrido pateticamente procurando por ela. Nada. Já não pensava mais na vida criminosa a qual tanto dedicava tempo e energia. Só pensava em coisas boas, puras. Com o passar dos dias, pode sentir o seu coração canalizar emoções positivas. Para ele não havia dúvida: estava sob o efeito do amor. Fora picado e o veneno já chegara à sua alma. Sentia-se grato por aquilo, grato pelo amor que sentia. Queria retribuir todas aquelas emoções, todo aquele amor. Marcos queria vê-la mais do que qualquer coisa. Queria tê-la em seus braços, beijá-la, dizer quanto a amava. Era um bandido com muito amor para dar.

Contudo, não conseguia parar de pensar em certos cenários como o de uma possível rejeição por parte dela ou de um amor impossível. Afinal, tratave-se de um reles assaltante, um habitante das mais escusas vielas da cidade, um filho do lado negro da sociedade, um marginal sem futuro. Ela, por outro lado, era talvez uma médica ou algo parecido, uma excepcional membra da sociedade em pleno exercício de suas funções como cidadã, orgulhosa de si e virtuosa. Como poderia terminar bem essa história? Tais considerações mantinham-no acordava durante a noite. Mas mesmo com tantos pesadelos envolvendo uma paixão distante e fria, havia sonhos doces em que se imagina vivendo entre seus seios, provando de seu beijo e cheirando a fragrância que cobria o seu ser. Tais sonhos faziam-no acordar com um largo sorriso no rosto. Marcos não desistiria fácil.

Mirabolou, então, uma ideia que beirava o ridículo. Mas não tinha tempo para discriminar o normal do absurdo. Tinha um plano. Iria atrair a atenção e então, talvez, ela aparecesse para ele. Certo dia, saiu de casa com um revólver em sua mão. Era o mesmo velho trabuco. Chegou a pensar em jogá-lo fora, não gostava de lembrar-se da memória em que ameaçava aquela anjo de mulher com tal grotesca tecnologia. Não precisaria usá-lo. Bastava chamar a atenção de algum policial que circulava em local pública. Chegou perto de um guarda e apontou para ele. Foi simples assim. Foi imediata a reação do oficial, que logo sacou a sua e pôs Marco no chão. Foi rápido.. No minuto seguinte já estava na viatura indo à delegacia com um sorriso no rosto.

As câmeras logo vieram. A melhor ideia que Marcos já tivera. Estava dando certo. Um repórter de algum programa policial chegou perto dele e foi fazendo perguntas. Marcos, muito empolgado, foi respondendo cada uma e fazendo questão de adicionar sua mais importante mensagem enquanto olhava para a câmera:

- Eu fiz isso por você... não sei quem você é... nem lembro o seu nome. Mas um coisa é certa: estou apaixonado por você. Se você está assistindo isso, meu amor, espero que se lembre de mim, o bandido que roubou sua bolsa outro dia...

Aquela entrevista, depois que foi ao ver, virou um sucesso instantâneo na internet e em redes sociais. Marcos ganhara a fama de bandido apaixonado. Acabou, como era de esperar, na cadeia. Mas sua família, distante mas ainda assistente quando necessário, havia conseguido um advogado para o rapaz e tinha esperanças de tirá-lo daquela condição. Iria apelar para o verdadeiro motivo por trás da ameaça contra o policial: chamar a atenção. Talvez convenceriam o juiz de que ele não estava em pleno exercício das faculdades mentais. Ou seja, enamorado.

Chegou o dia em que iria se encontrar com seu advogado. Não foi avisado, porém, que se tratava de uma advogada. Quando entrou na sala, viu, sentada à mesa, uma jovem de cabelos loiros e olhos lindos. Estava de terno e bem produzida, mas Marcos a reconheceu instantaneamente. Era aquela mesma pessoa que ele havia assaltado semanas atrás. A mesma proporção, os mesmos jeitos, o mesmo olhar, o mesmo ser.

Marcos a fitou profundamente.

Ela o fitou também.

- Olá, sou a doutora Carla. Sente-se, por favor. Deixa eu te tirar desse lugar.

O que se segue é uma história de bandido e princesa que é grande e espetacular demais para caber em um mero conto.

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