Há quem se deleite com os prazeres da noite
Em baladas e festas
Em boates e bares
Entre bebidas e beijos
Entre perigos e segredos
Mas a madrugada para mim
É quando ouço o escuro falar
É quando eu contemplo o vazio
E meus pensamentos gritam contra
O silêncio
Até que gosto da madrugada
25 de dezembro de 2019
24 de dezembro de 2019
Solidão
Eu conheço a solidão
Pois eu já vi seu rosto
E já ouvi sua voz
É como um enorme vulto
Que com sua escuridão
Cobre a tudo em nossa volta
Porém que não se vê
Se sente apenas
Sempre a sussurrar
Sobre o medo
Sobre a morte
Sobre a dor
Sobre o nada
Sobre o fim
Sobre o nunca
Como é terrível a solidão
Pois eu já vi seu rosto
E já ouvi sua voz
É como um enorme vulto
Que com sua escuridão
Cobre a tudo em nossa volta
Porém que não se vê
Se sente apenas
Sempre a sussurrar
Sobre o medo
Sobre a morte
Sobre a dor
Sobre o nada
Sobre o fim
Sobre o nunca
Como é terrível a solidão
21 de dezembro de 2019
O Rei de Tacomênia
Eu costumava frequentar uma
praça bem movimentada em minha cidade há alguns anos. Todo fim de
tarde, quando o clima era ameno e o sol já se preparava para
repousar no horizonte, eu achava um jornal, revista, livro ou mesmo
um bloquinho de palavras-cruzadas para ocupar meus olhos e, relaxado,
sentava-me em um banco que existia ali. Era uma praça agradável. A
grama era bem cuidada, as árvores eram bonitas e de copas fartas de
um verde esmeralda e vivo, as crianças que por lá perambulavam a
conversar sobre suas tramas inocentes e banais eram fonte de muito
contentamento para uma alma cansada como a minha. De vez em quando,
porém, eu deslocava minha visão da folha que tinha em mão para o
meu redor, a procurar algo de interessante.
E de vez em quando surgia,
de fato, uma pérola entre pedras comuns. Como havia vários bancos e
muitas pessoas a circular, surgia frequentemente alguém que passava
para descansar ou ler um livro em um assento. Para quebrar o silêncio
ou por necessidade de colocar uma conversa para fora, este
desconhecido ou eu iniciava uma conversa que normalmente estendia-se
pela tarde toda. Já ouvi de tudo: testemunhas do lobisomens,
ex-celebridades, pessoas com passados e histórias que iam do
ridículo ao inacreditável.
Assim foi por muito tempo,
eu sentado num banco de praça tentando achar algo que me fascinasse.
Mas o mundo, mesmo lindo, parecia pequeno dali. Mas mesmo com tantos
contadores de histórias que eu conhecia, parecia que eu ainda não
tinha encontrado o caso mais incrível ainda.
Até que um dia, quando eu
já estava quase cansando-me do mesmo banco, da mesma praça, da
repetitiva contemplação de sua beleza e de ouvir histórias
diversas mas que não me impressionavam ao máximo, eu conheci uma
pessoa. De longe não parecia ninguém extraordinário, mas seria a
fonte da história mais extraordinária que eu já ouvi.
Tratava-se de um senhor, uns
setenta anos. Era baixinho, mais baixo do que eu (sempre fui
considerado pequeno). Talvez um metro e sessenta e dois de altura, no
máximo. Sua barba era branca como neve e em sua cabeça não havia
um único fio de cabelo, seria reluzente se não fosse enrugada. Seus
olhos eram bem azuis e sua pele era rosada. Não seria estranho achar
que ele fosse estrangeiro e ele, de fato, era. Seu andar era de
alguém que já não aguentava mais a vida, como se tivesse passado
da data de validade, um guerreiro de muitas batalhas, um sobrevivente
de todas as calamidades.
Avistei-o certo dia andando
pela rua da pracinha. Na ocasião, ele vestia uma camisa branca de
botões e calça preta, acompanhado de sapatos também pretos e
portava um relógio bem bonito. Sustentava-se graças a uma bengala
que mesmo assim não o impedia de caminhar aos tremidos e com
instabilidade. Apesar de tudo, estava bem elegante e chegou a chamar
atenção pois ninguém o tinha visto ali antes.
Inventou de sentar-se ao meu
lado e eu fui logo imaginando que tipo de histórias ele iria contar
para mim. Ele pareceu me ignorar inicialmente, mas depois de alguns
minutos contemplando os pássaros que voavam pela praça, ele
perguntou a mim:
- Lendo jornal?
- Sim.
- Alguma notícia sobre
Tacomênia?
- Sobre o quê?!
O nome foi uma surpresa,
nunca tinha ouvido antes. Mas a medida que fomos nos aprofundando em
nossa conversa, fui descobrindo mais sobre aquela estranha palavra.
Tacomênia, gentílico tacomeno, tratava-se de um pequenino país
perdido no meio da Europa, uma pequena nação que já não existia
mais e que há muito tempo fora incorporada a outros estados. Seu
auge foi durante a Idade Média, tendo sido palco das mais
espetaculares batalhas, das mais incríveis tramas entre irmãos pela
Coroa e das mais lindas baladas já cantadas. A literatura de
Tacomênia era riquíssima, seu povo farto e feliz (embora passasse
por muitas dificuldades como todos os outros países medievais) e sua
cultura a mais esplêndida. Entretanto, o país viu seu declínio com
o aparecimento de um terrível inverno que assolou toda a região
durante o século treze.
Assim me contou aquele
senhor. Conversamos bastante sobre o país do qual eu nunca tinha
ouvido falar antes e ele conseguiu me deixar bem curioso. Afinal,
como sabia tanto de um reinozinho que ficava tão longe e que havia
acabado há tanto? Não me apressei em perguntar isso e a resposta
dele foi a melhor possível:
- Ora, eu já fui rei de
Tacomênia!
A ideia de estar conversando
com um rei medieval era absurda demais, então eu ri, o que deixou o
senhor muito desconfortável. Mas eu precisava mesmo de uma fonte de
comédia naquela tarde entediante.
- Como você se chama? - eu
continuei a indagá-lo.
- Haldur é o meu nome,
Haldur Taco III.
Continuou contando-me a sua
história, e meu riso de natureza zombadora acabou se transformando
em um semblante de seriedade, pois a sua jornada mostrou-se no mínimo
envolvente. Haldur foi, segundo ele, o quadragésimo nono rei de
Tacomênia. Morava em seu castelo na capital, Tacopolis. Era amado
pelo seu povo que o via como um herói. Assim eram com todos os reis
de Tacomênia, todos eram heróis, muito diferentes dos outros
monarcas europeus da época. Haldur tinha sua rainha e filhos e
filhas, estes eram condes e baronesas, orgulhosos e bravos
cavaleiros, belas e inspiradoras donzelas.
Tinha, inclusive, um
poderoso dragão como aliado. Era Rastang, o Grandioso, um enorme
réptil alado de verdes escamas e conhecido (e temido) por seu hálito
de fogo. Morava na Montanha Negra, no centro do reino, a única
montanha de Tacomênia. Já foi inimigo dos tacomenos até o reinado
de Hender o Corajoso quando este o libertou de um terrível feitiço
que tinha o aprisionado na montanha. Sua morada continuou sendo a
Montanha Negra, porém ganhara liberdade. Rastung era motivo de muito
terror, mas também era um amigo próximo de todos os reis daquele
país, pois era eternamento grato por ter sido libertado da bruxaria
e os monarcas de Tacomênia sempre podiam contar com ele contra
qualquer perigo que ameaçasse o reino. Era sempre chamado quando
tocavam a sua corneta, um instrumento feito do osso de um dragão.
Seu som era estridente e poderoso e ecoava por todo o reino..
Por muito tempo, então, foi
boa a vida em Tacomênia.
Mas então, conspirações
começaram a surgir contra Haldur. O rei tornou-se inimigo do Lorde
Guillestein, seu arqui-rival que há muito planejava usurpar o trono
e ter o governo da Tacomênia inteira para si. Cercado por um leal
exército, este nobre tirano tinha como bandeira a Caveira Coroada,
consistindo da imagem de um crânio humano adornada por uma coroa. O
plano de Guillestein era sórdido e maquiavélico, sustentando-se
com base em velhas rixas e no apoio de tropas e tropas de leais
cavaleiros e brutais mercenários.
O rei Haldur, porém, não
temia a morte, embora tivesse medo do que um ataque do exército de
Guillestein pudesse fazer ao povo do país. Religioso, purificava-se
diariamente e passou com o tempo a ouvir sobre profecias que
envolviam sua queda em batalha.
- Ele não pode morrer, tem
proteção divina – alguns diziam
- Deus tem planos para ele.
Se morrer, se levantará para governar o mundo séculos depois! -
outros comentavam.
E então as profecias foram
ganhando forma, prelúdios de um destino supostamente premeditado por
forças superiores. Dessa forma, da boca do povo, o rei Haldur Taco
III foi ganhando a fama de abençoado e foi ganhando a simpatia das
pessoas pelo reino e até mesmo do outro lado da fronteira. Haldur o
Imortal, assim era conhecido. Poetas começaram a escrever sobre um
futuro em que Haldur se levantaria de entre os mortos e reinaria o
mundo. Assim era a profecia: o rei que caiu um dia se erguerá e o
mundo inteiro governará.
Mas para a maioria dessas
eram só histórias para entreter o povo entediado de Tacomênia.
Todos levavam uma vida tão simples que, com a ameaça de uma guerra
real contra Lorde Guillestein, eram inventados contos mirabolantes e
fantasiosos para não deixar a população tensa ou alarmada.
Mas então a guerra chegou.
Lorde Guillestein, do seu castelo negro além das Colinas dos Lobos,
passou a tramar um conflito que levaria ao fim de Haldur. Não
envolvia calúnias e difamações como era de costume antes, mas um
combate real com o uso de seus exércitos que, se bem comandados,
eram capazes de causar grande dano à sociedade Tacomena.
Porém, não só com força
humana o terrível Lorde contava. Através de amizades agourentas com
os piores tipos disponíveis no reino, isto é, feiticeiros servos
de demônios cujos nomes eram impronunciáveis, Guillestein desvendou
os segredos das magias e ciências negras até então desconhecidas a
ele ou a qualquer cristão do reino. Com a ajuda de aliados bruxos,
Guillestein conseguiu conjurar uma poderosíssima magia contra
Tacomênia: o inverno mais cruel da história da Europa e talvez de
todo o mundo.
Não houve exagero nos olhos
de Haldur quando me falou sobre o impiedoso inverno que devastou o
seu país. Chegou rápido. Certa manhã, uma neblina caiu sobre toda
a nação. No dia seguinte já havia neve sobre o castelo real e
então em poucos dias o frio atroz teve início. Os campos da
Província Norte, antes verdes e sob um céu azulado, tornaram-se
alvos pastos adornados por um manto cinzento. Plantações foram
destruídas, o pouco que foi salvo não durou muito. Muitos pereceram
naquele ano de 1252 (Haldur não teve certeza quanto a data, mas
especulou que fosse esta).
Por conta de tais
calamidades, o claro tacomeno começou a rezar a indagar-se sobre o
paradeiro de Deus naquela hora tão sombria. Seria um castigo?
Igrejas e catedrais viraram palcos de intermináveis debates e
súplicas dirigidas ao céu. Depois de meses, o inverno continuava e
não parecia dar trégua. Só piorava. Ficou claro, então, que havia
algo maligno naquilo tudo.
Certo dia, um mensageiro de
aparência sinistra surgiu diante dos portões do castelo real.
Haldur não teve dúvidas quanto à sua identidade, era inimigo pois
portava a bandeira da Caveira Coroada. Sua mensagem era clara:
Gullestein tinha declarado guerra contra Haldur Taco III e o inverno
mortal era sua primeira cartada contra o estado tacomeno. Também
informou que uma batalha decisiva seria travada nos campos perto do
Condado Kurt ao Oeste. Haldur irou-se naquele momento e foi logo
dando ordens militares. Seus generais começaram a deslocar homens
para o combate. Milhares de tacomenos, novos e velhos, foram armados.
O mensageiro foi embora com outra mensagem ao seu mestre: a guerra
será travada.
A hora chegara. O exército
tacomeno, comandado por Haldur e seus mais leais capitães, marchou
até o Condado Kurt. Passaram por vários vilarejos devastados pelo
inverno e abandonados pelos aldeões que não conseguiram aguentar a
diabólica maldição jogada sobre eles. Haldur viu aquilo e
encheu-se de fúria e ordenou que marchassem mais rápido pois não
aguentava esperar para ter a cabeça de Guillestein cravada em uma
lança.
Os dois exércitos
finalmente se encontraram nos campos onde haviam marcado a batalha.
Haldur, montado no seu melhor corcel, antes um homem baixinho e
sereno, agora era como um bárbaro das antigas, pronto para vingar o
seu povo. Do outro lado estava Lorde Guillestein que cobiçava nada
mais que o trono de Tacomênia, o poder era o que o movia e não se
importava com o que precisava fazer, ele queria a coroa para si.
A corneta soou. A neblina
era intensa e alguns que usavam elmo tiveram dificuldades para ver. O
frio só não era mais forte que a emoção da guerra e a dor
provocada pelo combate. Espadas fizeram sangue jorrar naquele dia,
cabeças rolaram, lanças muita carne cortaram e flechas voaram
indômitas.
No final da batalha,
sobraram poucos dos milhares que vieram à cena. Os tacomenos leais à
Haldur eram corajosos e cheios de força. Sua coragem era testada ao
enfrentar os sanguinários mercenários contratados por Guillestein,
homens brutos e portando enormes machados que tinham a guerra como
trabalho e a recompensa como sacos de moedas, não hesitavam em
matar. Haldur lutou bravamente mas acabou perdendo seu cavalo, morto
por flecha. Até mesmo a Corta-Aço, a sua espada forjada há séculos
pelos seus antepassados, partiu-se durante combate. Pensou em uma
ultimato: chamar Rastang, o Grandioso, para ajudá-lo em um momento
tão tenso. Porém, a corneta havia sido perdida, em posse de algum
soldado morto entre os muitos que já caíram. Portando escudo e vestindo armadura, Haldur
aguentou os maiores inimigos em pelejas diretas sobre a neve pintada
de vermelho. Guillestein também acabou se encontrando sem sua
montaria e passou a matar usando uma tecnologia em que tinha muita
perícia: arco e flecha.
Procurou pelo rei e quando o
encontrou não viu dificuldades em acertá-lo com sua flecha. Apenas um disparo certeiro. Guillestein fora um exímio arqueiro na
juventude. Acertou Haldur no tronco, os órgãos internos do pobre rei
perfurados. Os sangramentos internos e a dor que se sucederam o
forçaram a cair de joelhos no chão em uma épica gravura medieval
de heroísmo, bravura e sacrifício. Não se aguentou muito, desabou.
As últimas imagens que Haldur se recorda de sua época como rei
foram o céu nublado e a neve tocando seu rosto. Pôde sentir o gelo
endurecendo a sua pele, como que fosse congelado. Gritos de homens e
o som de lâminas chocando-se foram os sons finais ouvidos pelo rei
derrotado. E então tudo ficou escuro.
A história me comoveu
bastante. Cheguei a largar as palavras cruzadas que eu solucionava de
lado para dar ouvidos à sua fantasia. Sim, fantasia, pois até agora
aquilo não passava de um conto inventado talvez pela mente senil de
um velho solitário. Entretanto, Haldur (ou seja lá qual fosse seu
nome verdadeiro) decidiu apresentar uma evidência de sua queda em
batalha. Lentamente ele desabotoou a camisa e revelou, na região do
peito, uma cicatriz de perfuração. Fiquei pasmo por um segundo e me
deixei levar mas depois eu demonstrei minha increduilidade.
- Ah, está me dizendo que
essa ferida foi causada por uma flechada que o senhor tomou durante a
Idade Média? - eu disse.
- Eu juro!
- Muito bem, então como é
que o senhor está falando comigo agora? Como veio parar em nosso
tempo.
O velho limpou os lábios e
deu início a mais uma longa história. Dessa vez eu fui transportado
a 1968. Mas antes veio o prólogo. Por muito tempo Haldur permaneceu
congelado. O inverno provocado pela bruxaria de Guillestein provou
ser mais terrível do que qualquer um imaginara, inclusive o próprio
Guillestein. O país foi totalmente destruído, os que sobreviveram
fugiram para outros cantos da Europa. Lorde Guillestein por pouco
tempo comemorou a sua vitória. Morreu de frio em seu castelo na
capital, um fim trágico para o vilão Os seus mais fieis aliados
fugiram. Em suma, Tacomênia tornou-se desabitada.
Um milagre, porém, surgiu
de toda essa maldição. Assim como previam as profecias, Haldur
acabou realmente voltando à vida. Nos anos sessenta, mergulhadores e
arqueólogos descobriram, explorando o fundo de um lago no centro da
Europa, ruínas de uma civilização há muito esquecida pelo resto
do continente. Tratava-se do que já fora um dia Tacomênia. O reino
inteiro se encontrava em uma enorme depressão, muito abaixo do nível
do mar. Quando a temporada gélida atacou, a neve cobriu a tudo e,
conforme foi intensificando-se, a paisagem foi sendo enterrada por
metros e metros da massa branca. Como o inverno durou décadas, foi
lento o descongelamento e, quando este aconteceu, foi criado um lago
que encheu a todo a depressão onde um dia esteve Tacomênia.
E era justamente esse o nome
do grande lago situado entre a Alemanha e a Polônia: Lago Tacomênia.
Uma ilha situava-se exatamente no centro do lago, a Ilha Negra. Era
na verdade o que já foi a Montanha Negra, ou melhor, o seu cume e lá
poucos sabiam mas o dragão Rastang ainda dormia profundamente
esperando para que o chamasse.
Séculos se passaram e a
Europa foi reconstruída. O nome Tacomênia se tornou uma lenda, uma
palavra engraçada usada para definir algo de natureza fantástica,
memórias de um mundo esquecido.
Porém, durante a exploração
do lago em épocas mais recentes, foi descoberto, cubrindo ao que já
foi o reino como que uma armadura, uma espessa e peculiar crosta de
gelo. Tratava-se de um fenômeno decorrente do intenso inverno que
assolou o país séculos antes, embora os pesquisadores na época
fossem ignorantes quanto a isso. A bruta e constante tempestade que
durou décadas acabou por criar um espécie de atmosfera própria
para a depressão onde Tacomênia se encontrava. As temperaturas eram
absurdamente baixas e a região literalmente congelou. Porém, com o
descongelamento, o gelo persistiu e passou a residir, imutável, no
fundo do lago Tacomênia.
Tantos detalhes científicos
foram contados a mim pelo próprio Haldur, algo que me surpreendeu.
Ouvir histórias mirabolantes daquele velho era esperado, mas termos
científicos? De qualquer forma, estava tudo sendo bem divertido e eu
não ligava para o que era verdade e o que era mentira. Toda aquela
baboseira de fundo de lago congelado podia ser invenção do velho,
assim como o bruxo da idade média. Mas era uma tarde entediante,
fazer o quê?
Continuou a história. Entre
os achados estavam ruínas de catedrais, castelos e cidades. Mas o
mais interessante de todos foi um corpo encontrado em um planície. É
importante ressaltar que tais descobertas foram realizadas por uma
máquina capaz de aguentar as altas pressões no fundo do lago.
Utilizando um tipo de furadeira, a incrível máquina abria caminho
por entre o grosso gelo no fundo do Lago Tacomênia. Desse modo foi
encontrado o corpo de um velho, vestia armadura e era tão bem
conservado que parecia vivo. Sua remoção foi cautelosa, contando
com o uso de garras mecânicas operadas remotamente.
O resto da história parecia
ter vindo de um filme de terror. Resgatado o iceberg que continha
Haldur, toda a equipe ficou chocada com o que via. Como podia um
homem ter sido preservado de tal maneira? Quando o gelo descongelou,
foi levado a um laboratório onde exames foram feitos no "cadáver".
Perceberam que ainda estava vivo, seus batimentos cardíacos e todo o
seu metabolismo, embora desacelerados, ainda se mantinham. Era como
um urso hibernando. Foi quando um dos cientistas teve a ideia de
reanimá-lo e trazer um homem da Idade Média ao século vinte. Não
foi tão difícil, porém, despertá-lo. Uma poderosa descarga
elétrica, por meio de fios ligados ao seu peito, foi suficiente para
abrir-lhe os olhos. O homem saltou com um grito e se viu em uma
laboratório na Alemanha, não havia cavaleiro nenhum ali.
Dessa forma foi trazido
Haldur Taco III ao nosso mundo. O governo da Alemanha Oriental o
manteve em sigilo por um tempo e sob quarentena. Sabe-se lá que
vírus carrega, assim pensaram. O exército logo ficou interessado.
Que segredos biológicos podiam ser adquiridos com pesquisas intensas
naquele estranho personagem recém-descongelado? Talvez fosse a chave
para desvendar o segredo da imortalidade ou talvez uma peça no
enigma do super-humano. Interrogado, descobriu-se que se tratava-se
de um homem que ao menos pensava ser de um país que nunca tinham
ouvido falar e que teria acabado a muito tempo. Foi dito como louco
pelo exército. Mas conforme as pesquisas arqueológicas foram
trazendo à tona a história perdida de Tacomênia, foi dado a ele,
para a surpresa de todos, confiança. Era a sua sobrevivência no
gelo que os fascinavam. Muitos testes e exames foram feitos em
Haldur, mas nada de anormal foi encontrado em seu corpo, era um homem
como qualquer outro. Haldur sabia, entretanto, que fora um milagre
que o salvou. A profecia era verdadeira e ele realmente fora
ressuscitado por Deus. E se lembrou do resto da profecia que dizia: e
depois de renascer, ele governará ao mundo.
A divisão científica dos
militares perdeu o interesse em Haldur depois de semanas frustantes.
Não pareciam descobrir nada de interessante quanto a ele, nada em
seu sangue ou seu DNA que revelassem o segredo para a sua improvável
sobrevivência debaixo daquela grossa camada de gelo no fundo do
lado. Assim, Haldur foi liberado. Foi providenciado a ele um quarto
em um hotel em uma cidadezinha próxima e uma boa quantia em
dinheiro, tudo para que se sustentasse por um tempo. Quanto à
comunicação, Haldur falou durante toda a vida o tacomeno, língua
morta e com raízes latines, porém tendo certo familiaridade com o
alemão moderno. Foi-lhe ensinado palavras e expressões básicas
depois de muito esforço e estudo. "Bom dia" e coisas do
gênero foi julgado como o necessário para sobreviver na Alemanha de
1968. A verdade é que o homem ainda estava chocado com tudo aquilo,
muito mais chocado do que aqueles que o descobriram. Nas semanas
seguintes de sua ressurreição mal falou e alimentou-se pobremente,
seu raciocínio nublado. Os cientistas asseguraram que tudo era
causado pela sua longa hibernação. Mas Haldur sentia-se doente por
dentro, e seu remédio tinha origem divina: precisava fazer a vontade
de Deus e governar o mundo em nome de Jesus Cristo.
Começou adquirindo um mapa
da Europa. Em seu quarto de hotel ele por muito analisou a obra
cartográfica. Não encontrou, todavia, Tacomênia. Lembrou-se do que
os militares disseram-lhe, seu antigo reino não passava de uma
relíquia passada e esquecida pelos Europeus. No mesmo dia, Haldur
assistiu ao telejornal (a televisão, como o resto das novidades
tecnológicas do século vinte, foi de difícil aceitação para a
mente medieval de Haldur) onde noticiaram sobre as novas descobertas
realizadas por pesquisadores no fundo do Lago Tacomênia. O nome
Tacomênia foi como o bater de um sino em sua cabeça. Ainda estavam
acostumando-se com o idioma novo, mas a palavra soou-lhe
perfeitamente familiar. Olhou mais uma vez para o mapa estendido em
sua cama. Era hora de dominar o mundo!
Mas embora tenha sido
mantido em segredo pelos cientistas, não demorou para que rumores
circulassem por toda a Alemanha sobre um homem encontrado no fundo do
Lago Tacomênia. A história, inicialmente não mais que uma piada,
ganhou fama e tornou-se popular por todo o país. Ainda instalado na
pequena cidade onde os militares o deixaram, Haldur ouviu, enquanto
tragava uma cerveja em uma bar, sobre tal história. Já estava
habituando-se, embora lentamente, à vida no século vinte. Estava
acostumando-se com as roupas e as palavras novas. Não surpreendeu-se
com a rápida adaptação, era um homem muito estimado na sua época
pela sua sapiência. Assim, como notou que a notícia do seu retorno
estava chegando aos ouvidos do povo, decidiu fazer um humilde
pronunciamento público naquele barzinho, típico de um monarca.
Subindo no balcão, declarou, tropeçando nas palavras
- Rei... Tacomênia... Eu
sou! - ele gritou para todos ali.
No começo houve silêncio,
mas os risos tornaram-se incontroláveis em alguns segundos. Todos no
bar passaram a zombar do pobre senhor. Rei de Tacomênia? Estava mais
para bêbado. Entretanto, a visão do velho subindo no balcão chamou
a atenção de uma jovem jornalista que ali por acaso estava. Emilie
Weber procurava algo de interessante no interior do país, algo que
servisse de matéria para seu jornal. Resolveu, então, confrontar o
homem que se declarava rei. Inicialmente, a moça achou se tratar só
de mais um bêbado, mas embora Haldur realmente tivesse bebido
cerveja, mostrou-se honesto aos olhos de Emilie. Intrigada pela
história de Haldur, seja fato ou fantasia, ofereceu-lhe carona para
a capital, onde seria entrevistado e feito notícia no país inteiro,
seja como piada ou não.
Em Berlim Leste, maravilhado
com a grandiosidade das cidades modernas, Haldur foi entrevistado por
Emilie e ela teve sua matéria publicada mesmo com a descrença do
editor com quanto a tal título. Rei do passado volta a vida, assim
dizia. E foi neste jornal que Haldur, visto como louco na redação,
expôs todos os seus planos para a dominação mundial. Não como
tirano, mas como um rei benevolente com guiamento divino. Haldur
deixou claro que era de fato o rei de Tacomênia do século treze que
fora congelado e reanimado na era moderna. Seu plano: fazer a Europa
inteira, e se possível todo o mundo, aceitá-lo como seu rei em nome
de Jesus Cristo. Assim seria a profecia. E Emilie Weber talvez fosse
a única até então a dar ouvido ao velho, e logo os dois se
tornaram amigos. Sua admiração por Haldur era como de uma criança
por seu ídolo, algo que se encontra em pessoas idealistas.
A notícia abalou o país
inteiro. Alguns riram, alguns acreditaram e outros apenas ignoraram,
só mais um louco. Haldur, agora falando um bom alemão e trabalhando
como engraxate no centro da cidade (emprego que conseguiu com a ajuda
de Emilie Weber), teve sua cara impressa em muitos jornais e não
demorou para que fosse surpreendido por "fãs" que o
reconheciam no meio da rua. Foi virando uma celebridade em Berlim e
em toda a Alemanha. Chegou ao ponto em que um canal de televisão o
procurou para fazer uma reportagem. Foi parar nos televisores de todo
país, ganhando alcance ainda mais abrangente.
Nessa parte, Haldur fez uma
pausa e suspirou. Mal eu sabia que a aventura estava apenas
começando. O velho olhou para baixo e depois levantou a cabeça e
continuou a contar sua história. Passou-se mais de um ano após a
sua chegada em Berlim (parte oriental). Trabalhando como engraxate e
vivendo uma vida nada digna para um rei, isto é, em um minúsculo
apartamento no subúrbio, Haldur não poderia estar mais descontente.
Não tinha quem considerasse amigos de verdade além de Emilie,
embora fosse conhecido por muitos. Entretanto, a garota e ele mal se
viam, pois ela se comprometia muito ao trabalho. Sozinho, Haldur era
no máximo um ponto turístico ambulante. Lá vem o rei de Tacomênia,
alguns diziam. Mas não o respeitavam de verdade, mesmo depois das
inúmeras entrevistas que ele dera assegurando que sim, fora um rei
da idade média. Era pura zombaria. Assim, Haldur começou a se
isolar mais. Não cumprimentava mais "fãs", não aceitou
dar mais entrevistas. Até jornais de outros países europeus o
procuraram (até mesmo um americano), mas ele preferiu ficar em seu
apartamento. Como aquilo poderia acontecer? Onde estava Deus? A
profecia deveria ser concretizada, ele deveria ser rei e governar a
Europa inteira. Mas onde estava? Engraxando sapatos como um reles
plebeu. Foi tomado de decepção.
Haldur disse-me que não
chegou a ficar deprimido e que os tacomênos não conheciam tal
estado emocional. Entretanto, eu pude ver em seus olhos que suas
memórias daquela época eram dolorosas só de pensar. Havia algo
muito humano naquele homem e que eu estava prestes a descobrir.
Os seus dias sombrios como
engraxate depararam-se com uma reviravolta: Emilie Weber, a
jornalista que fez da história de Haldur um sucesso em escala
nacional ao achá-lo em um barzinho no interior, um dia apareceu a
sua porta. A pobre moça soluçava e estava em estado deplorável,
chegou a lembrar Haldur dos seus cavaleiros que retornavam da guerra
feridos ou uma aldeã que perdia seus filhos em um massacre em um
vilarejo tacomeno.
- Nosso jornal... foi
atacado!
Não era mentira o que
Emilie falava. Haldur ligou a televisão e o noticiário destacava
imagens do prédio onde ficava a redação. Estava em chamas,
arruinado. Todos escaparam com vida, mas o estrago tinha sido
absoluto. Haldur pôde ver pela janela a fumaça que subia.
Lembrou-se das guerras do passado que travou contra Guillestein e
outros vilões, os corpos dos soldados tacomenos eram geralmente
queimados e o vapor negro se erguia. Haldur teve calafrios com tudo
aquilo.
O telejornal que assistiram
alarmou ainda mais a Haldur. Segundo o âncora, o incêndio não foi
acidental e que haviam suspeitos: um grupo misterioso de encapuzados.
Haldur deixou o queixo cair quando viu pela televisão o que os
criminosos haviam pinchado na parede do edifício em chamas: uma
enorme caveira coroada. Memórias negras do passado voltaram à mente
de Haldur. Recordou-se principalmente da batalha final que travou
contra o Lorde e das bandeiras inimigas que balançavam. Caveira
Coroada!
A partir daquele momento,
todo pensamento negativo e sombrio que permeava a mente de Haldur
foi-se. Não havia sensação de abandono, não havia mais
descontentamento na sua alma ou decepção com o plano divino. Não
iria, porém, fugir. Iria enfrentar seu inimigo. Guillestein estava
de volta, não sabia como, mas havia retornado. O símbolo da caveira
coroada era o mesmo usado pelo Lorde séculos atrás. Deus,
aparentemente, ainda tinha um plano para Haldur.
E possivelmente incluía
Emilie Weber.
- Preciso de sua ajuda para
reivindicar meu trono! - ele disse.
A moça não hesitou, disse
sim na hora. Tinha uma fascinação pelo velho, um apego, uma
adoração. Sua história era delirante para ela, quase uma paixão
encarnada, um personagem de fantasia trazido à vida, um sonho de
aventura que almejava desde pequena e que agora era realidade. Além
disso, tinha perdido tudo com o incêndio em seu jornal, não tinha
mais onde morar. Se ficara louca, Haldur não soube dizer, mas ficou
grato pela lealdade oferecida. Arrumaram as malas às pressas e
partiram para a França, mais precisamente Paris.
O motivo do ataque à
redação não foi óbvio no momento, mas especularam que
Guillestein, ou seja quem fosse, pensou que Haldur estivesse no
prédio. Ou talvez tenha sido um ato de terror, um aviso de havia uma
guerra iminente estava por vir. Haldur tinha um plano: viajar à
França, e então Espanha, Portugal e outros países europeus
buscando alianças com os líderes dessas nações. Buscava um
exército para chamar de seu, uma armada que poderia usar para
subjugar os poderes do mundo e enfim cumprir a profecia divina. Não
estava louca, não podia estar. Emilie Weber pelo menos não o via
assim.
Saíram cedo de Berlim em um
trem levando apenas o necessário. Observei que nesse momento a
história tornou-se mais interessante, com a inclusão de mais um
personagem. Chegando em Paris, viram-se momentaneamente longe de
Guillestein (ou assim pareceu-lhes), mas estavam perdidos, não tinha
direção e mal sabiam falar francês. Mesmo assim, Haldur e sua fiel
servidora não desistiram do plano. Partiram para o Palais
d'Élysée onde iniciariam o
processo de diplomacia, mas os dois entusiastas da glória tacomena
foram barrados pela segurança e pelos enormes portões da residência
presidencial. Decepcionados, teriam ido embora se não fosse pela
aparição de uma curiosa figura. Um rapaz, não mais velho de
Emilie, gritando contra o Palácio, segurando cartazes que diziam
"apoiem o rei de Tacomênia". O personagem instantâneamente
chamou a atenção de Haldur. Já sabiam que Tacomênia havia
tornado-se,
mais uma vez, um nome popular na Europa, mas simpatizantes eram
novidade pois a maioria que falava esse nome tinha um tom de zombaria
na voz. Aquele rapaz parecia estar convicto de suas causas.
-
Qual é seu nome? - Haldur
perguntou.
- Eu sou
Jasper... - disse o rapaz.
O
mundo parecia estar a cada
dia tornando-se mais tacomeno. Jasper afirmou ser, assim como Haldur,
um sobrevivente do inverno que destruiu Tacomênia. Afirmou ter sido
resgatado das geleiras do lago, exatamente da mesma forma como fora
Haldur. Incrédulo, Haldur pediu por uma prova e recebeu como
atestado de veracidade uma longa conversa decorrida inteiramente em
tacomeno, a língua morta que há muito Haldur não ouvia saindo da
boca de outro homem e que era desconhecida até pelos maiores
historiadores europeus. E
algo ainda mais surpreendente: a corneta que já fora usada para
chama Rastang, o Grandioso. Tinha sido encontrado com o instrumento
em suas mãos e uma flecha cravada no peito. Jasper não tivera tempo
de chamar o dragão e morreu enquanto soprava na corneta. Desse modo,
a
trupe havia acabado de ganhar mais um membro. Jasper
fora achado semanas depois de Haldur, mas não obteve a mesma fama
pois o que ele por mais de um ano buscou não foi a deominação
mundial ou o cumprimento de uma profecia, mas apenas o seu rei em
pessoa que ele sabia que estava em algum lugar por aí. Fora
um dia um mero camponês convocado pelo próprio rei a lutar contra o
exército de Guillestein. Com muitos dos familiares mortos pelo frio,
Jasper não viu opção senão manter-se fiel ao seu rei.
Mas mesmo com a alegria da
nova companhia, o plano de conquista global visiado por Haldur (ou
melhor, por Deus) não parecia ter muito futuro e eles resolveram dar
um tempo para melhor arquitetarem os próximos passos.
Resolveram
instalar-se na humilde casa de Jasper, nada mais que três quartos
apertados em um cortiço, piores até que onde Haldur morava em
Berlim. Porém, Haldur mostrou-se humilde, focando apenas no plano
que tinha em mente e não nas baratas que andavam pelas paredes.
Alojaram-se no cortiço por longas e dolorosas duas semanas. Este
trecho da história seria cômico se não fosse trégico. O espaço
apertado era terrível e desconfortável, o banheiro causava
calafrios na delicada Emilie e as hábitos de Jasper era no mínimo
repugnantes, por um momento Haldur teve vergonha de tê-lo como
compatriota.
Haldur
por muito tempo ficou aliviado, nem pensava mais em Guillestein.
Chegou a bolar viagens até a Turquia e Moscou, buscando o apoio de
quem fosse necessário. Porém, mais uma vez o noticiários
televisivo o abalou. Novas notícias de Lorde Guillestein. Havia
tornado-se um criminoso procurado por toda a Europa. Ficou conhecido
por uma série de atentados em Berlim, Bruxelas e Roma. Os
comentaristas, apavorados, temiam sua chegada à Paris.
-
Ele está em busca de vossa majestade! - disse Jasper – Ele não vai
desistir até destruí-lo e tudo que resta de Tacomênia!
Mais uma
vez Haldur fez o que todo rei deve fazer: liderou seu povo. Abriu
mais um mapa, dessa vez um maior e deparou-se com massas de terra até
então desconhecidas para ele. Estados Unidos? Líbia? Japaão? O
mundo havia tornado-se bem maior e eles precisavam escapar de
qualquer maneira. Guillestein não desistiria. Haldur e seu povo
precisava ir para bem longe.
- Aonde
iremos? - ele se perguntou olhando o mapa.
- Que
tal aqui? Ouvi falar que eles tem praias e muito sol por lá! - disse
Emilie apontando para um enorme continente no hemisfério sul.
- Certo
– disse Haldur – Vamos ao Brasil!
Levantei
as sobrancelhas naquele momento. Estava tudo finalmente se
encaixando. Então aquele velho senhor estava conversando comigo na
praça pois há muitos anos tinha escapado de um inimigo que o
perseguia pelo velho continente. Ele
estava quase me convencendo com a sua história fantástica, história
essa que me fazia desejar que aquela tarde durasse um pouco mais.
Tiveram
que atravessar o país inteiro até chegarem ao sul onde puderam
alugar um barco clandestino que os levaria até o outro lado do
Atlântico. Somente a jornada até o litoral foi tensa, com o perigo
de um ataque de Guillestein sempre presente. O Lorde não estava
sozinho em sua perseguição contra o rei. Segundo o que Haldur tinha
compreendido, ele contava com um grupo de leais servidores, soldados
em sua guerra contra Tacomênia. Se eram sobreviventes retirados do
lago, Haldur não sabia.
Arranjaram
um barquinho. O capitão, Pierre, um barbudo de aparência gentil,
era um mestre dos mares, hábil em seu trabalho. Fez boas amizades
com Haldur, Jasper e Emilie. Além do trio, estavam abordo pelo menos
uma dúzia de pessoas, todas procurando um meio de atravessar o
enorme oceano, vítimas de qualquer desespero que as forçava a sair
de suas casas. O francês foi difícil para o grupo, mas Emilie,
felizmente, sabia um pouco. Assim iniciou-se a jornada. O
mediterrâneo era calmo e sereno e embora o Atlântico tenha se
mostrado mais grosseiro, ainda era bem melhor do que viver em guerra
no continente. Haldur não conhecia o mar, o seu país era de
agricultores, pescadores não eram famosos lá e não haviam capitães
ou velejadores em Tacomênia. Tudo era novo para Haldur. Brasil?
Linda palavra nova.
Mas a
paz durou pouco. Durante uma tarde de fortes ventos e céu nublado,
muito parecido com aquele dia testemunhado por Haldur e seus soldados
quando lutaram por Tacomênia, uma embarcação surgiu ao longe. Era
maior do que o barco de imigrantes de Pierre e muito mais ameaçador
pois tinha pintado em si um símbolo que encheu Haldur de medo. Um
marujo falou com megafone, sua voz estridente:
-
Rendam-se! Somos os piratas da Caveira Coroada! Queremos Haldur e
sabemos que ele está aí!
O
frenesi abordo foi imenso, os tripulantes pareciam um bando de
galinhas confusas e assustadas. Pierre e os outros não sabiam do que
se tratava exatamente, mas mesmo assim temeram o pior. Pierre sabia
dos perigos daquelas águas melhor do que ninguém e acelerou como
nunca. Haldur, Emilie e Jasper pensaram em pular e ir nadando para o
litoral. Pensaram errado; água muito gelada e distância até a
costa muito grande. Resolveram entrar em pânico.
-
Queremos Haldur! Entregue-o! - o marujo hostil voltar a gritar em seu
megafone.
Haldur
não tinha ideia de como haviam sido encontrados, talvez mais uma
bruxaria de Guillestein? De qualquer modo, tinham que escapar dali
rapidamente. Mas o inimigo era rápido e implacável e os homens de
Guillestein tinham poderosas armas de fogo em sua posse e começaram
a atirar contra a embarcação de imigrantes.
Pierre
era um velho lobo do mar mas não era páreo para piratas tão
terríveis. Nunca antes teve sua embarcação alvejada daquela
maenira, o velho barquinho chegou a balançar e o som das balas
batendo no casco era insuportável. Não teve opção a não ser
render-se.
Apareceu
na proa com os braços ao alto:
-
Estamos nos rendendo!
Pela
própria expressão no rosto de Haldur e pelo tom de sua voz eu pude
deduzir que tratavam-se de lembranças sombrias. Não sentia-se tão
em guerra desde os velhos tempos. Contava essa parte velozmente, como
se quisesse pular logo. Mas não pôde evitar, pois o momento mais
importante na história tinha chegado: o seu confronto final com
Guillestein.
Era
verdadeiros piratas, cães marinhos. A embarcação inimiga
aproximou-se do barco onde os heróis tacomenos encontravam-se e
foram todos forçados a subir a bordo. Pierre e os imigrantes foram
poupados e dados a permissão de partir. Haldur, como um bom rei,
tinha um plano como sempre.
Estavam
cara a cara com Guillestein. Estava mais terrível que nos dias
antigos. Sua barba estava enorme e como era negra a sua barba, um
homem alto e de olhos terríveis, um filho do diabo. Estava, porém,
trajendo roupas militares muito mais modernas, nada de armaduras.
Seus homens, na maioria contratados, portavam metralhadoras.
A
neblina cercava todo o navio. O frio era tão terrível como o de
1251.
-
Finalmente! - disse Lorde Guillestein – As circunstâncias fizeram
com que nós sobrevivêssemos para que pudéssemos nos enfrentar mais
uma vez! Aqueles homens que me tiraram do lago foram tolos demais.
Dessa vez, Haldur Taco III, você não sobreviverá e a coroa do
mundo será minha!
Um dos
seus homens aproximou-se carregando uma espada. Haldur arregalou os
olhos ao ver Guillestein lentamente tirando-a de sua bainha. Era
Corta-Aço, a antiga arma dos reis tacomenos.
- Como?
- Haldur disse – Ela quebrou-se em batalha!
- Foi
encontrada no lago e levada a um museu. Eu e meus homens não
hesitamos em roubá-la e reforjá-la. E agora, Haldur, vocês dois
serão mortos por ela!
Foram
forçados a se ajoelhar em uma cena cruel de execução. Emilie
soluçava, Haldur continuou com uma expressão séria que logo
transformou-se em um leve sorriso. Guillestein notou o semblante que
seu adversário portava.
- Por
que está rindo, Haldur? Você e sua patética amiga morrerão agora!
- Você
não é o único que tem um exército. - respondeu Haldur.
Emilie,
tão chocada com a situação e embriagada de terror, notou somente
então que Jasper não estava ali presente. Para onde fora o jovem
tacomeno? Foi aí então que um poderosíssimo som ecoou por todo o
mar onde se encontravam. A neblina dissipou-se como fumaça que é
levada por um forte vento e todos os homens de Guillestein levaram
suas mãos aos ouvidos em resposta à aguda dor que sentiam.
Haldur
já sabia o que era. A corneta soou de novo e dessa vez foi como que
o mundo todo tivesse tremido. Era Jasper que jogara-se no mar. Tinha
trazido a corneta como plano contra qualquer ataque vindo de
Guillestein. Não tinham ideia se funcionaria até ouvirem um trovão
vindo dos céus. Era Rastang, o Grandioso! Era mais veloz que
qualquer águia, a força de suas asas incomensurável, sua figura
como um véu negro que cobria todo o céu. A Ilha Negra no Lago
Tacomênia partiu-se em pedaços quando o seu espírito, regido por
forças mágicas desconhecidas pelos homens comuns, despertou de seu
sono profundo. Cruzou a Europa como um locomotiva.
Quando
chegou ao encontro de Haldur e os outros, seu rugido pode ser ouvido
como um hino de terror e de majestade. O coração de Guillestein
encheu-se de medo e pavor ao notar a terrível imagem do dragão
milenar cruzando os céus e indo em sua direção. A boca da criatura
já se abria e, mesmo distantes, os personagens que se encontravam
naquela cena no meio do Atlântido já conseguiram sentir o calor de
sua baforada de fogo.
E como o
fogo de Rastang era destruidor! No momento que a labareda vermelha
encontrava o casco do navio, Haldur e Emilie apressaram-se em pular
na água. A última visão que tiveram de Guillestein e seus capangas
era dele entre uma roda de chamas e seus gritos eram de homens
desesperados, parecia um inferno. A água do oceano, antes fria como
o fundo do que já foi Tacomênia, já era quente devido à presença
de Rastang. E o dragão continuou com suas baforadas, o navio
queimando como uma tocha.
Aquele
foi o fim de Guillestein e de sua perseguição contra os tacomenos.
Nunca mais o estandarte da Caveira Coroada foi reverenciado ou temido
depois daquele dia. Todavia, não era o fim da história de Haldur.
- Minha
história termina com minha chegada no Brasil... - o velho me disse.
E
continuou contando-me. Derrotado o inimigo, Haldur, Emilie e Jasper
agradeceram ao velho dragão e lhes foi oferecida uma carona até
onde desejassem.
- Posso
voar até qualquer lugar do mundo – disse o dragão, redescobrindo
depois de muito a sua incrível capacidade de falar.
- Ao
Brasil! - disse Haldur.
Sentaram-se,
ou deitaram-se, nas costas do dragão. Suas escamas verdes de longe
podiam parecer duras, mas eram macias como um casaco. Passaram quase
um dia nas costas de Rastang a cruzar o Atlântico. O sol se pondo,
Haldur contou-me, foi algo que ele nunca se esqueceu. Teve uma
epifania naquele segundo. Pela primeira vez desde seu despertar quase
dois anos atrás, Haldur finalmente entendeu o plano que Deus tinha
para ele. Não envolvia dominar o mundo, governar a Europa e
declarar-se o rei de todas as nações para cumprir com alguma antiga
profecia. Talvez fosse outra coisa que ele ainda não tinha
compreendido. Tinha até mesmo esquecido da sua espada, a Corta-Aço,
perdida entre o mesmo fogo que consumiu Guillestein. Todo seu orgulho
que ele nem sabia ter foi eliminado de sua alma assim que Rastang pôs
na cidade litorânea.
O Brasil
era bem diferente da Europa da qual Haldur estava habituado. Emilie,
muito educada, tinha visto apenas em fotos e livros e Jasper nem
sabia direito o que era. Não haviam muitas cidades, o clima era mais
quente e o próprio céu parecia ter outra cor.
De
qualquer forma, lá estavam, talvez não onde quissessem estar, mas
onde pareciam precisar estar. Vontade divina ou força misteriosa do
destino, no Brasil estavam.
Tiveram
que despedir-se de Rastang.
- Aonde
vai? - perguntou Emilie.
- Não
sei, jovem, talvez procurar por outro dragão ou encontrar uma
caverna onde possa me esconder – o dragão respondeu.
E alçou
voou. Ninguém nunca mais viu Rastang, e ele se tornou uma lenda no
mundo. Dizem que ele chegou a encontrar uma dragoa em algum lugar da
Ásia e que juntos eles tiveram muitas crias. Outros dizem que ele
morreu de solidão na Antártida. Ninguém nunca soube da verdade.
Quanto
aos companheiros de jornada de Haldur, cada um teve, assim como o rei,
uma mudança de espírito. Jasper não era o mesmo pobre camponês
que abandonara o campo em 1252 para morrer ao lado de seu rei. Tinha
agora visão, um futuro todo pela frente. O mundo já não era mais
sua pequena fazenda no interior de Tacomênia, era muito mais.
Emilie
entregara sua alma a seu rei, seu ídolo singular cuja imagem beirava
o divino. Haldur, com o passar da jornada, havia se tornado mais que
uma fonte de inspiração e idolatria para a jovem Emilie Weber. Seu
coração ardia por ele e o admirava com ternura e paixão. Mas
escondeu isso inicialmente, guardando o sentimento para si.
Rastang
os deixou em uma clareira cercada por um denso matagal. Sabiam que ao
sul havia uma grande cidade banhada pelo litoral pois tinha a
avistado durante o voo. Por muito caminharam até encontrarem uma
estrada. Um caminhoneiro gentil ofereceu uma carona aos três
exaustos viajantes. Até a cidade. Quando perguntaram qual era o
nome dela, o motorista respondeu:
- Ora, é
o Rio de Janeiro!
Neste
ato final da história, Haldur pôde finalmente respirar pois foi aí
que seus dias de paz começaram. Os primeiros meses no Rio foram
difíceis para os três. Não falavam direito o idioma (este problema
parecia perseguí-os) e não tinham dinheiro nem trabalho. Diferente
da Europa, Haldur não era famoso por ser o rei perdido de Tacomênia.
Era só mais um senhor. Mas Jasper acabou conseguindo trabalho em um
supermercado local e pôde sustentar os amigos. Emilie não conseguiu
mais esconder seus sentimentos pelo seu rei. Saudoso dos tempos
matrimoniais com sua amada rainha, Haldur acabou revelando sua
surpreendente afeição por Emilie Weber em um estranho caso
improvável de amor.
Mostrou-me uma foto que guardava no bolso de um rapaz e duas moças.
- Meus filhos. - ele me disse, sorrindo.
Mostrou-me uma foto que guardava no bolso de um rapaz e duas moças.
- Meus filhos. - ele me disse, sorrindo.
- E o
que aconteceu nos anos seguintes? - eu perguntei.
- Nada
demais. - o velho me respondeu – Não houve mais batalhas contra
bruxos, nem mais dragões, nem mais magias, nem exércitos de
cavaleiros ou qualquer coisa parecida. O mundo parecia normal. Eu
arranjei um emprego miserável por um tempo, aprendi o idioma e
consegui me aposentar. Até me casei com Emilie.
- E
quanto a Jasper?
- Viajou
há anos. Foi embora, para bem longe, não sei onde. Acho que ele
achou seu propósito.
- E
quanto a você? Qual seu propósito?
- Não
sei – ele disse – Talvez Deus só quisesse que eu vivesse, não
que eu continuasse sendo um rei. Mas não me importo muito em saber a
resposta para essa pergunta. Estou grato por estar aqui, nessa vida
boa e simples.
O velho
levantou-se lentamente com a ajuda da sua bengala e olhou para o
horizonte, o sol estava se pondo. Olhou para mim com um sorriso no
rosto, um sinal humilde de despedida.
- Meu
senhor, essa história toda é inacreditável. - eu disse - Dragões
e feitiçaria não são coisas reais. Como espera que eu acredite
nisso tudo? Por que, afinal, me contou tudo isso?
O velho
respondeu:
- Ora,
não precisa acreditar. É uma história para alegrar essa tarde
entediante. A vida precisa de um pouco disso tudo.
E saiu a
passos lentos. Despediu-se de mim com um aceno e sumiu na esquina.
Nunca mais cheguei a ver aquele velho senhor de novo. Fiquei lá,
sentado, pensado em reinos encantados e castelos cheios de tesouros,
bruxos maléficos e dragões terríveis. Será que a história era
verdadeira ou só produto da fértil imaginação de um senil idoso?
Por algum motivo, fiquei inclinado a acreditar na primeira hipótese.
Lembrei-me do histórico mitológico e religioso da humanidade. Nós
sempre nos sentimos mais confortáveis crendo em mitos e lendas e
depositando neles nossas esperanças, sonhos e convicções. Talvez a
história de Haldur, ou seja lá quem fosse aquele senhor, fosse
verdade e ele fosse o último rei de Tacomênia. E se não, qual a
importância? O importante é que eu tinha mais uma história
interessante adicionada ao meu vasto catálogo, algo para sempre me
lembrar, um mundo aonde eu possa viajar quando estiver entediado num
fim de tarde numa praça.
19 de dezembro de 2019
Homem Comum
Por que você está lendo
este conto? Não leu o título, por acaso? Eu, o narrador, sou apenas
um homem normal. Sou genérico, ordinário, comum. Não tenho nenhum
grande talento ou nada que me destaque-me da multidão.
Ainda está lendo? Bem, já
que está tão interessado, permita-me não te surpreender. Meu nome
é João, ou seja, um nome bastante comum neste país. Moro em uma
casa de classe média baixa. Trabalho em uma firma. Ganho o
suficiente para não passar fome. Não sou rico mas também não sou
miserável. Minha casa (ordinária) tem um portão que faz um barulho
irritante quando é aberto. É onde eu enfio meu carro totalmente
ordinário. Família? Não tenho. Não sou casado. Não tenho filhos
muito menos. Se um dia eu vou me casar? Não sei, e não faz
diferença e não vai mudar minha condição. Mas falando nisso,
conheci uma moça legal ontem na academia. Estamos nos falando e nos
dando bem. Mas ela é como eu: uma pessoa normal. Se eu penso muito
no futuro? Sinceramente, não. Como eu já disse, não faz diferença.
Nada faz. Tudo é a mesma coisa para mim.
Agora devem estar pensando
que eu sou um cara triste e vazio por dentro. De forma alguma. O que
eu mais gosto de fazer e ir pro barzinho tomar umas com meus amigos
enquanto jogo sinuca e assisto a futebol (sou flamenguista, time
normal). Nada melhor do que uma vida totalmente comum assim. Devem me
achar sem graça. Acho que sou mesmo. Não me importo.
Já é o quarto parágrafo e
ainda está lendo? Você é persistente. Mas enfim, não tenho muito
o que falar. Esse conto (nem merece assim ser chamado, não tem
narratva) na verdade nem precisava ser escrito. Você está perdendo
o seu tempo. Vá fazer alguma coisa de interessante, alguma coisa
extraordinária. Aprenda algum idioma novo, pois eu só sei
português; aprenda a tocar violão, piano ou saxofone, treine seus
músculos e coordenação, vire um faixa preta em artes marciais;
escreva um livro, torne-se um famoso autor; vire um médico, salve
vidas; vire um filósofo, mude o mundo! Não seja como eu, totalmente
normal. Eu não sou importante e nunca vou ser, e isso não é ruim e
nem bom, é um fato somente. Sou só um homem comum.
6 de dezembro de 2019
Sob a luz de um poste
Era noite. Mariana
segurou bem forte a mão do rapaz. Este era bem mais alto do que ela,
cabelos negros, olhos profundos, sorriso bonito. Ela segurava a sua mão
pois não queria perdê-lo, mas sabia que, ali naquela pracinha
modesta, seria a última vez que se veriam.
Pararam sob a luz de
um poste. Uma luz amarelada que dava à cena uma atmosfera
melancólica e triste. O rapaz pegou nas mãos de Mariana. Ela queria
acreditar que daria tudo certo. Entretanto, o olhar dele já dizia
tudo: era um adeus.
- Vou embora.
- Não vá –
Mariana protestou.
- Eu vou.
- Não me deixe.
Ela o abraçou. Era
um episódio de novela. O silêncio da noite não os deixava ouvir a
própria respiração. O escuro que os circulava era como um oceano
negro. Não um negro assustador, tudo naquela noite era somente
triste. Até os vaga-lumes e outros insetos que circulavam o poste
eram arautos da infelicidade. Mariana, menina observadora, olhou bem para
os minúsculos animais alados que voavam ao redor da luz do poste. Por
muito tempo os contemplou e viu como era descontente a sua natureza.
Sempre estavam a circular o poste, mesmo sabendo que este
eventualmente se apagaria assim que chegasse a aurora. Mariana pensou
nisso e chorou. Abraçou com mais força o amante. Ele tentou
consolá-la com um beijo na testa, mas ela só chorou mais. Seu amor
era efêmero, ela pensou. Mas, assim como os vaga-lumes que perdem
sua luz, tinha que aprender a perder sua paixão.
- Eu vou embora,
tudo bem? - ele disse.
- Tá, eu aceito
isso. Vou sentir sua falta. Te amo.
Ele a beijou no
rosto, um beijo logo e apertado. Mas a hora chegava de dizer adeus.
Segurou uma última vez em suas mãos frias e delicadas e as apertou,
como que se estivesse tirando as últimas gotas de seu amor de menina, amor tão precioso. Se olharam e então ele virou-se, mãos no
bolso, e adentrou a escuridão.
Mariana engoliu suas
lágrimas pesadas. Não podia chorar. Olhou para os vaga-lumes e descobriu que nem todo adeus é eterno e que, assim como a luz
que se apaga pela manhã volta quando o sol se esconde de noite , o nosso amor
se reacende quando reencontramos alguém que o mereça.
Que menina forte era
Mariana, ali, parada sob a luz daquele poste.
Bar
Bares tem uma natureza única
Como um canto aparte do mundo
Um cheiro de cachaça e fumo
Uma música brega no fundo
Talvez por isso gostem deles
É onde vão para esquecer de tudo
Como um canto aparte do mundo
Um cheiro de cachaça e fumo
Uma música brega no fundo
Talvez por isso gostem deles
É onde vão para esquecer de tudo
A menina que me encanta
Eu gosto dela como ela é
Com seus defeitos perfeitos
Com sua beleza e gentileza
Como me encanta essa princesa!
E como é macia a sua mão
E lindo é seu olhar
Ela tem um belo coração
E conseguiu o meu roubar
Não consigo esconder
o que sinto por ela
Pois trata-se de uma donzela!
Ah, como quero ela!
Com seus defeitos perfeitos
Com sua beleza e gentileza
Como me encanta essa princesa!
E como é macia a sua mão
E lindo é seu olhar
Ela tem um belo coração
E conseguiu o meu roubar
Não consigo esconder
o que sinto por ela
Pois trata-se de uma donzela!
Ah, como quero ela!
25 de novembro de 2019
Matemática
Números e equações são
para muitos uma enorme
dor de cabeça.
Mas não há ciência sem
aritmética, não há métrica
sem uma fórmula geométrica
e não existe espaço nem
matéria se não pudermos com
números e equações
calcular suas incríveis
medições.
para muitos uma enorme
dor de cabeça.
Mas não há ciência sem
aritmética, não há métrica
sem uma fórmula geométrica
e não existe espaço nem
matéria se não pudermos com
números e equações
calcular suas incríveis
medições.
16 de novembro de 2019
O Ignorante
Eu não sei
Não sabia
Não saberei
Para onde eu for
Nada eu direi
Pois sou só um tolo
Sem nada para falar
A ignorância em mim manda
E manda eu me calar
E assim eu quero estar
Não sabia
Não saberei
Para onde eu for
Nada eu direi
Pois sou só um tolo
Sem nada para falar
A ignorância em mim manda
E manda eu me calar
E assim eu quero estar
Amor Marginal
Marcos lembrava-se bem do
rosto de sua vítima. O jovem ladrão nunca antes havia visto um
rostinho tão lindo. Era de um natureza que por si só desafiava o seu
jeito marginal de ser. Aconteceu numa rua pouco movimentada. A moça
loira caminhava pelo calçamento, provavelmente voltando do trabalho.
Parecia ter condições, admirável como resolveu ir a pé. Pouco ela
sabia que Marcos já planejava naquele dia cometer um assalto. Já
fora molequinho malandro, criado nas ruas, esperto para a maldade.
Roubava para depois vender. Assim funciona o crime. As consequências
não são estimadas por esses tipos bandidos. O mesmo valia para
Marcos. No momento em que avistou a moça, esta estava de costas para
ele. Marcos pilotava uma moto. Não usava capacete e nem óculos, só
um boné. Era bandido solitário, mas um prodígio, e era corajoso.
Não fora seu primeiro assalto.
- Passa a bolsa! - ele
disse, enquanto apontava o revólver na direção da garota, que não
era mais velha do que ele.
O velho trabuco tinha anos
de uso e mais parecia um ferro-velho. Nem dava mais tanto medo,
parecia peça sem uso. Mas a moça, que era de classe, se espantou.
Assim que ela se virou, Marcos pôde ver seus lindos olhos que logo o
encantaram. Ela tinha uma leveza e boniteza nos modos, mesmo
assustada perante a realização do crime. A sua expressão de
terror, mesmo realçando os traços grossos de seu rosto, ainda
conseguiram conquistar Marcos.
Porém, mesmo sob o efeito
do amor à primeira vista, Marcos não hesitou em concluir seu plano
maléfico. Tomou a bolsa da moça e foi embora. Antes de ir,
entretanto, uma rápida consideração cruzou o consciente do
bandido: e seu roubar um beijo de minha vítima? Contudo, não o fez.
Pensamento bobo. Acelerou e saiu dali o mais rápido possível. A
ideia de ser pego pela polícia fazia cada fibra de seu corpo tremer.
Já não era menor de idade e não gostava da ideia de ir para
a cadeia.
Mas uma coisa era certeza:
apaixonara-se.
Não viu a moça mais. Seu
coração, todavia, era dela. Marcos tinha roubado da moça e ela
roubado dele. Ladrão rouba ladrão. O que faria? Não parava mais de
pensar nela. Voltou para casa, isto é, uma moradia aos pedaços que
ficava nos subúrbios. Habitava uma parte pobre e escura da cidade,
terra de bandidos como ele. Assim era a vida. E enquanto voltava ao
seu lar, fantasiou mil e uma cenas, recriando incontavelmente os
eventos de mais cedo enquanto assaltava aquela senhorita.
Infelizmente, a única memória que tinha dela consistia de um
semblante de medo. Não gostava de pensar naquilo. Fez mudanças
quanto a sua cara. Imaginou-a rindo; não conseguiu.
Marcos tinha que fazer algo.
Precisava revê-la. A primeira coisa que pensou foi em verificar sua
identidade pelo celular roubado. Era bloqueado. Tinha que vendê-lo
de qualquer forma. Precisava do dinheiro. O que um ladrão apaixonado
poderia fazer? Foi na mesma rua que a assaltara nos dias seguintes,
mas nunca mais a viu. Passou muito tempo rodado pelas ruas próximas
do ocorrido pateticamente procurando por ela. Nada. Já não pensava
mais na vida criminosa a qual tanto dedicava tempo e energia. Só
pensava em coisas boas, puras. Com o passar dos dias, pode sentir o
seu coração canalizar emoções positivas. Para ele não havia
dúvida: estava sob o efeito do amor. Fora picado e o veneno já
chegara à sua alma. Sentia-se grato por aquilo, grato pelo amor que
sentia. Queria retribuir todas aquelas emoções, todo aquele amor.
Marcos queria vê-la mais do que qualquer coisa. Queria tê-la em
seus braços, beijá-la, dizer quanto a amava. Era um bandido com
muito amor para dar.
Contudo, não conseguia
parar de pensar em certos cenários como o de uma possível rejeição
por parte dela ou de um amor impossível. Afinal, tratave-se de um
reles assaltante, um habitante das mais escusas vielas da cidade, um
filho do lado negro da sociedade, um marginal sem futuro. Ela, por
outro lado, era talvez uma médica ou algo parecido, uma excepcional
membra da sociedade em pleno exercício de suas funções como
cidadã, orgulhosa de si e virtuosa. Como poderia terminar bem essa
história? Tais considerações mantinham-no acordava durante a
noite. Mas mesmo com tantos pesadelos envolvendo uma paixão distante
e fria, havia sonhos doces em que se imagina vivendo entre seus
seios, provando de seu beijo e cheirando a fragrância que cobria o
seu ser. Tais sonhos faziam-no acordar com um largo sorriso no rosto.
Marcos não desistiria fácil.
Mirabolou, então, uma ideia
que beirava o ridículo. Mas não tinha tempo para discriminar o
normal do absurdo. Tinha um plano. Iria atrair a atenção e então,
talvez, ela aparecesse para ele. Certo dia, saiu de casa com um
revólver em sua mão. Era o mesmo velho trabuco. Chegou a pensar em
jogá-lo fora, não gostava de lembrar-se da memória em que ameaçava
aquela anjo de mulher com tal grotesca tecnologia. Não precisaria
usá-lo. Bastava chamar a atenção de algum policial que circulava
em local pública. Chegou perto de um guarda e apontou para ele. Foi
simples assim. Foi imediata a reação do oficial, que logo sacou a
sua e pôs Marco no chão. Foi rápido.. No minuto seguinte já
estava na viatura indo à delegacia com um sorriso no rosto.
As câmeras logo vieram. A
melhor ideia que Marcos já tivera. Estava dando certo. Um repórter
de algum programa policial chegou perto dele e foi fazendo perguntas.
Marcos, muito empolgado, foi respondendo cada uma e fazendo questão
de adicionar sua mais importante mensagem enquanto olhava para a
câmera:
- Eu fiz isso por você...
não sei quem você é... nem lembro o seu nome. Mas um coisa é
certa: estou apaixonado por você. Se você está assistindo isso,
meu amor, espero que se lembre de mim, o bandido que roubou sua bolsa
outro dia...
Aquela entrevista, depois
que foi ao ver, virou um sucesso instantâneo na internet e em redes
sociais. Marcos ganhara a fama de bandido apaixonado. Acabou, como
era de esperar, na cadeia. Mas sua família, distante mas ainda
assistente quando necessário, havia conseguido um advogado para o
rapaz e tinha esperanças de tirá-lo daquela condição. Iria apelar
para o verdadeiro motivo por trás da ameaça contra o policial:
chamar a atenção. Talvez convenceriam o juiz de que ele não estava
em pleno exercício das faculdades mentais. Ou seja, enamorado.
Chegou o dia em que iria se
encontrar com seu advogado. Não foi avisado, porém, que se tratava
de uma advogada. Quando entrou na sala, viu, sentada à mesa, uma
jovem de cabelos loiros e olhos lindos. Estava de terno e bem
produzida, mas Marcos a reconheceu instantaneamente. Era aquela mesma
pessoa que ele havia assaltado semanas atrás. A mesma proporção,
os mesmos jeitos, o mesmo olhar, o mesmo ser.
Marcos a fitou profundamente.
Ela o fitou também.
- Olá, sou a doutora Carla.
Sente-se, por favor. Deixa eu te tirar desse lugar.
O que se segue é uma
história de bandido e princesa que é grande e espetacular demais para caber em um mero conto.
11 de novembro de 2019
Adão e Eva
Aquele foi, literalmente, o
fim do Paraíso. Éden nunca mais. Dali em diante eles estariam
sozinhos. Era o mundo e eles.
Eva ainda estava chocada com
o que havia acontecido. Não teve onde esconder o rosto envergonhado.
Por que fui comer aquela fruta, ela passou tempos pensando. E que
cobra era aquela? E ficava pior quando pensava no que estava por vir.
Gravidez? Ela não estava a fim de sofrer dores atrozes para conceber
um filho. E por que tinham que conceber daquele jeito? Bastava tirar
uma das costelas do parceiro como Deus fizera uma vez.
Adão estava com muita raiva
de Eva. Enquanto viviam no Éden, Adão tinha uma mentalidade muito
mais inocente. Não enxergava o ruim em Eva. Tudo era bom. Mas depois
que Deus os apresentou à vergonha, tudo que era de ruim ficou claro.
Ficou claro que a esposa (não gostava desse termo) era estúpida.
Foi tola o suficiente para dar ouvidos a uma cobra falante, besta que
nem ao menos constava nos planos divinos. Por causa dela, Adão
perdeu tudo que tinha e já não era mais o mesmo homem virtuoso e
puro como antes. Era primitivo, rude e até bárbaro. Uma sombra do
que já foi. Assim era tudo para ele.
E tinham que sobreviver, a
partir do dia em que foram expulsos, em uma terra seca e árida. Não
havia verde como antes. Os animais, antes pacíficos, agora eram
selvagens e procuravam matar o casal. Por isso, precisaram buscar
abrigo primeiramente em uma caverna e depois em uma cabana mal feita
que conseguiram erguer. A água era escassa, disponível apenas em
algumas fontes isoladas e cercadas por ferozes competidores.
Assim seria a vida. O preço
a pagar pelo pecado.
Passavam o dia sem se falar.
Apenas sobreviviam. Não suportavam um ao outro. O pecado havia os
transformado quase que em outras criaturas. Não eram mais os mesmos.
Passaram a ser humanos. Palavra nova era aquela. Estranha. Sentiam-se
quase que como diferentes entidades dentro do mapa divino. Tinham
espírito e alma, disso sabiam, mas desde o dia em que foram expulsos
tinham a sensação de estarem mais entrelaçados ao próprio chão
em que pisavam, como que se fizessem parte dele. "Do pó viestes
e ao pó retornarás". Eram fracos, mundanos, estúpidos e suas
vidas, embora durassem muito mais do que a maioria das criaturas,
eram frágeis.
Entretanto, havia algumas
coisas boas. Dentre as novas descobertas estava o amor carnal. Com a
criação da vergonha, foi necessário algo para cobrir suas partes
íntimas e para protegê-los de outras adversidades como o frio.
Devido à intensa convivência, o casal foi, entre desentendimentos,
desenvolvendo uma ternura não vista antes na face da Terra. Suas
vestimentas tornaram-se véus para segredos íntimos que aos poucos
foram sendo desvendados. Deitaram-se incontáveis vezes e as palavras
amor, afeto e tesão foram inventadas, algo inexistente no Éden.
Porém, era um amor envolto em paixão, não era puro, apenas físico.
Uma necessidade meramente humana de saciar os mais profundos desejos.
Quanto a Deus, este estava
distante. Não sentiam a Sua presença. Parecia que não existia.
Sabiam, na verdade, que Ele era real, mas ultimamente Seu Nome mais
soava como uma ideia. Adão, certo dia, chegou a pensar que talvez
Ele fosse uma invenção e que toda a vida que se lembravam te ter
tido no Jardim fora uma ilusão ou um sonho extremamente realista que
tiveram. Deus? Palavra curiosa, mas ainda carregada de poder.
Os dias passaram e Adão,
ainda irado, começou a bolar um plano: e se matasse Eva? Tal
mirabolância surgiu enquanto caçava em um campo perto de onde
viviam. Adão era um bom caçador, chegava a pegar grandes e gordos
animais. Lebres eram saborosas quando cozidas. Havia aves terrestres
de peito farto que enchiam bem a barriga do casal. E Adão caçava
com vontade, com vigor. Se lembrava de uma época em que considerava
todas as criaturas da Terra como amigas, como companheiras. Agora
agia com violência para com elas. Ou eram suas presas ou suas
competidoras. Tinha sangue nos olhos enquanto corria atrás de algum
javali com sua afiada lança. E como era bem afiada. Armas eram outro
invenção pós-Éden. Tudo era brutal naquela nova época,
principalmente para o homem que era mais voraz que a fêmea humana.
Inclusive os pensamentos e as reflexões de Adão. A ideia de matar a
parceira persistia. Tudo poderia voltar ao normal. Talvez existisse
uma chance de retornar ao Paraíso e conseguir o perdão de Deus. Eva
era um problema. O primeiro homem tinha saudades do Éden, saudades
de um tempo em que era só ele e os animais.
Por muito tempo conjecturou
o ato horrendo. Pensou em usar sua lança e dar um golpe fatal em
Eva. Poderia se alimentar do corpo dela. Canibalismo era um termo que
não existia e, portanto, não passava por nenhuma vistoria moral.
Moral nem existia. Era só Adão, Eva e o mundo. Nada de outros
humanos. Um plano perfeito, uma chance de redenção aos olhos do
Criador.
Eva nem suspeitava. Sua
rotina consistia em tomar conta do assentamento, isto é, uma cabana
aos pedaços feita de galhos velhos de árvores. Haviam
estabelecido-se perto de uma pequenina lagoa. Eram os donos dali. E
era ali onde pretendiam ficar. Eva fazia a comida (o fogo, descoberta
recente, ajudava bastante) enquanto o marido caçava. Com o tempo, a
coitada foi sentindo-se cada vez mais solitária. A infelicidade
surgira. A mulher começou a sofrer. Adão era autoritário, mal. Não
a tratava bem e ela não se surpreendia em levar umas surras do
terrível parceiro que Deus a dera. Sentia-se sozinha, como se não
pertencesse àquele planeta, como se o mundo não fosse dela. Houve
muitas noites que ela passou conversando com os astros, buscando um
amigo no meio das estrelas. Adão chegou a chamá-la de louca uma
vez, a primeira doida da História. Mas apesar de tudo, Eva
persistia.
E então, um dia, sentiu
enjoos. Vomitou muito, achou que a hora chegara para finalmente
morrer. Mas aguentou por muito tempo. Quando deu conta, Eva tinha uma
enorme barriga. Não tinha ideia do que estava acontecendo. Adão
estava pasmo com aquilo. Nenhum dos dois se lembrava de Deus os ter
contado sobre algo assim. Mas quando perceberam que o mesmo fenômeno
acontecia a vários animais, ficou tudo claro. Eva seria mãe. Adão
seria pai. A humanidade era a herdeira da Terra. "Crescei e
multiplicai-vos".
Eva ficou assustada e também
maravilhada. Pela primeira vez se sentia com alguém ao seu lado. Não
estava mais sozinha. Teria um filho, uma outra pessoa para realmente
fazer-lhe companhia. Por outro lado, estava com medo do que o futuro
guardava para ela. A criança poderia nascer de qualquer jeito. Seria
como eles ou pior? O que seria ensinado a ela? Menino ou menina?
Quando tempo demoraria para crescer ou será que já sairia de seu
ventre adulta?
Adão não gostou nada
daquilo. Não queria uma terceira pessoa no seu pequeno mundo. Assim
ele sentia-se: o dono de tudo. Será que teria que matar o bebê
também? Não temia fazer isso, já tia pecado o bastante. Não temia
punição de nenhum deus ou demônio. Quando a barriga de Eva já
estava enorme, Adão decidiu sair para caçar e ficou dois dias fora
sob a desculpa de ir procurar uma grande caça. Andou muito. Cruzou
inúmeros riachos e conheceu terras verdes e belas. Pensou consigo
que talvez não precisasse matar Eva e que talvez pudessem ser
felizes juntos. Afinal, foi esta a finalidade que Deus tinha em mente
quando a criou. Mas o mesmo espírito que habitava a Serpente ainda
vagava pelo mundo e conseguiu tocar o coração de Adão. Viu vários
bisões pastando sob um céu estrelado em sua frente e pensou: isso
tudo é meu, é o meu mundo, minhas bestas, meu céu, meu planeta e
minhas estrelas. Afiou sua lança e decidiu voltar para casa,
decidido a matar sua esposa.
Quando voltou deparou-se não
só com Eva, mas com um garotinho em seu colo. Era como Adão, mas
bem pequeno. Tinha ombros curtos, olhos brilhantes e bochechas
gordas. Eva, porém, não percebeu a chegada do marido e ficou a
nanar a criança. Deitada em um leito de palha, seus cabelos eram
como ramos de uma vinheira jogados sobre seu rosto cansado de mãe.
Palavra nova: mãe. E foi a primeira.
Adão veio lentamente por
trás já erguendo sua arma de caça pronto para desferir o golpe
fatal. Foi aí que ele ouviu as palavras proclamadas por Eva,
palavras que mudaram sua vida.
- Eu te amo. - Eva disse
para o bebê.
O amor era uma das muitas
palavras que os dois tinham aprendido. Mas Adão não entendia o que
era aquilo que ela dizia para a criança. Era uma emoção nova que
para o homem era desconhecida. Amor para ela era somente o coito
intenso nas trevas. Como ela poderia amar um serzinho daqueles? Como
era possível dedicar sua vida a uma criatura tão desprezível? Será
que era algo que só as mulheres conheciam? Ou será que Deus tinha
um plano para eles que ainda precisava ser descoberto envolvendo essa
palavra?
De qualquer forma, Adão não
filosofou muito. Sua emoção o dominou. Deixou cair sua lança. O
que teve não foi exatamente pena, mas amor. Amor real. Tocou o ombro
da amada esposa e a beijou na testa e então tomou a criança nos
braços. Brincava de cutucá-la no nariz para a diversão do pequeno,
que ria.
Adão conhecia seu lugar.
Eva não estava mais sozinha. A primeira família.
- Como ele vai se chamar? -
perguntou Adão.
- Cain – Eva respondeu. -
É um lindo nome.
1 de novembro de 2019
O Terremoto
Tratava-se de uma reportagem
que eu precisava escrever para o jornal onde trabalhava. Seria o meu primeiro grande
feito como repórter, depois daquilo haveria uma matéria assinada
com o meu nome. Então eu estava mais que empolgado. Além disso, não
é todo dia que a gente visita um país do Caribe, nem que fosse o
Haiti.
Portanto, como seria minha
primeira grande reportagem, tinha a obrigação de torná-la marcante.
Tinha que mostrar alguma coisa única e interessante sobre aquela
nação tão pobre, algo que fosse memorável. Segundo os meus
colegas de redação, uma de minhas qualidades é o meu "sexto
sentido", uma capacidade que tenho de presumir que está
há algo de errado. Pensei que tal habilidade pudesse ser
útil em minha viagem.
Tive sorte assim que
cheguei. Eu estava em Porto Príncipe, capital do Haiti, quando
conheci Enzo. O jovem médico se mostrou entusiasmado em falar sobre
sua estadia no país caribenho. Resolvi encontrá-lo em seu quarto de
hotel no centro cidade. Estava lá para visitar seu pai, o embaixador
e diplomata Carlos Gomes. Falou muito sobre este, ressaltando suas
qualidades como grande dialogador. Porém, ficou claro para mim que
havia um tom de negatividade em sua voz quando eu perguntei sobre a
relação que tinha com o pai. O rapaz deu de ombros e disse que
preferia não falar sobre aquilo.
- Ele sempre duvidou de
minhas qualidades – Enzo disse – Por isso virei médico, para
provar que sou capaz.
No momento em que concluía
esta frase, o telefone tocou. Enzo, desculpando-se, levantou-se e foi
atender. Tentei não escutar, mas ouvi uma parte da conversa que Enzo
tentava manter em um tom baixo. Mas, em alguns momentos, por conta de
explosões em sua voz, fui capaz de captar alguns trechos da diálogo.
Parecia estar muito zangado com seu pai. Perguntava a ele coisas como
"por quê?" e "qual é seu problema?". Enzo
desligou o telefone furioso e também frustrado.
- Me desculpe – ele disse
– Era meu pai. Queria saber como era nossa relação? Aí está!
Mas não me disse mais nada.
Eu estava perguntando-me o porquê de investigar a vida particular
daquele rapaz. Então, decidi continuar em minha jornada e pedi para
que Enzo me desse uma carona até o hotel onde eu estava hospedado a
alguns quilômetros dali. Ele, generosamente, concordou.
Durante a carona, Enzo me
contou sobre alguns pontos importantes do centro. Falou-me da
história de Porto Príncipe e do Haiti em geral, pareceu até que
dirigimos por um século. Enzo se mostrou um bom rapaz e eu, durante
toda a minha entrevista com ele, senti muita estima. Uma pena que
tivesse uma relação tão ruim com o pai.
Quando o informei em que
hotel eu havia me hospedado, ele espantou-se.
- Que coincidência! É onde
meu pai está!
Chegamos à porta do hotel,
que era consideravelmente menor que aquele onde Enzo se hospedara.
Foi nesse instante, enquanto saíamos do carro, que começou. O meu
"sexto sentido", motivo de tantos elogios que já recebi na
redação, começou a ter efeito. Inicialmente, achei tratar-se de
alguma construção ali perto. Porém, se intensificou e pude sentir
os tremores sob os meus pés que então se espalharam por todo meu
corpo. Olhei para Enzo e ele estava assustado.
- O que é isso? - eu
perguntei.
- Acho que é um terremoto!
- ele disse – Vamos para o meio da rua, estaremos mais seguros.
Quando nos demos conta,
havia multidões apavoradas pelas ruas. Aparentemente, não era a
primeira vez que testemunhavam aquele fenômeno. Eu já havia
pesquisado e terremotos não eram novidade no Haiti.
Para o terror geral, os
abalos sísmicos foram progressivamente intensificando-se. Chegou a um
ponto em que podíamos ouvir o concreto dos prédios ranger. O
asfalto comportava-se como uma onda. Nunca imaginei que chegaria a
incluir tal evento na minha reportagem.
Quando olhei para Enzo,
enxerguei desespero em seus olhos, um pavor que percebi não ser
relacionado com o terremoto. Quando perguntei a ele o que se passava,
ele olhou para o hotel em nossa frente. As paredes do edifício
começaram a rachar. Várias pessoas saíam apavoradas. Logo cheguei a
conclusão do que levava o jovem médico a estampar aquele semblante em seu
rosto e me lembrei do que havia dito quando chegamos: seu pai estava
lá dentro!
Mas antes de podermos fazer
qualquer coisa, testemunhamos, para a nossa total aflição, o prédio
sucumbir. Andar por andar o edifício veio abaixo. Enzo paralisou.
Tive que tirá-lo dali antes que qualquer destroço atingisse-nos.
Instalamos-nos atrás de um carro que estava estacionado do outro
lado da rua, mas não conseguimos nos proteger da poeira que engoliu
a tudo.
A rua ficou toda como que
nublada, envolta por uma neblina cinzenta. Os tremores estavam
cessando, mas o desespero apenas crescia. Os gritos das pessoas
intensificavam-se.
Durante todo o desabamento
eu mantive meus olhos fechados. Quando os abri, não encontrei Enzo.
Levantei-me e olhei ao redor, a poeira se dissipava. Gritei seu nome
e fui encontrá-lo em frente aos escombros, chorando.
- Pai! - ele dizia.
Não sabia o que dizer ou
que fazer, eu estava tão chocado quanto ele. Imaginei o número de
mortos somente naquele desabamento. Pelo resto da cidade deveria ter
havido ainda mais fatalidades.
Aquele foi apenas o começo
de um dia sombrio. Os bombeiros chegaram e começaram a procurar por
sobreviventes. Enquanto isso, Enzo, ainda abalado, ligava
incessantemente para o telefone do pai, mas ninguém atendia. Os
bombeiros recomendavam manter distância, então tratamos de
ficar na calçada de uma lanchonete no outro canto do quarteirão.
Mas Enzo não se inquietava.
Tinha quase certeza do pior: seu pai estava morto. Fiquei
extremamente sentido e abalado com a possibilidade daquele fato que,
confesso, considerei. Olhei o jovem sentado naquela calçada e pensei
como era triste saber que, caso seu pai estivesse realmente morto,
eles nunca teriam a chance de fazer as pazes.
Mas, levantando-se em um
salto, Enzo enxugou as lágrimas e olhou para o edifício desabado
onde já hospedara-se Carlos Gomes e, talvez por desespero, teve a
ideia de procurar por si só o pai. Uma ideia tola.
- Se passarmos pelos
bombeiros, nós chegaremos aos destroços. Eu vou procurá-lo, não
peço que me siga! - ele disse.
Tive que acompanhá-lo, eu
não podia deixá-lo. De qualquer modo, todo aquele infeliz desastre
iria acabar nas páginas de meu jornal. Tivemos que dar a volta no
quarteirão para então conseguir acesso aos escombros. Tivemos sorte
que os bombeiros não nos viram. Fui testemunha de um homem que,
ajoelhado, desesperadamente procurou por o que restara do pai,
removendo pedra por pedra em busca de qualquer sinal. Ficamos minutos lá e eu já
não aguentava mais a poeira que era bastante irritante.
Eventualmente, fomos avistados por paramédicos e bombeiros que nos
tiraram de lá. Enzo já não chorava, acho que naquele ponto ele já
havia aceitado a morte do pai.
Quanto às capacidades do
corpo de bombeiros e dos paramédicos haitianos, pude observar que
eram pobres em recursos mas, em resposta à catástrofes como
aquelas, faziam seu melhor para salvar o máximo de vidas. Nas
redondezas foram armados vários barracos onde resolvemos ficar.
Vimos, para meu contentamento e alívio, várias pessoas serem
resgatadas com vida. Algumas nem estavam muito machucadas. Enzo viu,
inclusive, conhecidos. Mas depois de uma hora não havia sinal do
senhor Carlos Gomes.
Até que, finalmente, o
chefe dos bombeiros informou-nos que um homem branco tinha sido
achado nos escombros, possivelmente o pai de Enzo. O jovem médico
saiu em disparada ao encontro do socorrido. Fui atrás, quase o perdi
em meio a multidão. Chegando lá, tivemos a confirmação do pior.
- Pai! - Enzo gritou.
Não sabia se ficava feliz
por ter o achado com vida ou desesperado por ter um andar todo em
cima dele. Carlos havia sido encontrado em uma fissura entre os
escombros. Os bombeiros que o acharam apenas ouviram seus gritos de
socorro. Com a ajuda de lanternas foram capazes de iluminar a
pequena "caverna" onde ele estava preso e enxergar o
embaixador. Um dos socorristas que fora ao encontro de Carlos nos
informou:
- Ele está sob uma parede,
sob muito peso. É possível que alguma viga tenha o perfurado. Sinto
muito, mas ele não tem muito tempo de vida. Já sangrou muito...
Aquelas informações
agourentas apenas contribuíram para a crescente aflição de Enzo,
que estava em prantos.
- Podem tirar ele de lá? -
eu perguntei.
- Sim, mas como eu disse,
ele já perdeu muito sangue. Não tem muito tempo de vida.
Novamente tivemos que nos
afastar para permitir o trabalho dos profissionais. Vários homens
adentraram nos escombros e, depois de uma hora e de muito esforço,
vimos Carlos ser retirado de baixo do que restara do prédio pelos
bombeiros. Estava deitado em uma maca e banhado em sangue . Não era
a visão mais bonita, principalmente para um simples repórter que
estava empolgado para conhecer um país tão diferente e que esperava
ver o lado bom daquele lugar. Só podia imaginar o que passava pela
cabeça de Enzo.
Foi levado para uma
ambulância onde ficou por muito tempo sendo tratado por vários
paramédicos. Não foi levado a um hospital, mas tratado ali mesmo.
As ruas estavam muito movimentadas e não era considerado sensato
entrar debaixo de um casa depois daqueles abalos.
O que Enzo mais queria era
falar com Carlos. Por muito tempo nós dois só observamos de longe.
O rapaz suava. Finalmente, depois de algum tempo, os paramédicos
conseguiram estabilizar a saúde do seu pai. Fomos autorizados a
falar com o socorrido.
Estava destruído. Não se
parecia nada com o homem que eu via nos jornais. Sua camisa estava
cheia de sangue e seus olhos mal se abriam. Seu pescoço estava coberto
por aparatos. Não era de se surpreender para alguém que até pouco
tempo tinha o peso de um andar sobre si. Parecia morto.
- Pai... - Enzo se aproximou
– Pode me ouvir?!
Carlos tentou abrir os olhos
e enxergar alguma coisa. Não conseguia, entretanto, mover a cabeça.
Balbuciou alguma coisa, como uma criança treinando as primeiras
palavras. Com o tempo foi conseguindo articular-se melhor e teve
sucesso em falar com Enzo, ainda com dificuldades.
- Enzo... - Carlos disse –
É você, filho?
Eu via tudo de um metro de
distância. Não queria intrometer-me, mas não podia perder os
detalhes daquela cena emocionante em meio a tanto caos. Eu já tinha
algo para colocar no meu jornal, sem dúvida. E seria memorável.
Lembrei-me de ir pegar minha
mochila que eu havia deixado no carro. Minha câmera estava lá
dentro. Encontrei o carro todo amassado e tive de ser rápido para
que ninguém me percebesse e me tirasse dali. Minha câmera estava
intacta. Quando voltei à cena, achei Enzo sobre o pai.
- Desculpe por duvidar de
você... - Carlos dizia para o filho – Sinto muito mesmo, Enzo...
Enquanto isso, eu tirava
fotos. Seria a manchete principal.
- Eu te amo... - Carlos
concluiu.
E então fechou os olhos.
Enzo ainda chamou pelo pai, mas ele não respondeu. Tentou mover o
cadáver do homem, mas nenhuma resposta. Teve que ser tirado de lá.
Os paramédicos levaram Carlos para dentro da ambulância e por
muitos minutos ficaram lá dentro. Eu tentei consolar Enzo, mas não
havia o que acalmasse o jovem médico.
Um homem saiu da ambulância
e se aproximou de nós anunciado o que eu já sabíamos: a morte de
Carlos. Enzo desabou, ficou de joelhos e de olhos cerrados, molhados
de lágrimas angustiadas. O pai se fora, um amor que ele não teve
tempo de desfrutar senão nos últimos minutos de vida dele. Mais uma
vez tentei confortá-lo, mas a dor era enorme. Não era possível
para ele que tivesse perdido o pai antes mesmo de poder ter uma
experiência verdadeira com ele, antes mesmo de poder dizer
que o amava.
Saímos dali. Eu já não
aguentava mais aquele lugar. Tinha sido um dia terrível, o pior de
Enzo e, por muito tempo, o pior de minha carreira como jornalista.
Passamos os dois dias seguintes em um abrigo no centro da cidade. O
hotel onde eu Enzo estava hospedado não sofreu muito dano, mas
tínhamos medo de um novo tremor. Eventualmente, retornamos.
No mesmo dia de nosso
regresso ao hotel, aconteceu o funeral de Carlos. Faltou muito para
honrar aquele homem. Poucas pessoas além de mim e Enzo estavam
presentes, colegas e poucos conhecidos, a família estava no Brasil.
Três dias depois eu iria embora. Fora uma experiência única no
país, mas eu já estava ficando traumatizado. Mas ainda queria ficar
por mais algum tempo para dar apoio a Enzo, meu amigo do Haiti.
- Ele foi um bom homem –
Enzo disse durante o funeral.
- Foi, claro. - eu respondi.
- O que você vai colocar na
sua matéria? - ele perguntou. Me surpreendi com a pergunta, um tanto
que inesperada.
- Vou falar sobre como um
terremoto uniu, de forma infeliz, um pai e um filho.
- Coloque mais do que isso.
Escreva que nem sempre quem te odeia faz isso por maldade. Por trás
de muito ódio existe amor, muitas vezes parco, mas amor.
- Vou escrever.
Despedi-me de Enzo e
retornei ao Rio com muito pesar no coração por tudo pelo que ele eu
tínhamos passado. Não pensei em outra coisa a bordo do avião.
Quando cheguei em casa
carregando uma tonelada de malas, fui recebido por dois lindos
garotinhos: Carlos e Enzo. Como estavam crescidos. Agarrei-os como
nunca tinha agarrado antes. Minha mulher logo apareceu, correndo da
cozinha. Beijei-a como se fosse a primeira vez. Estavamos nós quatro
no meio do corredor, uma família que eu não queria perder.
- Como foi? Fiquei tão
preocupada, amor – minha esposa disse – E quanto a sua matéria?
Ainda vai escrevê-la?
- Sim – eu disse - É
a história mais emocionante de todas.
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