7 de julho de 2016

Tem Alguém na Minha Cozinha - Parte 1

Ouço um barulho vindo da minha cozinha. O pior de tudo é que eu moro sozinho. Eu sabia que esse bairro era perigoso. Levanto-me e pego o meu taco que beisebol, que eu ganhei três anos atrás quando fui visitar meu tio nos EUA. Penso em levar minha faca guardada debaixo do travesseiro, mas não queria sujar tudo de sangue. Deve-se ter classe ao matar um bandido.

Olho para o relógio, são quatro horas da madrugada. Que ladrão esperto, escolhendo a melhor hora para entrar nas casas. 

Avanço pelo corredor erguendo minha arma autografada pelo próprio Joe Girardi. Passos leves. Ainda consigo ouvir barulhos na cozinha. Posso ouvir minha geladeira abrindo, alguém se apaixonou por ela.

- Aquele desgraçado sentirá o gosto da madeira nova-iorquina bem na bunda dele.

Chegando na cozinha vejo que a luz está apagada. Na verdade nada vejo. Apenas ouço uma espécie de rosno. A única fraca luz vem da geladeira, e posso ver a silhueta de alguém.

Jesus. Não parece com uma pessoa. É um bicho baixo, magro e cheio de jeitos estranhos. Está comendo a macarronada que eu guardei do jantar. Esse desgraçado, seja humano ou não, foi longe de mais.

Ligo a luz e posso ver a criatura melhor. Credo! Parece um Gollum, aquele bicho do Senhor dos Anéis. Sua pele é meio que cinzenta, seus olhos são grandes e amarelos. Não tem pelos e seus dentes parecem presas.

Ela dá um grito alto que eu acho que acordou meu vizinho surdo. Avanço com meu bastão nova-iorquino, mas ele consegue jogar a bacia cheia de macarrão em mim.

- Filho da mãe! Vem cá!

Ele acha que pode fugir de mim! Dou três batidas na cabeça dele. Sorte do desgraçado que eu não sou muito forte, se não teria esmagado seus miolos ou seja lá o que ele tenha.

- Pu favô... para... dói...

Eu estou ficou louco ou antes de eu conseguir dar uma quarta tacada aquele bicho falou?  Agora o maldito parecia conseguir dialogar. Estava todo coitadinho. Quase senti pena.

- Você fala? - eu pergunto.

- Sim, mim fala. Num mata mim. Mim cum fomi.

- Que diabos é você? Algum tipo novo de bandido? Qual o seu partido?

- Mim num sabê mim nomi. Mim cum fomi. Pu favô num mata mim.

- Você não sabe seu próprio nome? Ah, é estúpido mesmo.

Levanto meu bastão, pronto para desferir um ultimo golpe, rápido e fatal. Mas a criatura aparentemente gostava de sua vida, o que me surpreendeu.

- Pu favô, sinhô. Mata num. Mim fazê coisa pu sinhô. Mim trabaia pu sinhô.

Aquela ideia me pegou. Eu posso fazer algo com aquele bicho. Sei lá, como estudá-lo, talvez mostrá-lo para alguém. Não se vê um Gollum da vida real todos os dias revirando sua geladeira!

- Sério? O que você sabe fazer?

- Mim sabi limpá as casa. Mim usa a lingua pá limpá sujeira. Mim sabi cuzinhá e arrumá coisa. Num mata mim, pu favô. Disculpa, sinhô.

- Isso é interessante...

Afinal, olhando bem, essa coisa não parece tão má assim. Só está com fome. Ele deve ter vindo da mata, como um animal selvagem sentiu-se atraído por minha casa. Só achou que haveria comida aqui.

Não sei se seria certo matá-lo. Acho que isso não seria ser um bom cristão.

- Você está realmente com fome? Aqui, tome essas duas maçãs.

- Ó! Obrigadu, sinhô!

- Agora saia daqui!

Ainda tem tempo de devorar as duas frutas, deixando o suco cair no chão. Vejo ela sair correndo pelos fundos, ainda com a maçã na boca. Que coisa!

Poderia ser pior, poderia ter tentado me matar. Só estava com fome. Espero que nunca mais volte, ou talvez não tenha tanta piedade.

***

Nada melhor do que acordar numa bela manhã de sábado como essa. Já que eu não vou trabalhar, fico em casa assistindo filminhos dos anos 90, acessando bobagens da internet e lendo livros antigos que me fazem parecer inteligente.


Dou uma passada no mercado para comprar meu almoço. Escolho minhas marcas favoritas, encontro alguns amigos, sinto o cheirinho dos produtos. Como é bom ser feliz.

Até conheço uma nova caixa que o mercado contratou. O nome dela é Denize, deve ser alguns anos mais nova. Mas é uma garota adorável. Até me deu o seu número de telefone. Adoro dias de sábado.

Só pelas quatro da tarde eu saio para dar uma volta de bicicleta. Normalmente eu pedalo por uns quatro quilômetros (dois indo e dois voltando). Mas dessa vez mal passo da esquina e uma velhinha me para. Era a Dona Cruz, só ouço a voz dela pois não estou com meus fones de ouvido (perdi eles na semana passada).

- Seu Ricardo! - ela me chama - Tu soube da ultima?

- O que?

- Não sei se é verdade, mas tão dizendo que tem um bicho, um monstro entrando na casa do povo. Tu ouviu falar?

É o Gollum que eu vi ontem! Meu coração gelou. Caramba, esperava que aquilo tivesse sido um sonho. Agora é mesmo um ladrãozinho infernal invadindo a casa das pessoas.

- C-como? - gaguejo - Que tipo de bicho?

- Ah, tão dizendo que ele é baixo, quase preto e anda nu.

- Quem viu ele?

- Ele entrou na casa da irmã da Lídia ontem a noite. E de madrugada o Seu Jacques quase deu um tiro nele. O miserável anda procurando comida. Num sei o que é, mas se eu ver ele eu mato com minha vassoura, ah sim.

- Na verdade, Dona Cruz, eu também vi ele ontem.

- Verdade?

- Sim, eram quatro horas da madrugada. Eu quase matei ele com meu taco de beisebol, mas meio que fiquei com pena e dei duas maçãs. Ele parecia estar com fome, não achei que fosse um bicho ruim.

- Meu filho! Tu devia ter arrancado as tripa do maldito! Num dê comida para ele que ele vai se viciar.

- Eu entendo, Dona Cruz. Próxima vez eu vou ver se pego ele.

Me despeço e saiu pedalando. Chego em uma trecho cercado de mato e fico com medo de algum Gollum pular em mim. Será que existem mais daqueles bichos? Talvez sejam uma nova espécie, ou sei lá.

Chego em casa, ainda leio um pouco, navego na net, assisto alguma porcaria e vou para cama. Mas antes de conseguir fechar os olhos, alguém liga para mim. É a Denize, a caixa do mercado.

Temos uma boa conversa, ela pergunta se poderíamos nos encontrar. Eu falo que sim e poderia na minha casa, amanhã de noite. Desligo, durmo e tenho bons sonhos. Nada melhor que um encontro numa noite de domingo.

Mas meus sonhos são interrompidos por barulhos na minha maldita cozinha. Como na noite passada. Jesus, eram duas horas da madrugada. Será que é aquele desgraçado? Com certeza, e meu taco de beisebol iria revolver as coisas.

Os barulhos cessam. Quando chego na cozinha, me deparo com o mesmo bicho, agora deitado na minha mesa, como se fosse uma cama!

- O que está fazendo aqui? Disse para ir embora - eu grito.

A criatura se assustada e cai da mesa, se debatendo no chão, chorando e implorando.

- Pu favô, sinhô. Num mata mim. Mim cum sono, mim cum frio. Lá fora faz friu. Aqui é quenti.

- Ontem à noite eu mandei você ir embora. Você é um ladrão. Não vou te tolerar. Você tem andado roubando casas de outras pessoas no bairro, eu sei disso.

- Mim num tem casa. Mim anda fazendu coisa ruim pu causa qui mim num tem ondi morar, nem ondi cumê. Se sinhô deixá mim ficá aqui, mim num faz coisa ruim nunca mais.

Seus olhos tão grandes, quase pulando pra fora da cabeça. Novamente, eu sinto pena desse bicho. Mas como não. Ele é selvagem, mas me lembra uma criança, ingênua.

- Você não tem mesmo para onde ir? - eu pergunto.

- Num tenho, sinhô.

- Gostaria mesmo de ficar aqui? Qual o seu nome? Vou te chamar de Mim. É assim que você vive se chamando. Pode ficar aqui, Mim, por esta noite. Amanhã vou ver o que faço contigo.

- Obrigadu, sinhô.

- Mas você vai dormir na minha despensa.

- D-dispensa? - diz a criatura gaguejando.

- É, é uma sala bem escura e apertada onde eu guardo lixo.

Arrasto ela pelo chão como se fosse um saco cheio de estrume. O Mim parece não resistir, mas também não está feliz. A minha escura e suja despensa, bem apropriada para ele, é sua ultima parada. Amanhã ele não terá vez.

***

Mim parece se manter bem calmo na sua cela, provavelmente dormindo. Ótimo, agora posso matá-lo em seu sono. Foi bom conhecê-lo, mas agora é hora. Uma ligação, porém, me para bem no momento que vou abrir a porta com meu bastão levantado.

É Denize.

- Oi?

- Oi, Denize. Tudo bem?

- Tudo, Ricardo. Eh, hmm... você sabe que o nosso encontro é hoje, né? - ela pergunta.

- Sim, claro!

- Espero que você tenha preparado algo bom pra mim.

- Como assim? - eu dou uma risada.

- Uma surpresa, sei lá. Primeiro encontro é assim.

Mulher é mesmo uma desgraça.

- Tchau, Ricardo.

- Tchau.

Me ferrei. O que faço agora? Ela parece ser bem exigente. Odeio esse tipo de mulher. Acho que vou me dar mal, já que não tenho nenhum qualidade. Quer dizer, eu tenho casa própria, mas não dirijo, nunca terminei a faculdade e ainda sou feio como um chinês leproso.

Espera um pouco...

Abro a porta com a força de mil Hércules em um empurrão. Mim está no chão, deitado no chão em posição fetal, como se estivesse fazendo 0 grau.

Dou um chute nele, um pontapé.

- Ah, sinhô! Mias costa, sinhô!

- Acorda. Preciso de você.

Aquela noite de domingo seria a mais estranha da minha vida.



CONTINUA...

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