Tratava-se de uma reportagem
que eu precisava escrever para o jornal onde trabalhava. Seria o meu primeiro grande
feito como repórter, depois daquilo haveria uma matéria assinada
com o meu nome. Então eu estava mais que empolgado. Além disso, não
é todo dia que a gente visita um país do Caribe, nem que fosse o
Haiti.
Portanto, como seria minha
primeira grande reportagem, tinha a obrigação de torná-la marcante.
Tinha que mostrar alguma coisa única e interessante sobre aquela
nação tão pobre, algo que fosse memorável. Segundo os meus
colegas de redação, uma de minhas qualidades é o meu "sexto
sentido", uma capacidade que tenho de presumir que está
há algo de errado. Pensei que tal habilidade pudesse ser
útil em minha viagem.
Tive sorte assim que
cheguei. Eu estava em Porto Príncipe, capital do Haiti, quando
conheci Enzo. O jovem médico se mostrou entusiasmado em falar sobre
sua estadia no país caribenho. Resolvi encontrá-lo em seu quarto de
hotel no centro cidade. Estava lá para visitar seu pai, o embaixador
e diplomata Carlos Gomes. Falou muito sobre este, ressaltando suas
qualidades como grande dialogador. Porém, ficou claro para mim que
havia um tom de negatividade em sua voz quando eu perguntei sobre a
relação que tinha com o pai. O rapaz deu de ombros e disse que
preferia não falar sobre aquilo.
- Ele sempre duvidou de
minhas qualidades – Enzo disse – Por isso virei médico, para
provar que sou capaz.
No momento em que concluía
esta frase, o telefone tocou. Enzo, desculpando-se, levantou-se e foi
atender. Tentei não escutar, mas ouvi uma parte da conversa que Enzo
tentava manter em um tom baixo. Mas, em alguns momentos, por conta de
explosões em sua voz, fui capaz de captar alguns trechos da diálogo.
Parecia estar muito zangado com seu pai. Perguntava a ele coisas como
"por quê?" e "qual é seu problema?". Enzo
desligou o telefone furioso e também frustrado.
- Me desculpe – ele disse
– Era meu pai. Queria saber como era nossa relação? Aí está!
Mas não me disse mais nada.
Eu estava perguntando-me o porquê de investigar a vida particular
daquele rapaz. Então, decidi continuar em minha jornada e pedi para
que Enzo me desse uma carona até o hotel onde eu estava hospedado a
alguns quilômetros dali. Ele, generosamente, concordou.
Durante a carona, Enzo me
contou sobre alguns pontos importantes do centro. Falou-me da
história de Porto Príncipe e do Haiti em geral, pareceu até que
dirigimos por um século. Enzo se mostrou um bom rapaz e eu, durante
toda a minha entrevista com ele, senti muita estima. Uma pena que
tivesse uma relação tão ruim com o pai.
Quando o informei em que
hotel eu havia me hospedado, ele espantou-se.
- Que coincidência! É onde
meu pai está!
Chegamos à porta do hotel,
que era consideravelmente menor que aquele onde Enzo se hospedara.
Foi nesse instante, enquanto saíamos do carro, que começou. O meu
"sexto sentido", motivo de tantos elogios que já recebi na
redação, começou a ter efeito. Inicialmente, achei tratar-se de
alguma construção ali perto. Porém, se intensificou e pude sentir
os tremores sob os meus pés que então se espalharam por todo meu
corpo. Olhei para Enzo e ele estava assustado.
- O que é isso? - eu
perguntei.
- Acho que é um terremoto!
- ele disse – Vamos para o meio da rua, estaremos mais seguros.
Quando nos demos conta,
havia multidões apavoradas pelas ruas. Aparentemente, não era a
primeira vez que testemunhavam aquele fenômeno. Eu já havia
pesquisado e terremotos não eram novidade no Haiti.
Para o terror geral, os
abalos sísmicos foram progressivamente intensificando-se. Chegou a um
ponto em que podíamos ouvir o concreto dos prédios ranger. O
asfalto comportava-se como uma onda. Nunca imaginei que chegaria a
incluir tal evento na minha reportagem.
Quando olhei para Enzo,
enxerguei desespero em seus olhos, um pavor que percebi não ser
relacionado com o terremoto. Quando perguntei a ele o que se passava,
ele olhou para o hotel em nossa frente. As paredes do edifício
começaram a rachar. Várias pessoas saíam apavoradas. Logo cheguei a
conclusão do que levava o jovem médico a estampar aquele semblante em seu
rosto e me lembrei do que havia dito quando chegamos: seu pai estava
lá dentro!
Mas antes de podermos fazer
qualquer coisa, testemunhamos, para a nossa total aflição, o prédio
sucumbir. Andar por andar o edifício veio abaixo. Enzo paralisou.
Tive que tirá-lo dali antes que qualquer destroço atingisse-nos.
Instalamos-nos atrás de um carro que estava estacionado do outro
lado da rua, mas não conseguimos nos proteger da poeira que engoliu
a tudo.
A rua ficou toda como que
nublada, envolta por uma neblina cinzenta. Os tremores estavam
cessando, mas o desespero apenas crescia. Os gritos das pessoas
intensificavam-se.
Durante todo o desabamento
eu mantive meus olhos fechados. Quando os abri, não encontrei Enzo.
Levantei-me e olhei ao redor, a poeira se dissipava. Gritei seu nome
e fui encontrá-lo em frente aos escombros, chorando.
- Pai! - ele dizia.
Não sabia o que dizer ou
que fazer, eu estava tão chocado quanto ele. Imaginei o número de
mortos somente naquele desabamento. Pelo resto da cidade deveria ter
havido ainda mais fatalidades.
Aquele foi apenas o começo
de um dia sombrio. Os bombeiros chegaram e começaram a procurar por
sobreviventes. Enquanto isso, Enzo, ainda abalado, ligava
incessantemente para o telefone do pai, mas ninguém atendia. Os
bombeiros recomendavam manter distância, então tratamos de
ficar na calçada de uma lanchonete no outro canto do quarteirão.
Mas Enzo não se inquietava.
Tinha quase certeza do pior: seu pai estava morto. Fiquei
extremamente sentido e abalado com a possibilidade daquele fato que,
confesso, considerei. Olhei o jovem sentado naquela calçada e pensei
como era triste saber que, caso seu pai estivesse realmente morto,
eles nunca teriam a chance de fazer as pazes.
Mas, levantando-se em um
salto, Enzo enxugou as lágrimas e olhou para o edifício desabado
onde já hospedara-se Carlos Gomes e, talvez por desespero, teve a
ideia de procurar por si só o pai. Uma ideia tola.
- Se passarmos pelos
bombeiros, nós chegaremos aos destroços. Eu vou procurá-lo, não
peço que me siga! - ele disse.
Tive que acompanhá-lo, eu
não podia deixá-lo. De qualquer modo, todo aquele infeliz desastre
iria acabar nas páginas de meu jornal. Tivemos que dar a volta no
quarteirão para então conseguir acesso aos escombros. Tivemos sorte
que os bombeiros não nos viram. Fui testemunha de um homem que,
ajoelhado, desesperadamente procurou por o que restara do pai,
removendo pedra por pedra em busca de qualquer sinal. Ficamos minutos lá e eu já
não aguentava mais a poeira que era bastante irritante.
Eventualmente, fomos avistados por paramédicos e bombeiros que nos
tiraram de lá. Enzo já não chorava, acho que naquele ponto ele já
havia aceitado a morte do pai.
Quanto às capacidades do
corpo de bombeiros e dos paramédicos haitianos, pude observar que
eram pobres em recursos mas, em resposta à catástrofes como
aquelas, faziam seu melhor para salvar o máximo de vidas. Nas
redondezas foram armados vários barracos onde resolvemos ficar.
Vimos, para meu contentamento e alívio, várias pessoas serem
resgatadas com vida. Algumas nem estavam muito machucadas. Enzo viu,
inclusive, conhecidos. Mas depois de uma hora não havia sinal do
senhor Carlos Gomes.
Até que, finalmente, o
chefe dos bombeiros informou-nos que um homem branco tinha sido
achado nos escombros, possivelmente o pai de Enzo. O jovem médico
saiu em disparada ao encontro do socorrido. Fui atrás, quase o perdi
em meio a multidão. Chegando lá, tivemos a confirmação do pior.
- Pai! - Enzo gritou.
Não sabia se ficava feliz
por ter o achado com vida ou desesperado por ter um andar todo em
cima dele. Carlos havia sido encontrado em uma fissura entre os
escombros. Os bombeiros que o acharam apenas ouviram seus gritos de
socorro. Com a ajuda de lanternas foram capazes de iluminar a
pequena "caverna" onde ele estava preso e enxergar o
embaixador. Um dos socorristas que fora ao encontro de Carlos nos
informou:
- Ele está sob uma parede,
sob muito peso. É possível que alguma viga tenha o perfurado. Sinto
muito, mas ele não tem muito tempo de vida. Já sangrou muito...
Aquelas informações
agourentas apenas contribuíram para a crescente aflição de Enzo,
que estava em prantos.
- Podem tirar ele de lá? -
eu perguntei.
- Sim, mas como eu disse,
ele já perdeu muito sangue. Não tem muito tempo de vida.
Novamente tivemos que nos
afastar para permitir o trabalho dos profissionais. Vários homens
adentraram nos escombros e, depois de uma hora e de muito esforço,
vimos Carlos ser retirado de baixo do que restara do prédio pelos
bombeiros. Estava deitado em uma maca e banhado em sangue . Não era
a visão mais bonita, principalmente para um simples repórter que
estava empolgado para conhecer um país tão diferente e que esperava
ver o lado bom daquele lugar. Só podia imaginar o que passava pela
cabeça de Enzo.
Foi levado para uma
ambulância onde ficou por muito tempo sendo tratado por vários
paramédicos. Não foi levado a um hospital, mas tratado ali mesmo.
As ruas estavam muito movimentadas e não era considerado sensato
entrar debaixo de um casa depois daqueles abalos.
O que Enzo mais queria era
falar com Carlos. Por muito tempo nós dois só observamos de longe.
O rapaz suava. Finalmente, depois de algum tempo, os paramédicos
conseguiram estabilizar a saúde do seu pai. Fomos autorizados a
falar com o socorrido.
Estava destruído. Não se
parecia nada com o homem que eu via nos jornais. Sua camisa estava
cheia de sangue e seus olhos mal se abriam. Seu pescoço estava coberto
por aparatos. Não era de se surpreender para alguém que até pouco
tempo tinha o peso de um andar sobre si. Parecia morto.
- Pai... - Enzo se aproximou
– Pode me ouvir?!
Carlos tentou abrir os olhos
e enxergar alguma coisa. Não conseguia, entretanto, mover a cabeça.
Balbuciou alguma coisa, como uma criança treinando as primeiras
palavras. Com o tempo foi conseguindo articular-se melhor e teve
sucesso em falar com Enzo, ainda com dificuldades.
- Enzo... - Carlos disse –
É você, filho?
Eu via tudo de um metro de
distância. Não queria intrometer-me, mas não podia perder os
detalhes daquela cena emocionante em meio a tanto caos. Eu já tinha
algo para colocar no meu jornal, sem dúvida. E seria memorável.
Lembrei-me de ir pegar minha
mochila que eu havia deixado no carro. Minha câmera estava lá
dentro. Encontrei o carro todo amassado e tive de ser rápido para
que ninguém me percebesse e me tirasse dali. Minha câmera estava
intacta. Quando voltei à cena, achei Enzo sobre o pai.
- Desculpe por duvidar de
você... - Carlos dizia para o filho – Sinto muito mesmo, Enzo...
Enquanto isso, eu tirava
fotos. Seria a manchete principal.
- Eu te amo... - Carlos
concluiu.
E então fechou os olhos.
Enzo ainda chamou pelo pai, mas ele não respondeu. Tentou mover o
cadáver do homem, mas nenhuma resposta. Teve que ser tirado de lá.
Os paramédicos levaram Carlos para dentro da ambulância e por
muitos minutos ficaram lá dentro. Eu tentei consolar Enzo, mas não
havia o que acalmasse o jovem médico.
Um homem saiu da ambulância
e se aproximou de nós anunciado o que eu já sabíamos: a morte de
Carlos. Enzo desabou, ficou de joelhos e de olhos cerrados, molhados
de lágrimas angustiadas. O pai se fora, um amor que ele não teve
tempo de desfrutar senão nos últimos minutos de vida dele. Mais uma
vez tentei confortá-lo, mas a dor era enorme. Não era possível
para ele que tivesse perdido o pai antes mesmo de poder ter uma
experiência verdadeira com ele, antes mesmo de poder dizer
que o amava.
Saímos dali. Eu já não
aguentava mais aquele lugar. Tinha sido um dia terrível, o pior de
Enzo e, por muito tempo, o pior de minha carreira como jornalista.
Passamos os dois dias seguintes em um abrigo no centro da cidade. O
hotel onde eu Enzo estava hospedado não sofreu muito dano, mas
tínhamos medo de um novo tremor. Eventualmente, retornamos.
No mesmo dia de nosso
regresso ao hotel, aconteceu o funeral de Carlos. Faltou muito para
honrar aquele homem. Poucas pessoas além de mim e Enzo estavam
presentes, colegas e poucos conhecidos, a família estava no Brasil.
Três dias depois eu iria embora. Fora uma experiência única no
país, mas eu já estava ficando traumatizado. Mas ainda queria ficar
por mais algum tempo para dar apoio a Enzo, meu amigo do Haiti.
- Ele foi um bom homem –
Enzo disse durante o funeral.
- Foi, claro. - eu respondi.
- O que você vai colocar na
sua matéria? - ele perguntou. Me surpreendi com a pergunta, um tanto
que inesperada.
- Vou falar sobre como um
terremoto uniu, de forma infeliz, um pai e um filho.
- Coloque mais do que isso.
Escreva que nem sempre quem te odeia faz isso por maldade. Por trás
de muito ódio existe amor, muitas vezes parco, mas amor.
- Vou escrever.
Despedi-me de Enzo e
retornei ao Rio com muito pesar no coração por tudo pelo que ele eu
tínhamos passado. Não pensei em outra coisa a bordo do avião.
Quando cheguei em casa
carregando uma tonelada de malas, fui recebido por dois lindos
garotinhos: Carlos e Enzo. Como estavam crescidos. Agarrei-os como
nunca tinha agarrado antes. Minha mulher logo apareceu, correndo da
cozinha. Beijei-a como se fosse a primeira vez. Estavamos nós quatro
no meio do corredor, uma família que eu não queria perder.
- Como foi? Fiquei tão
preocupada, amor – minha esposa disse – E quanto a sua matéria?
Ainda vai escrevê-la?
- Sim – eu disse - É
a história mais emocionante de todas.
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