21 de dezembro de 2019

O Rei de Tacomênia

Eu costumava frequentar uma praça bem movimentada em minha cidade há alguns anos. Todo fim de tarde, quando o clima era ameno e o sol já se preparava para repousar no horizonte, eu achava um jornal, revista, livro ou mesmo um bloquinho de palavras-cruzadas para ocupar meus olhos e, relaxado, sentava-me em um banco que existia ali. Era uma praça agradável. A grama era bem cuidada, as árvores eram bonitas e de copas fartas de um verde esmeralda e vivo, as crianças que por lá perambulavam a conversar sobre suas tramas inocentes e banais eram fonte de muito contentamento para uma alma cansada como a minha. De vez em quando, porém, eu deslocava minha visão da folha que tinha em mão para o meu redor, a procurar algo de interessante.

E de vez em quando surgia, de fato, uma pérola entre pedras comuns. Como havia vários bancos e muitas pessoas a circular, surgia frequentemente alguém que passava para descansar ou ler um livro em um assento. Para quebrar o silêncio ou por necessidade de colocar uma conversa para fora, este desconhecido ou eu iniciava uma conversa que normalmente estendia-se pela tarde toda. Já ouvi de tudo: testemunhas do lobisomens, ex-celebridades, pessoas com passados e histórias que iam do ridículo ao inacreditável.

Assim foi por muito tempo, eu sentado num banco de praça tentando achar algo que me fascinasse. Mas o mundo, mesmo lindo, parecia pequeno dali. Mas mesmo com tantos contadores de histórias que eu conhecia, parecia que eu ainda não tinha encontrado o caso mais incrível ainda.

Até que um dia, quando eu já estava quase cansando-me do mesmo banco, da  mesma praça, da repetitiva contemplação de sua beleza e de ouvir histórias diversas mas que não me impressionavam ao máximo, eu conheci uma pessoa. De longe não parecia ninguém extraordinário, mas seria a fonte da história mais extraordinária que eu já ouvi.

Tratava-se de um senhor, uns setenta anos. Era baixinho, mais baixo do que eu (sempre fui considerado pequeno). Talvez um metro e sessenta e dois de altura, no máximo. Sua barba era branca como neve e em sua cabeça não havia um único fio de cabelo, seria reluzente se não fosse enrugada. Seus olhos eram bem azuis e sua pele era rosada. Não seria estranho achar que ele fosse estrangeiro e ele, de fato, era. Seu andar era de alguém que já não aguentava mais a vida, como se tivesse passado da data de validade, um guerreiro de muitas batalhas, um sobrevivente de todas as calamidades.

Avistei-o certo dia andando pela rua da pracinha. Na ocasião, ele vestia uma camisa branca de botões e calça preta, acompanhado de sapatos também pretos e portava um relógio bem bonito. Sustentava-se graças a uma bengala que mesmo assim não o impedia de caminhar aos tremidos e com instabilidade. Apesar de tudo, estava bem elegante e chegou a chamar atenção pois ninguém o tinha visto ali antes.

Inventou de sentar-se ao meu lado e eu fui logo imaginando que tipo de histórias ele iria contar para mim. Ele pareceu me ignorar inicialmente, mas depois de alguns minutos contemplando os pássaros que voavam pela praça, ele perguntou a mim:

- Lendo jornal?
- Sim.
- Alguma notícia sobre Tacomênia?
- Sobre o quê?!

O nome foi uma surpresa, nunca tinha ouvido antes. Mas a medida que fomos nos aprofundando em nossa conversa, fui descobrindo mais sobre aquela estranha palavra. Tacomênia, gentílico tacomeno, tratava-se de um pequenino país perdido no meio da Europa, uma pequena nação que já não existia mais e que há muito tempo fora incorporada a outros estados. Seu auge foi durante a Idade Média, tendo sido palco das mais espetaculares batalhas, das mais incríveis tramas entre irmãos pela Coroa e das mais lindas baladas já cantadas. A literatura de Tacomênia era riquíssima, seu povo farto e feliz (embora passasse por muitas dificuldades como todos os outros países medievais) e sua cultura a mais esplêndida. Entretanto, o país viu seu declínio com o aparecimento de um terrível inverno que assolou toda a região durante o século treze.

Assim me contou aquele senhor. Conversamos bastante sobre o país do qual eu nunca tinha ouvido falar antes e ele conseguiu me deixar bem curioso. Afinal, como sabia tanto de um reinozinho que ficava tão longe e que havia acabado há tanto? Não me apressei em perguntar isso e a resposta dele foi a melhor possível:

- Ora, eu já fui rei de Tacomênia!

A ideia de estar conversando com um rei medieval era absurda demais, então eu ri, o que deixou o senhor muito desconfortável. Mas eu precisava mesmo de uma fonte de comédia naquela tarde entediante.

- Como você se chama? - eu continuei a indagá-lo.
- Haldur é o meu nome, Haldur Taco III.

Continuou contando-me a sua história, e meu riso de natureza zombadora acabou se transformando em um semblante de seriedade, pois a sua jornada mostrou-se no mínimo envolvente. Haldur foi, segundo ele, o quadragésimo nono rei de Tacomênia. Morava em seu castelo na capital, Tacopolis. Era amado pelo seu povo que o via como um herói. Assim eram com todos os reis de Tacomênia, todos eram heróis, muito diferentes dos outros monarcas europeus da época. Haldur tinha sua rainha e filhos e filhas, estes eram condes e baronesas, orgulhosos e bravos cavaleiros, belas e inspiradoras donzelas.

Tinha, inclusive, um poderoso dragão como aliado. Era Rastang, o Grandioso, um enorme réptil alado de verdes escamas e conhecido (e temido) por seu hálito de fogo. Morava na Montanha Negra, no centro do reino, a única montanha de Tacomênia. Já foi inimigo dos tacomenos até o reinado de Hender o Corajoso quando este o libertou de um terrível feitiço que tinha o aprisionado na montanha. Sua morada continuou sendo a Montanha Negra, porém ganhara liberdade. Rastung era motivo de muito terror, mas também era um amigo próximo de todos os reis daquele país, pois era eternamento grato por ter sido libertado da bruxaria e os monarcas de Tacomênia sempre podiam contar com ele contra qualquer perigo que ameaçasse o reino. Era sempre chamado quando tocavam a sua corneta, um instrumento feito do osso de um dragão. Seu som era estridente e poderoso e ecoava por todo o reino..

Por muito tempo, então, foi boa a vida em Tacomênia.

Mas então, conspirações começaram a surgir contra Haldur. O rei tornou-se inimigo do Lorde Guillestein, seu arqui-rival que há muito planejava usurpar o trono e ter o governo da Tacomênia inteira para si. Cercado por um leal exército, este nobre tirano tinha como bandeira a Caveira Coroada, consistindo da imagem de um crânio humano adornada por uma coroa. O plano de Guillestein era sórdido e maquiavélico, sustentando-se com base em velhas rixas e no apoio de tropas e tropas de leais cavaleiros e brutais mercenários.

O rei Haldur, porém, não temia a morte, embora tivesse medo do que um ataque do exército de Guillestein pudesse fazer ao povo do país. Religioso, purificava-se diariamente e passou com o tempo a ouvir sobre profecias que envolviam sua queda em batalha.

- Ele não pode morrer, tem proteção divina – alguns diziam
- Deus tem planos para ele. Se morrer, se levantará para governar o mundo séculos depois! - outros comentavam.

E então as profecias foram ganhando forma, prelúdios de um destino supostamente premeditado por forças superiores. Dessa forma, da boca do povo, o rei Haldur Taco III foi ganhando a fama de abençoado e foi ganhando a simpatia das pessoas pelo reino e até mesmo do outro lado da fronteira. Haldur o Imortal, assim era conhecido. Poetas começaram a escrever sobre um futuro em que Haldur se levantaria de entre os mortos e reinaria o mundo. Assim era a profecia: o rei que caiu um dia se erguerá e o mundo inteiro governará.

Mas para a maioria dessas eram só histórias para entreter o povo entediado de Tacomênia. Todos levavam uma vida tão simples que, com a ameaça de uma guerra real contra Lorde Guillestein, eram inventados contos mirabolantes e fantasiosos para não deixar a população tensa ou alarmada.

Mas então a guerra chegou. Lorde Guillestein, do seu castelo negro além das Colinas dos Lobos, passou a tramar um conflito que levaria ao fim de Haldur. Não envolvia calúnias e difamações como era de costume antes, mas um combate real com o uso de seus exércitos que, se bem comandados, eram capazes de causar grande dano à sociedade Tacomena.

Porém, não só com força humana o terrível Lorde contava. Através de amizades agourentas com os piores tipos disponíveis no reino, isto é, feiticeiros servos de demônios cujos nomes eram impronunciáveis, Guillestein desvendou os segredos das magias e ciências negras até então desconhecidas a ele ou a qualquer cristão do reino. Com a ajuda de aliados bruxos, Guillestein conseguiu conjurar uma poderosíssima magia contra Tacomênia: o inverno mais cruel da história da Europa e talvez de todo o mundo.

Não houve exagero nos olhos de Haldur quando me falou sobre o impiedoso inverno que devastou o seu país. Chegou rápido. Certa manhã, uma neblina caiu sobre toda a nação. No dia seguinte já havia neve sobre o castelo real e então em poucos dias o frio atroz teve início. Os campos da Província Norte, antes verdes e sob um céu azulado, tornaram-se alvos pastos adornados por um manto cinzento. Plantações foram destruídas, o pouco que foi salvo não durou muito. Muitos pereceram naquele ano de 1252 (Haldur não teve certeza quanto a data, mas especulou que fosse esta).

Por conta de tais calamidades, o claro tacomeno começou a rezar a indagar-se sobre o paradeiro de Deus naquela hora tão sombria. Seria um castigo? Igrejas e catedrais viraram palcos de intermináveis debates e súplicas dirigidas ao céu. Depois de meses, o inverno continuava e não parecia dar trégua. Só piorava. Ficou claro, então, que havia algo maligno naquilo tudo.

Certo dia, um mensageiro de aparência sinistra surgiu diante dos portões do castelo real. Haldur não teve dúvidas quanto à sua identidade, era inimigo pois portava a bandeira da Caveira Coroada. Sua mensagem era clara: Gullestein tinha declarado guerra contra Haldur Taco III e o inverno mortal era sua primeira cartada contra o estado tacomeno. Também informou que uma batalha decisiva seria travada nos campos perto do Condado Kurt ao Oeste. Haldur irou-se naquele momento e foi logo dando ordens militares. Seus generais começaram a deslocar homens para o combate. Milhares de tacomenos, novos e velhos, foram armados. O mensageiro foi embora com outra mensagem ao seu mestre: a guerra será travada.

A hora chegara. O exército tacomeno, comandado por Haldur e seus mais leais capitães, marchou até o Condado Kurt. Passaram por vários vilarejos devastados pelo inverno e abandonados pelos aldeões que não conseguiram aguentar a diabólica maldição jogada sobre eles. Haldur viu aquilo e encheu-se de fúria e ordenou que marchassem mais rápido pois não aguentava esperar para ter a cabeça de Guillestein cravada em uma lança.

Os dois exércitos finalmente se encontraram nos campos onde haviam marcado a batalha. Haldur, montado no seu melhor corcel, antes um homem baixinho e sereno, agora era como um bárbaro das antigas, pronto para vingar o seu povo. Do outro lado estava Lorde Guillestein que cobiçava nada mais que o trono de Tacomênia, o poder era o que o movia e não se importava com o que precisava fazer, ele queria a coroa para si.

A corneta soou. A neblina era intensa e alguns que usavam elmo tiveram dificuldades para ver. O frio só não era mais forte que a emoção da guerra e a dor provocada pelo combate. Espadas fizeram sangue jorrar naquele dia, cabeças rolaram, lanças muita carne cortaram e flechas voaram indômitas.

No final da batalha, sobraram poucos dos milhares que vieram à cena. Os tacomenos leais à Haldur eram corajosos e cheios de força. Sua coragem era testada ao enfrentar os sanguinários mercenários contratados por Guillestein, homens brutos e portando enormes machados que tinham a guerra como trabalho e a recompensa como sacos de moedas, não hesitavam em matar. Haldur lutou bravamente mas acabou perdendo seu cavalo, morto por flecha. Até mesmo a Corta-Aço, a sua espada forjada há séculos pelos seus antepassados, partiu-se durante combate. Pensou em uma ultimato: chamar Rastang, o Grandioso, para ajudá-lo em um momento tão tenso. Porém, a corneta havia sido perdida, em posse de algum soldado morto entre os muitos que já caíram. Portando escudo e vestindo armadura, Haldur aguentou os maiores inimigos em pelejas diretas sobre a neve pintada de vermelho. Guillestein também acabou se encontrando sem sua montaria e passou a matar usando uma tecnologia em que tinha muita perícia: arco e flecha.

Procurou pelo rei e quando o encontrou não viu dificuldades em acertá-lo com sua flecha. Apenas um disparo certeiro. Guillestein fora um exímio arqueiro na juventude. Acertou Haldur no tronco, os órgãos internos do pobre rei perfurados. Os sangramentos internos e a dor que se sucederam o forçaram a cair de joelhos no chão em uma épica gravura medieval de heroísmo, bravura e sacrifício. Não se aguentou muito, desabou. As últimas imagens que Haldur se recorda de sua época como rei foram o céu nublado e a neve tocando seu rosto. Pôde sentir o gelo endurecendo a sua pele, como que fosse congelado. Gritos de homens e o som de lâminas chocando-se foram os sons finais ouvidos pelo rei derrotado. E então tudo ficou escuro.

A história me comoveu bastante. Cheguei a largar as palavras cruzadas que eu solucionava de lado para dar ouvidos à sua fantasia. Sim, fantasia, pois até agora aquilo não passava de um conto inventado talvez pela mente senil de um velho solitário. Entretanto, Haldur (ou seja lá qual fosse seu nome verdadeiro) decidiu apresentar uma evidência de sua queda em batalha. Lentamente ele desabotoou a camisa e revelou, na região do peito, uma cicatriz de perfuração. Fiquei pasmo por um segundo e me deixei levar mas depois eu demonstrei minha increduilidade.

- Ah, está me dizendo que essa ferida foi causada por uma flechada que o senhor tomou durante a Idade Média? - eu disse.
- Eu juro!
- Muito bem, então como é que o senhor está falando comigo agora? Como veio parar em nosso tempo.

O velho limpou os lábios e deu início a mais uma longa história. Dessa vez eu fui transportado a 1968. Mas antes veio o prólogo. Por muito tempo Haldur permaneceu congelado. O inverno provocado pela bruxaria de Guillestein provou ser mais terrível do que qualquer um imaginara, inclusive o próprio Guillestein. O país foi totalmente destruído, os que sobreviveram fugiram para outros cantos da Europa. Lorde Guillestein por pouco tempo comemorou a sua vitória. Morreu de frio em seu castelo na capital, um fim trágico para o vilão Os seus mais fieis aliados fugiram. Em suma, Tacomênia tornou-se desabitada.

Um milagre, porém, surgiu de toda essa maldição. Assim como previam as profecias, Haldur acabou realmente voltando à vida. Nos anos sessenta, mergulhadores e arqueólogos descobriram, explorando o fundo de um lago no centro da Europa, ruínas de uma civilização há muito esquecida pelo resto do continente. Tratava-se do que já fora um dia Tacomênia. O reino inteiro se encontrava em uma enorme depressão, muito abaixo do nível do mar. Quando a temporada gélida atacou, a neve cobriu a tudo e, conforme foi intensificando-se, a paisagem foi sendo enterrada por metros e metros da massa branca. Como o inverno durou décadas, foi lento o descongelamento e, quando este aconteceu, foi criado um lago que encheu a todo a depressão onde um dia esteve Tacomênia.

E era justamente esse o nome do grande lago situado entre a Alemanha e a Polônia: Lago Tacomênia. Uma ilha situava-se exatamente no centro do lago, a Ilha Negra. Era na verdade o que já foi a Montanha Negra, ou melhor, o seu cume e lá poucos sabiam mas o dragão Rastang ainda dormia profundamente esperando para que o chamasse.

Séculos se passaram e a Europa foi reconstruída. O nome Tacomênia se tornou uma lenda, uma palavra engraçada usada para definir algo de natureza fantástica, memórias de um mundo esquecido.

Porém, durante a exploração do lago em épocas mais recentes, foi descoberto, cubrindo ao que já foi o reino como que uma armadura, uma espessa e peculiar crosta de gelo. Tratava-se de um fenômeno decorrente do intenso inverno que assolou o país séculos antes, embora os pesquisadores na época fossem ignorantes quanto a isso. A bruta e constante tempestade que durou décadas acabou por criar um espécie de atmosfera própria para a depressão onde Tacomênia se encontrava. As temperaturas eram absurdamente baixas e a região literalmente congelou. Porém, com o descongelamento, o gelo persistiu e passou a residir, imutável, no fundo do lago Tacomênia.

Tantos detalhes científicos foram contados a mim pelo próprio Haldur, algo que me surpreendeu. Ouvir histórias mirabolantes daquele velho era esperado, mas termos científicos? De qualquer forma, estava tudo sendo bem divertido e eu não ligava para o que era verdade e o que era mentira. Toda aquela baboseira de fundo de lago congelado podia ser invenção do velho, assim como o bruxo da idade média. Mas era uma tarde entediante, fazer o quê?

Continuou a história. Entre os achados estavam ruínas de catedrais, castelos e cidades. Mas o mais interessante de todos foi um corpo encontrado em um planície. É importante ressaltar que tais descobertas foram realizadas por uma máquina capaz de aguentar as altas pressões no fundo do lago. Utilizando um tipo de furadeira, a incrível máquina abria caminho por entre o grosso gelo no fundo do Lago Tacomênia. Desse modo foi encontrado o corpo de um velho, vestia armadura e era tão bem conservado que parecia vivo. Sua remoção foi cautelosa, contando com o uso de garras mecânicas operadas remotamente.

O resto da história parecia ter vindo de um filme de terror. Resgatado o iceberg que continha Haldur, toda a equipe ficou chocada com o que via. Como podia um homem ter sido preservado de tal maneira? Quando o gelo descongelou, foi levado a um laboratório onde exames foram feitos no "cadáver". Perceberam que ainda estava vivo, seus batimentos cardíacos e todo o seu metabolismo, embora desacelerados, ainda se mantinham. Era como um urso hibernando. Foi quando um dos cientistas teve a ideia de reanimá-lo e trazer um homem da Idade Média ao século vinte. Não foi tão difícil, porém, despertá-lo. Uma poderosa descarga elétrica, por meio de fios ligados ao seu peito, foi suficiente para abrir-lhe os olhos. O homem saltou com um grito e se viu em uma laboratório na Alemanha, não havia cavaleiro nenhum ali.

Dessa forma foi trazido Haldur Taco III ao nosso mundo. O governo da Alemanha Oriental o manteve em sigilo por um tempo e sob quarentena. Sabe-se lá que vírus carrega, assim pensaram. O exército logo ficou interessado. Que segredos biológicos podiam ser adquiridos com pesquisas intensas naquele estranho personagem recém-descongelado? Talvez fosse a chave para desvendar o segredo da imortalidade ou talvez uma peça no enigma do super-humano. Interrogado, descobriu-se que se tratava-se de um homem que ao menos pensava ser de um país que nunca tinham ouvido falar e que teria acabado a muito tempo. Foi dito como louco pelo exército. Mas conforme as pesquisas arqueológicas foram trazendo à tona a história perdida de Tacomênia, foi dado a ele, para a surpresa de todos, confiança. Era a sua sobrevivência no gelo que os fascinavam. Muitos testes e exames foram feitos em Haldur, mas nada de anormal foi encontrado em seu corpo, era um homem como qualquer outro. Haldur sabia, entretanto, que fora um milagre que o salvou. A profecia era verdadeira e ele realmente fora ressuscitado por Deus. E se lembrou do resto da profecia que dizia: e depois de renascer, ele governará ao mundo.

A divisão científica dos militares perdeu o interesse em Haldur depois de semanas frustantes. Não pareciam descobrir nada de interessante quanto a ele, nada em seu sangue ou seu DNA que revelassem o segredo para a sua improvável sobrevivência debaixo daquela grossa camada de gelo no fundo do lado. Assim, Haldur foi liberado. Foi providenciado a ele um quarto em um hotel em uma cidadezinha próxima e uma boa quantia em dinheiro, tudo para que se sustentasse por um tempo. Quanto à comunicação, Haldur falou durante toda a vida o tacomeno, língua morta e com raízes latines, porém tendo certo familiaridade com o alemão moderno. Foi-lhe ensinado palavras e expressões básicas depois de muito esforço e estudo. "Bom dia" e coisas do gênero foi julgado como o necessário para sobreviver na Alemanha de 1968. A verdade é que o homem ainda estava chocado com tudo aquilo, muito mais chocado do que aqueles que o descobriram. Nas semanas seguintes de sua ressurreição mal falou e alimentou-se pobremente, seu raciocínio nublado. Os cientistas asseguraram que tudo era causado pela sua longa hibernação. Mas Haldur sentia-se doente por dentro, e seu remédio tinha origem divina: precisava fazer a vontade de Deus e governar o mundo em nome de Jesus Cristo.


Começou adquirindo um mapa da Europa. Em seu quarto de hotel ele por muito analisou a obra cartográfica. Não encontrou, todavia, Tacomênia. Lembrou-se do que os militares disseram-lhe, seu antigo reino não passava de uma relíquia passada e esquecida pelos Europeus. No mesmo dia, Haldur assistiu ao telejornal (a televisão, como o resto das novidades tecnológicas do século vinte, foi de difícil aceitação para a mente medieval de Haldur) onde noticiaram sobre as novas descobertas realizadas por pesquisadores no fundo do Lago Tacomênia. O nome Tacomênia foi como o bater de um sino em sua cabeça. Ainda estavam acostumando-se com o idioma novo, mas a palavra soou-lhe perfeitamente familiar. Olhou mais uma vez para o mapa estendido em sua cama. Era hora de dominar o mundo!

Mas embora tenha sido mantido em segredo pelos cientistas, não demorou para que rumores circulassem por toda a Alemanha sobre um homem encontrado no fundo do Lago Tacomênia. A história, inicialmente não mais que uma piada, ganhou fama e tornou-se popular por todo o país. Ainda instalado na pequena cidade onde os militares o deixaram, Haldur ouviu, enquanto tragava uma cerveja em uma bar, sobre tal história. Já estava habituando-se, embora lentamente, à vida no século vinte. Estava acostumando-se com as roupas e as palavras novas. Não surpreendeu-se com a rápida adaptação, era um homem muito estimado na sua época pela sua sapiência. Assim, como notou que a notícia do seu retorno estava chegando aos ouvidos do povo, decidiu fazer um humilde pronunciamento público naquele barzinho, típico de um monarca. Subindo no balcão, declarou, tropeçando nas palavras

- Rei... Tacomênia... Eu sou! - ele gritou para todos ali.

No começo houve silêncio, mas os risos tornaram-se incontroláveis em alguns segundos. Todos no bar passaram a zombar do pobre senhor. Rei de Tacomênia? Estava mais para bêbado. Entretanto, a visão do velho subindo no balcão chamou a atenção de uma jovem jornalista que ali por acaso estava. Emilie Weber procurava algo de interessante no interior do país, algo que servisse de matéria para seu jornal. Resolveu, então, confrontar o homem que se declarava rei. Inicialmente, a moça achou se tratar só de mais um bêbado, mas embora Haldur realmente tivesse bebido cerveja, mostrou-se honesto aos olhos de Emilie. Intrigada pela história de Haldur, seja fato ou fantasia, ofereceu-lhe carona para a capital, onde seria entrevistado e feito notícia no país inteiro, seja como piada ou não.

Em Berlim Leste, maravilhado com a grandiosidade das cidades modernas, Haldur foi entrevistado por Emilie e ela teve sua matéria publicada mesmo com a descrença do editor com quanto a tal título. Rei do passado volta a vida, assim dizia. E foi neste jornal que Haldur, visto como louco na redação, expôs todos os seus planos para a dominação mundial. Não como tirano, mas como um rei benevolente com guiamento divino. Haldur deixou claro que era de fato o rei de Tacomênia do século treze que fora congelado e reanimado na era moderna. Seu plano: fazer a Europa inteira, e se possível todo o mundo, aceitá-lo como seu rei em nome de Jesus Cristo. Assim seria a profecia. E Emilie Weber talvez fosse a única até então a dar ouvido ao velho, e logo os dois se tornaram amigos. Sua admiração por Haldur era como de uma criança por seu ídolo, algo que se encontra em pessoas idealistas.

A notícia abalou o país inteiro. Alguns riram, alguns acreditaram e outros apenas ignoraram, só mais um louco. Haldur, agora falando um bom alemão e trabalhando como engraxate no centro da cidade (emprego que conseguiu com a ajuda de Emilie Weber), teve sua cara impressa em muitos jornais e não demorou para que fosse surpreendido por "fãs" que o reconheciam no meio da rua. Foi virando uma celebridade em Berlim e em toda a Alemanha. Chegou ao ponto em que um canal de televisão o procurou para fazer uma reportagem. Foi parar nos televisores de todo país, ganhando alcance ainda mais abrangente.

Nessa parte, Haldur fez uma pausa e suspirou. Mal eu sabia que a aventura estava apenas começando. O velho olhou para baixo e depois levantou a cabeça e continuou a contar sua história. Passou-se mais de um ano após a sua chegada em Berlim (parte oriental). Trabalhando como engraxate e vivendo uma vida nada digna para um rei, isto é, em um minúsculo apartamento no subúrbio, Haldur não poderia estar mais descontente. Não tinha quem considerasse amigos de verdade além de Emilie, embora fosse conhecido por muitos. Entretanto, a garota e ele mal se viam, pois ela se comprometia muito ao trabalho. Sozinho, Haldur era no máximo um ponto turístico ambulante. Lá vem o rei de Tacomênia, alguns diziam. Mas não o respeitavam de verdade, mesmo depois das inúmeras entrevistas que ele dera assegurando que sim, fora um rei da idade média. Era pura zombaria. Assim, Haldur começou a se isolar mais. Não cumprimentava mais "fãs", não aceitou dar mais entrevistas. Até jornais de outros países europeus o procuraram (até mesmo um americano), mas ele preferiu ficar em seu apartamento. Como aquilo poderia acontecer? Onde estava Deus? A profecia deveria ser concretizada, ele deveria ser rei e governar a Europa inteira. Mas onde estava? Engraxando sapatos como um reles plebeu. Foi tomado de decepção.

Haldur disse-me que não chegou a ficar deprimido e que os tacomênos não conheciam tal estado emocional. Entretanto, eu pude ver em seus olhos que suas memórias daquela época eram dolorosas só de pensar. Havia algo muito humano naquele homem e que eu estava prestes a descobrir.

Os seus dias sombrios como engraxate depararam-se com uma reviravolta: Emilie Weber, a jornalista que fez da história de Haldur um sucesso em escala nacional ao achá-lo em um barzinho no interior, um dia apareceu a sua porta. A pobre moça soluçava e estava em estado deplorável, chegou a lembrar Haldur dos seus cavaleiros que retornavam da guerra feridos ou uma aldeã que perdia seus filhos em um massacre em um vilarejo tacomeno.

- Nosso jornal... foi atacado!

Não era mentira o que Emilie falava. Haldur ligou a televisão e o noticiário destacava imagens do prédio onde ficava a redação. Estava em chamas, arruinado. Todos escaparam com vida, mas o estrago tinha sido absoluto. Haldur pôde ver pela janela a fumaça que subia. Lembrou-se das guerras do passado que travou contra Guillestein e outros vilões, os corpos dos soldados tacomenos eram geralmente queimados e o vapor negro se erguia. Haldur teve calafrios com tudo aquilo.

O telejornal que assistiram alarmou ainda mais a Haldur. Segundo o âncora, o incêndio não foi acidental e que haviam suspeitos: um grupo misterioso de encapuzados. Haldur deixou o queixo cair quando viu pela televisão o que os criminosos haviam pinchado na parede do edifício em chamas: uma enorme caveira coroada. Memórias negras do passado voltaram à mente de Haldur. Recordou-se principalmente da batalha final que travou contra o Lorde e das bandeiras inimigas que balançavam. Caveira Coroada!

A partir daquele momento, todo pensamento negativo e sombrio que permeava a mente de Haldur foi-se. Não havia sensação de abandono, não havia mais descontentamento na sua alma ou decepção com o plano divino. Não iria, porém, fugir. Iria enfrentar seu inimigo. Guillestein estava de volta, não sabia como, mas havia retornado. O símbolo da caveira coroada era o mesmo usado pelo Lorde séculos atrás. Deus, aparentemente, ainda tinha um plano para Haldur.

E possivelmente incluía Emilie Weber.

- Preciso de sua ajuda para reivindicar meu trono! - ele disse.

A moça não hesitou, disse sim na hora. Tinha uma fascinação pelo velho, um apego, uma adoração. Sua história era delirante para ela, quase uma paixão encarnada, um personagem de fantasia trazido à vida, um sonho de aventura que almejava desde pequena e que agora era realidade. Além disso, tinha perdido tudo com o incêndio em seu jornal, não tinha mais onde morar. Se ficara louca, Haldur não soube dizer, mas ficou grato pela lealdade oferecida. Arrumaram as malas às pressas e partiram para a França, mais precisamente Paris.

O motivo do ataque à redação não foi óbvio no momento, mas especularam que Guillestein, ou seja quem fosse, pensou que Haldur estivesse no prédio. Ou talvez tenha sido um ato de terror, um aviso de havia uma guerra iminente estava por vir. Haldur tinha um plano: viajar à França, e então Espanha, Portugal e outros países europeus buscando alianças com os líderes dessas nações. Buscava um exército para chamar de seu, uma armada que poderia usar para subjugar os poderes do mundo e enfim cumprir a profecia divina. Não estava louca, não podia estar. Emilie Weber pelo menos não o via assim.

Saíram cedo de Berlim em um trem levando apenas o necessário. Observei que nesse momento a história tornou-se mais interessante, com a inclusão de mais um personagem. Chegando em Paris, viram-se momentaneamente longe de Guillestein (ou assim pareceu-lhes), mas estavam perdidos, não tinha direção e mal sabiam falar francês. Mesmo assim, Haldur e sua fiel servidora não desistiram do plano. Partiram para o Palais d'Élysée onde iniciariam o processo de diplomacia, mas os dois entusiastas da glória tacomena foram barrados pela segurança e pelos enormes portões da residência presidencial. Decepcionados, teriam ido embora se não fosse pela aparição de uma curiosa figura. Um rapaz, não mais velho de Emilie, gritando contra o Palácio, segurando cartazes que diziam "apoiem o rei de Tacomênia". O personagem instantâneamente chamou a atenção de Haldur. Já sabiam que Tacomênia havia tornado-se, mais uma vez, um nome popular na Europa, mas simpatizantes eram novidade pois a maioria que falava esse nome tinha um tom de zombaria na voz. Aquele rapaz parecia estar convicto de suas causas.

- Qual é seu nome? - Haldur perguntou.
- Eu sou Jasper... - disse o rapaz.

O mundo parecia estar a cada dia tornando-se mais tacomeno. Jasper afirmou ser, assim como Haldur, um sobrevivente do inverno que destruiu Tacomênia. Afirmou ter sido resgatado das geleiras do lago, exatamente da mesma forma como fora Haldur. Incrédulo, Haldur pediu por uma prova e recebeu como atestado de veracidade uma longa conversa decorrida inteiramente em tacomeno, a língua morta que há muito Haldur não ouvia saindo da boca de outro homem e que era desconhecida até pelos maiores historiadores europeus. E algo ainda mais surpreendente: a corneta que já fora usada para chama Rastang, o Grandioso. Tinha sido encontrado com o instrumento em suas mãos e uma flecha cravada no peito. Jasper não tivera tempo de chamar o dragão e morreu enquanto soprava na corneta. Desse modo, a trupe havia acabado de ganhar mais um membro. Jasper fora achado semanas depois de Haldur, mas não obteve a mesma fama pois o que ele por mais de um ano buscou não foi a deominação mundial ou o cumprimento de uma profecia, mas apenas o seu rei em pessoa que ele sabia que estava em algum lugar por aí. Fora um dia um mero camponês convocado pelo próprio rei a lutar contra o exército de Guillestein. Com muitos dos familiares mortos pelo frio, Jasper não viu opção senão manter-se fiel ao seu rei. Mas mesmo com a alegria da nova companhia, o plano de conquista global visiado por Haldur (ou melhor, por Deus) não parecia ter muito futuro e eles resolveram dar um tempo para melhor arquitetarem os próximos passos.

Resolveram instalar-se na humilde casa de Jasper, nada mais que três quartos apertados em um cortiço, piores até que onde Haldur morava em Berlim. Porém, Haldur mostrou-se humilde, focando apenas no plano que tinha em mente e não nas baratas que andavam pelas paredes. Alojaram-se no cortiço por longas e dolorosas duas semanas. Este trecho da história seria cômico se não fosse trégico. O espaço apertado era terrível e desconfortável, o banheiro causava calafrios na delicada Emilie e as hábitos de Jasper era no mínimo repugnantes, por um momento Haldur teve vergonha de tê-lo como compatriota.

Haldur por muito tempo ficou aliviado, nem pensava mais em Guillestein. Chegou a bolar viagens até a Turquia e Moscou, buscando o apoio de quem fosse necessário. Porém, mais uma vez o noticiários televisivo o abalou. Novas notícias de Lorde Guillestein. Havia tornado-se um criminoso procurado por toda a Europa. Ficou conhecido por uma série de atentados em Berlim, Bruxelas e Roma. Os comentaristas, apavorados, temiam sua chegada à Paris.

- Ele está em busca de vossa majestade! - disse Jasper – Ele não vai desistir até destruí-lo e tudo que resta de Tacomênia!

Mais uma vez Haldur fez o que todo rei deve fazer: liderou seu povo. Abriu mais um mapa, dessa vez um maior e deparou-se com massas de terra até então desconhecidas para ele. Estados Unidos? Líbia? Japaão? O mundo havia tornado-se bem maior e eles precisavam escapar de qualquer maneira. Guillestein não desistiria. Haldur e seu povo precisava ir para bem longe.

- Aonde iremos? - ele se perguntou olhando o mapa.
- Que tal aqui? Ouvi falar que eles tem praias e muito sol por lá! - disse Emilie apontando para um enorme continente no hemisfério sul.
- Certo – disse Haldur – Vamos ao Brasil!

Levantei as sobrancelhas naquele momento. Estava tudo finalmente se encaixando. Então aquele velho senhor estava conversando comigo na praça pois há muitos anos tinha escapado de um inimigo que o perseguia pelo velho continente. Ele estava quase me convencendo com a sua história fantástica, história essa que me fazia desejar que aquela tarde durasse um pouco mais.

Tiveram que atravessar o país inteiro até chegarem ao sul onde puderam alugar um barco clandestino que os levaria até o outro lado do Atlântico. Somente a jornada até o litoral foi tensa, com o perigo de um ataque de Guillestein sempre presente. O Lorde não estava sozinho em sua perseguição contra o rei. Segundo o que Haldur tinha compreendido, ele contava com um grupo de leais servidores, soldados em sua guerra contra Tacomênia. Se eram sobreviventes retirados do lago, Haldur não sabia.

Arranjaram um barquinho. O capitão, Pierre, um barbudo de aparência gentil, era um mestre dos mares, hábil em seu trabalho. Fez boas amizades com Haldur, Jasper e Emilie. Além do trio, estavam abordo pelo menos uma dúzia de pessoas, todas procurando um meio de atravessar o enorme oceano, vítimas de qualquer desespero que as forçava a sair de suas casas. O francês foi difícil para o grupo, mas Emilie, felizmente, sabia um pouco. Assim iniciou-se a jornada. O mediterrâneo era calmo e sereno e embora o Atlântico tenha se mostrado mais grosseiro, ainda era bem melhor do que viver em guerra no continente. Haldur não conhecia o mar, o seu país era de agricultores, pescadores não eram famosos lá e não haviam capitães ou velejadores em Tacomênia. Tudo era novo para Haldur. Brasil? Linda palavra nova.

Mas a paz durou pouco. Durante uma tarde de fortes ventos e céu nublado, muito parecido com aquele dia testemunhado por Haldur e seus soldados quando lutaram por Tacomênia, uma embarcação surgiu ao longe. Era maior do que o barco de imigrantes de Pierre e muito mais ameaçador pois tinha pintado em si um símbolo que encheu Haldur de medo. Um marujo falou com megafone, sua voz estridente:

- Rendam-se! Somos os piratas da Caveira Coroada! Queremos Haldur e sabemos que ele está aí!

O frenesi abordo foi imenso, os tripulantes pareciam um bando de galinhas confusas e assustadas. Pierre e os outros não sabiam do que se tratava exatamente, mas mesmo assim temeram o pior. Pierre sabia dos perigos daquelas águas melhor do que ninguém e acelerou como nunca. Haldur, Emilie e Jasper pensaram em pular e ir nadando para o litoral. Pensaram errado; água muito gelada e distância até a costa muito grande. Resolveram entrar em pânico.

- Queremos Haldur! Entregue-o! - o marujo hostil voltar a gritar em seu megafone.

Haldur não tinha ideia de como haviam sido encontrados, talvez mais uma bruxaria de Guillestein? De qualquer modo, tinham que escapar dali rapidamente. Mas o inimigo era rápido e implacável e os homens de Guillestein tinham poderosas armas de fogo em sua posse e começaram a atirar contra a embarcação de imigrantes.

Pierre era um velho lobo do mar mas não era páreo para piratas tão terríveis. Nunca antes teve sua embarcação alvejada daquela maenira, o velho barquinho chegou a balançar e o som das balas batendo no casco era insuportável. Não teve opção a não ser render-se.

Apareceu na proa com os braços ao alto:

- Estamos nos rendendo!

Pela própria expressão no rosto de Haldur e pelo tom de sua voz eu pude deduzir que tratavam-se de lembranças sombrias. Não sentia-se tão em guerra desde os velhos tempos. Contava essa parte velozmente, como se quisesse pular logo. Mas não pôde evitar, pois o momento mais importante na história tinha chegado: o seu confronto final com Guillestein.

Era verdadeiros piratas, cães marinhos. A embarcação inimiga aproximou-se do barco onde os heróis tacomenos encontravam-se e foram todos forçados a subir a bordo. Pierre e os imigrantes foram poupados e dados a permissão de partir. Haldur, como um bom rei, tinha um plano como sempre.

Estavam cara a cara com Guillestein. Estava mais terrível que nos dias antigos. Sua barba estava enorme e como era negra a sua barba, um homem alto e de olhos terríveis, um filho do diabo. Estava, porém, trajendo roupas militares muito mais modernas, nada de armaduras. Seus homens, na maioria contratados, portavam metralhadoras.

A neblina cercava todo o navio. O frio era tão terrível como o de 1251.

- Finalmente! - disse Lorde Guillestein – As circunstâncias fizeram com que nós sobrevivêssemos para que pudéssemos nos enfrentar mais uma vez! Aqueles homens que me tiraram do lago foram tolos demais. Dessa vez, Haldur Taco III, você não sobreviverá e a coroa do mundo será minha!

Um dos seus homens aproximou-se carregando uma espada. Haldur arregalou os olhos ao ver Guillestein lentamente tirando-a de sua bainha. Era Corta-Aço, a antiga arma dos reis tacomenos.

- Como? - Haldur disse – Ela quebrou-se em batalha!

- Foi encontrada no lago e levada a um museu. Eu e meus homens não hesitamos em roubá-la e reforjá-la. E agora, Haldur, vocês dois serão mortos por ela!

Foram forçados a se ajoelhar em uma cena cruel de execução. Emilie soluçava, Haldur continuou com uma expressão séria que logo transformou-se em um leve sorriso. Guillestein notou o semblante que seu adversário portava.

- Por que está rindo, Haldur? Você e sua patética amiga morrerão agora!

- Você não é o único que tem um exército. - respondeu Haldur.

Emilie, tão chocada com a situação e embriagada de terror, notou somente então que Jasper não estava ali presente. Para onde fora o jovem tacomeno? Foi aí então que um poderosíssimo som ecoou por todo o mar onde se encontravam. A neblina dissipou-se como fumaça que é levada por um forte vento e todos os homens de Guillestein levaram suas mãos aos ouvidos em resposta à aguda dor que sentiam.

Haldur já sabia o que era. A corneta soou de novo e dessa vez foi como que o mundo todo tivesse tremido. Era Jasper que jogara-se no mar. Tinha trazido a corneta como plano contra qualquer ataque vindo de Guillestein. Não tinham ideia se funcionaria até ouvirem um trovão vindo dos céus. Era Rastang, o Grandioso! Era mais veloz que qualquer águia, a força de suas asas incomensurável, sua figura como um véu negro que cobria todo o céu. A Ilha Negra no Lago Tacomênia partiu-se em pedaços quando o seu espírito, regido por forças mágicas desconhecidas pelos homens comuns, despertou de seu sono profundo. Cruzou a Europa como um locomotiva.

Quando chegou ao encontro de Haldur e os outros, seu rugido pode ser ouvido como um hino de terror e de majestade. O coração de Guillestein encheu-se de medo e pavor ao notar a terrível imagem do dragão milenar cruzando os céus e indo em sua direção. A boca da criatura já se abria e, mesmo distantes, os personagens que se encontravam naquela cena no meio do Atlântido já conseguiram sentir o calor de sua baforada de fogo.

E como o fogo de Rastang era destruidor! No momento que a labareda vermelha encontrava o casco do navio, Haldur e Emilie apressaram-se em pular na água. A última visão que tiveram de Guillestein e seus capangas era dele entre uma roda de chamas e seus gritos eram de homens desesperados, parecia um inferno. A água do oceano, antes fria como o fundo do que já foi Tacomênia, já era quente devido à presença de Rastang. E o dragão continuou com suas baforadas, o navio queimando como uma tocha.

Aquele foi o fim de Guillestein e de sua perseguição contra os tacomenos. Nunca mais o estandarte da Caveira Coroada foi reverenciado ou temido depois daquele dia. Todavia, não era o fim da história de Haldur.

- Minha história termina com minha chegada no Brasil... - o velho me disse.

E continuou contando-me. Derrotado o inimigo, Haldur, Emilie e Jasper agradeceram ao velho dragão e lhes foi oferecida uma carona até onde desejassem.

- Posso voar até qualquer lugar do mundo – disse o dragão, redescobrindo depois de muito a sua incrível capacidade de falar.

- Ao Brasil! - disse Haldur.

Sentaram-se, ou deitaram-se, nas costas do dragão. Suas escamas verdes de longe podiam parecer duras, mas eram macias como um casaco. Passaram quase um dia nas costas de Rastang a cruzar o Atlântico. O sol se pondo, Haldur contou-me, foi algo que ele nunca se esqueceu. Teve uma epifania naquele segundo. Pela primeira vez desde seu despertar quase dois anos atrás, Haldur finalmente entendeu o plano que Deus tinha para ele. Não envolvia dominar o mundo, governar a Europa e declarar-se o rei de todas as nações para cumprir com alguma antiga profecia. Talvez fosse outra coisa que ele ainda não tinha compreendido. Tinha até mesmo esquecido da sua espada, a Corta-Aço, perdida entre o mesmo fogo que consumiu Guillestein. Todo seu orgulho que ele nem sabia ter foi eliminado de sua alma assim que Rastang pôs na cidade litorânea.

O Brasil era bem diferente da Europa da qual Haldur estava habituado. Emilie, muito educada, tinha visto apenas em fotos e livros e Jasper nem sabia direito o que era. Não haviam muitas cidades, o clima era mais quente e o próprio céu parecia ter outra cor.

De qualquer forma, lá estavam, talvez não onde quissessem estar, mas onde pareciam precisar estar. Vontade divina ou força misteriosa do destino, no Brasil estavam.

Tiveram que despedir-se de Rastang.

- Aonde vai? - perguntou Emilie.
- Não sei, jovem, talvez procurar por outro dragão ou encontrar uma caverna onde possa me esconder – o dragão respondeu.

E alçou voou. Ninguém nunca mais viu Rastang, e ele se tornou uma lenda no mundo. Dizem que ele chegou a encontrar uma dragoa em algum lugar da Ásia e que juntos eles tiveram muitas crias. Outros dizem que ele morreu de solidão na Antártida. Ninguém nunca soube da verdade.

Quanto aos companheiros de jornada de Haldur, cada um teve, assim como o rei, uma mudança de espírito. Jasper não era o mesmo pobre camponês que abandonara o campo em 1252 para morrer ao lado de seu rei. Tinha agora visão, um futuro todo pela frente. O mundo já não era mais sua pequena fazenda no interior de Tacomênia, era muito mais.

Emilie entregara sua alma a seu rei, seu ídolo singular cuja imagem beirava o divino. Haldur, com o passar da jornada, havia se tornado mais que uma fonte de inspiração e idolatria para a jovem Emilie Weber. Seu coração ardia por ele e o admirava com ternura e paixão. Mas escondeu isso inicialmente, guardando o sentimento para si.

Rastang os deixou em uma clareira cercada por um denso matagal. Sabiam que ao sul havia uma grande cidade banhada pelo litoral pois tinha a avistado durante o voo. Por muito caminharam até encontrarem uma estrada. Um caminhoneiro gentil ofereceu uma carona aos três exaustos viajantes. Até a cidade. Quando perguntaram qual era o nome dela, o motorista respondeu:

- Ora, é o Rio de Janeiro!

Neste ato final da história, Haldur pôde finalmente respirar pois foi aí que seus dias de paz começaram. Os primeiros meses no Rio foram difíceis para os três. Não falavam direito o idioma (este problema parecia perseguí-os) e não tinham dinheiro nem trabalho. Diferente da Europa, Haldur não era famoso por ser o rei perdido de Tacomênia. Era só mais um senhor. Mas Jasper acabou conseguindo trabalho em um supermercado local e pôde sustentar os amigos. Emilie não conseguiu mais esconder seus sentimentos pelo seu rei. Saudoso dos tempos matrimoniais com sua amada rainha, Haldur acabou revelando sua surpreendente afeição por Emilie Weber em um estranho caso improvável de amor.

Mostrou-me uma foto que guardava no bolso de um rapaz e duas moças.

- Meus filhos. - ele me disse, sorrindo.

- E o que aconteceu nos anos seguintes? - eu perguntei.

- Nada demais. - o velho me respondeu – Não houve mais batalhas contra bruxos, nem mais dragões, nem mais magias, nem exércitos de cavaleiros ou qualquer coisa parecida. O mundo parecia normal. Eu arranjei um emprego miserável por um tempo, aprendi o idioma e consegui me aposentar. Até me casei com Emilie.

- E quanto a Jasper?

- Viajou há anos. Foi embora, para bem longe, não sei onde. Acho que ele achou seu propósito.

- E quanto a você? Qual seu propósito?

- Não sei – ele disse – Talvez Deus só quisesse que eu vivesse, não que eu continuasse sendo um rei. Mas não me importo muito em saber a resposta para essa pergunta. Estou grato por estar aqui, nessa vida boa e simples.

O velho levantou-se lentamente com a ajuda da sua bengala e olhou para o horizonte, o sol estava se pondo. Olhou para mim com um sorriso no rosto, um sinal humilde de despedida.

- Meu senhor, essa história toda é inacreditável. - eu disse - Dragões e feitiçaria não são coisas reais. Como espera que eu acredite nisso tudo? Por que, afinal, me contou tudo isso?

O velho respondeu:

- Ora, não precisa acreditar. É uma história para alegrar essa tarde entediante. A vida precisa de um pouco disso tudo.

E saiu a passos lentos. Despediu-se de mim com um aceno e sumiu na esquina. Nunca mais cheguei a ver aquele velho senhor de novo. Fiquei lá, sentado, pensado em reinos encantados e castelos cheios de tesouros, bruxos maléficos e dragões terríveis. Será que a história era verdadeira ou só produto da fértil imaginação de um senil idoso? Por algum motivo, fiquei inclinado a acreditar na primeira hipótese. Lembrei-me do histórico mitológico e religioso da humanidade. Nós sempre nos sentimos mais confortáveis crendo em mitos e lendas e depositando neles nossas esperanças, sonhos e convicções. Talvez a história de Haldur, ou seja lá quem fosse aquele senhor, fosse verdade e ele fosse o último rei de Tacomênia. E se não, qual a importância? O importante é que eu tinha mais uma história interessante adicionada ao meu vasto catálogo, algo para sempre me lembrar, um mundo aonde eu possa viajar quando estiver entediado num fim de tarde numa praça.

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