25 de dezembro de 2019

Madrugada

Há quem se deleite com os prazeres da noite
Em baladas e festas
Em boates e bares
Entre bebidas e beijos
Entre perigos e segredos
Mas a madrugada para mim
É quando ouço o escuro falar
É quando eu contemplo o vazio
E meus pensamentos gritam contra
O silêncio
Até que gosto da madrugada

24 de dezembro de 2019

Solidão

Eu conheço a solidão
Pois eu já vi seu rosto
E já ouvi sua voz
É como um enorme vulto
Que com sua escuridão
Cobre a tudo em nossa volta
Porém que não se vê
Se sente apenas
Sempre a sussurrar
Sobre o medo
Sobre a morte
Sobre a dor
Sobre o nada
Sobre o fim
Sobre o nunca
Como é terrível a solidão

21 de dezembro de 2019

O Rei de Tacomênia

Eu costumava frequentar uma praça bem movimentada em minha cidade há alguns anos. Todo fim de tarde, quando o clima era ameno e o sol já se preparava para repousar no horizonte, eu achava um jornal, revista, livro ou mesmo um bloquinho de palavras-cruzadas para ocupar meus olhos e, relaxado, sentava-me em um banco que existia ali. Era uma praça agradável. A grama era bem cuidada, as árvores eram bonitas e de copas fartas de um verde esmeralda e vivo, as crianças que por lá perambulavam a conversar sobre suas tramas inocentes e banais eram fonte de muito contentamento para uma alma cansada como a minha. De vez em quando, porém, eu deslocava minha visão da folha que tinha em mão para o meu redor, a procurar algo de interessante.

E de vez em quando surgia, de fato, uma pérola entre pedras comuns. Como havia vários bancos e muitas pessoas a circular, surgia frequentemente alguém que passava para descansar ou ler um livro em um assento. Para quebrar o silêncio ou por necessidade de colocar uma conversa para fora, este desconhecido ou eu iniciava uma conversa que normalmente estendia-se pela tarde toda. Já ouvi de tudo: testemunhas do lobisomens, ex-celebridades, pessoas com passados e histórias que iam do ridículo ao inacreditável.

Assim foi por muito tempo, eu sentado num banco de praça tentando achar algo que me fascinasse. Mas o mundo, mesmo lindo, parecia pequeno dali. Mas mesmo com tantos contadores de histórias que eu conhecia, parecia que eu ainda não tinha encontrado o caso mais incrível ainda.

Até que um dia, quando eu já estava quase cansando-me do mesmo banco, da  mesma praça, da repetitiva contemplação de sua beleza e de ouvir histórias diversas mas que não me impressionavam ao máximo, eu conheci uma pessoa. De longe não parecia ninguém extraordinário, mas seria a fonte da história mais extraordinária que eu já ouvi.

Tratava-se de um senhor, uns setenta anos. Era baixinho, mais baixo do que eu (sempre fui considerado pequeno). Talvez um metro e sessenta e dois de altura, no máximo. Sua barba era branca como neve e em sua cabeça não havia um único fio de cabelo, seria reluzente se não fosse enrugada. Seus olhos eram bem azuis e sua pele era rosada. Não seria estranho achar que ele fosse estrangeiro e ele, de fato, era. Seu andar era de alguém que já não aguentava mais a vida, como se tivesse passado da data de validade, um guerreiro de muitas batalhas, um sobrevivente de todas as calamidades.

Avistei-o certo dia andando pela rua da pracinha. Na ocasião, ele vestia uma camisa branca de botões e calça preta, acompanhado de sapatos também pretos e portava um relógio bem bonito. Sustentava-se graças a uma bengala que mesmo assim não o impedia de caminhar aos tremidos e com instabilidade. Apesar de tudo, estava bem elegante e chegou a chamar atenção pois ninguém o tinha visto ali antes.

Inventou de sentar-se ao meu lado e eu fui logo imaginando que tipo de histórias ele iria contar para mim. Ele pareceu me ignorar inicialmente, mas depois de alguns minutos contemplando os pássaros que voavam pela praça, ele perguntou a mim:

- Lendo jornal?
- Sim.
- Alguma notícia sobre Tacomênia?
- Sobre o quê?!

O nome foi uma surpresa, nunca tinha ouvido antes. Mas a medida que fomos nos aprofundando em nossa conversa, fui descobrindo mais sobre aquela estranha palavra. Tacomênia, gentílico tacomeno, tratava-se de um pequenino país perdido no meio da Europa, uma pequena nação que já não existia mais e que há muito tempo fora incorporada a outros estados. Seu auge foi durante a Idade Média, tendo sido palco das mais espetaculares batalhas, das mais incríveis tramas entre irmãos pela Coroa e das mais lindas baladas já cantadas. A literatura de Tacomênia era riquíssima, seu povo farto e feliz (embora passasse por muitas dificuldades como todos os outros países medievais) e sua cultura a mais esplêndida. Entretanto, o país viu seu declínio com o aparecimento de um terrível inverno que assolou toda a região durante o século treze.

Assim me contou aquele senhor. Conversamos bastante sobre o país do qual eu nunca tinha ouvido falar antes e ele conseguiu me deixar bem curioso. Afinal, como sabia tanto de um reinozinho que ficava tão longe e que havia acabado há tanto? Não me apressei em perguntar isso e a resposta dele foi a melhor possível:

- Ora, eu já fui rei de Tacomênia!

A ideia de estar conversando com um rei medieval era absurda demais, então eu ri, o que deixou o senhor muito desconfortável. Mas eu precisava mesmo de uma fonte de comédia naquela tarde entediante.

- Como você se chama? - eu continuei a indagá-lo.
- Haldur é o meu nome, Haldur Taco III.

Continuou contando-me a sua história, e meu riso de natureza zombadora acabou se transformando em um semblante de seriedade, pois a sua jornada mostrou-se no mínimo envolvente. Haldur foi, segundo ele, o quadragésimo nono rei de Tacomênia. Morava em seu castelo na capital, Tacopolis. Era amado pelo seu povo que o via como um herói. Assim eram com todos os reis de Tacomênia, todos eram heróis, muito diferentes dos outros monarcas europeus da época. Haldur tinha sua rainha e filhos e filhas, estes eram condes e baronesas, orgulhosos e bravos cavaleiros, belas e inspiradoras donzelas.

Tinha, inclusive, um poderoso dragão como aliado. Era Rastang, o Grandioso, um enorme réptil alado de verdes escamas e conhecido (e temido) por seu hálito de fogo. Morava na Montanha Negra, no centro do reino, a única montanha de Tacomênia. Já foi inimigo dos tacomenos até o reinado de Hender o Corajoso quando este o libertou de um terrível feitiço que tinha o aprisionado na montanha. Sua morada continuou sendo a Montanha Negra, porém ganhara liberdade. Rastung era motivo de muito terror, mas também era um amigo próximo de todos os reis daquele país, pois era eternamento grato por ter sido libertado da bruxaria e os monarcas de Tacomênia sempre podiam contar com ele contra qualquer perigo que ameaçasse o reino. Era sempre chamado quando tocavam a sua corneta, um instrumento feito do osso de um dragão. Seu som era estridente e poderoso e ecoava por todo o reino..

Por muito tempo, então, foi boa a vida em Tacomênia.

Mas então, conspirações começaram a surgir contra Haldur. O rei tornou-se inimigo do Lorde Guillestein, seu arqui-rival que há muito planejava usurpar o trono e ter o governo da Tacomênia inteira para si. Cercado por um leal exército, este nobre tirano tinha como bandeira a Caveira Coroada, consistindo da imagem de um crânio humano adornada por uma coroa. O plano de Guillestein era sórdido e maquiavélico, sustentando-se com base em velhas rixas e no apoio de tropas e tropas de leais cavaleiros e brutais mercenários.

O rei Haldur, porém, não temia a morte, embora tivesse medo do que um ataque do exército de Guillestein pudesse fazer ao povo do país. Religioso, purificava-se diariamente e passou com o tempo a ouvir sobre profecias que envolviam sua queda em batalha.

- Ele não pode morrer, tem proteção divina – alguns diziam
- Deus tem planos para ele. Se morrer, se levantará para governar o mundo séculos depois! - outros comentavam.

E então as profecias foram ganhando forma, prelúdios de um destino supostamente premeditado por forças superiores. Dessa forma, da boca do povo, o rei Haldur Taco III foi ganhando a fama de abençoado e foi ganhando a simpatia das pessoas pelo reino e até mesmo do outro lado da fronteira. Haldur o Imortal, assim era conhecido. Poetas começaram a escrever sobre um futuro em que Haldur se levantaria de entre os mortos e reinaria o mundo. Assim era a profecia: o rei que caiu um dia se erguerá e o mundo inteiro governará.

Mas para a maioria dessas eram só histórias para entreter o povo entediado de Tacomênia. Todos levavam uma vida tão simples que, com a ameaça de uma guerra real contra Lorde Guillestein, eram inventados contos mirabolantes e fantasiosos para não deixar a população tensa ou alarmada.

Mas então a guerra chegou. Lorde Guillestein, do seu castelo negro além das Colinas dos Lobos, passou a tramar um conflito que levaria ao fim de Haldur. Não envolvia calúnias e difamações como era de costume antes, mas um combate real com o uso de seus exércitos que, se bem comandados, eram capazes de causar grande dano à sociedade Tacomena.

Porém, não só com força humana o terrível Lorde contava. Através de amizades agourentas com os piores tipos disponíveis no reino, isto é, feiticeiros servos de demônios cujos nomes eram impronunciáveis, Guillestein desvendou os segredos das magias e ciências negras até então desconhecidas a ele ou a qualquer cristão do reino. Com a ajuda de aliados bruxos, Guillestein conseguiu conjurar uma poderosíssima magia contra Tacomênia: o inverno mais cruel da história da Europa e talvez de todo o mundo.

Não houve exagero nos olhos de Haldur quando me falou sobre o impiedoso inverno que devastou o seu país. Chegou rápido. Certa manhã, uma neblina caiu sobre toda a nação. No dia seguinte já havia neve sobre o castelo real e então em poucos dias o frio atroz teve início. Os campos da Província Norte, antes verdes e sob um céu azulado, tornaram-se alvos pastos adornados por um manto cinzento. Plantações foram destruídas, o pouco que foi salvo não durou muito. Muitos pereceram naquele ano de 1252 (Haldur não teve certeza quanto a data, mas especulou que fosse esta).

Por conta de tais calamidades, o claro tacomeno começou a rezar a indagar-se sobre o paradeiro de Deus naquela hora tão sombria. Seria um castigo? Igrejas e catedrais viraram palcos de intermináveis debates e súplicas dirigidas ao céu. Depois de meses, o inverno continuava e não parecia dar trégua. Só piorava. Ficou claro, então, que havia algo maligno naquilo tudo.

Certo dia, um mensageiro de aparência sinistra surgiu diante dos portões do castelo real. Haldur não teve dúvidas quanto à sua identidade, era inimigo pois portava a bandeira da Caveira Coroada. Sua mensagem era clara: Gullestein tinha declarado guerra contra Haldur Taco III e o inverno mortal era sua primeira cartada contra o estado tacomeno. Também informou que uma batalha decisiva seria travada nos campos perto do Condado Kurt ao Oeste. Haldur irou-se naquele momento e foi logo dando ordens militares. Seus generais começaram a deslocar homens para o combate. Milhares de tacomenos, novos e velhos, foram armados. O mensageiro foi embora com outra mensagem ao seu mestre: a guerra será travada.

A hora chegara. O exército tacomeno, comandado por Haldur e seus mais leais capitães, marchou até o Condado Kurt. Passaram por vários vilarejos devastados pelo inverno e abandonados pelos aldeões que não conseguiram aguentar a diabólica maldição jogada sobre eles. Haldur viu aquilo e encheu-se de fúria e ordenou que marchassem mais rápido pois não aguentava esperar para ter a cabeça de Guillestein cravada em uma lança.

Os dois exércitos finalmente se encontraram nos campos onde haviam marcado a batalha. Haldur, montado no seu melhor corcel, antes um homem baixinho e sereno, agora era como um bárbaro das antigas, pronto para vingar o seu povo. Do outro lado estava Lorde Guillestein que cobiçava nada mais que o trono de Tacomênia, o poder era o que o movia e não se importava com o que precisava fazer, ele queria a coroa para si.

A corneta soou. A neblina era intensa e alguns que usavam elmo tiveram dificuldades para ver. O frio só não era mais forte que a emoção da guerra e a dor provocada pelo combate. Espadas fizeram sangue jorrar naquele dia, cabeças rolaram, lanças muita carne cortaram e flechas voaram indômitas.

No final da batalha, sobraram poucos dos milhares que vieram à cena. Os tacomenos leais à Haldur eram corajosos e cheios de força. Sua coragem era testada ao enfrentar os sanguinários mercenários contratados por Guillestein, homens brutos e portando enormes machados que tinham a guerra como trabalho e a recompensa como sacos de moedas, não hesitavam em matar. Haldur lutou bravamente mas acabou perdendo seu cavalo, morto por flecha. Até mesmo a Corta-Aço, a sua espada forjada há séculos pelos seus antepassados, partiu-se durante combate. Pensou em uma ultimato: chamar Rastang, o Grandioso, para ajudá-lo em um momento tão tenso. Porém, a corneta havia sido perdida, em posse de algum soldado morto entre os muitos que já caíram. Portando escudo e vestindo armadura, Haldur aguentou os maiores inimigos em pelejas diretas sobre a neve pintada de vermelho. Guillestein também acabou se encontrando sem sua montaria e passou a matar usando uma tecnologia em que tinha muita perícia: arco e flecha.

Procurou pelo rei e quando o encontrou não viu dificuldades em acertá-lo com sua flecha. Apenas um disparo certeiro. Guillestein fora um exímio arqueiro na juventude. Acertou Haldur no tronco, os órgãos internos do pobre rei perfurados. Os sangramentos internos e a dor que se sucederam o forçaram a cair de joelhos no chão em uma épica gravura medieval de heroísmo, bravura e sacrifício. Não se aguentou muito, desabou. As últimas imagens que Haldur se recorda de sua época como rei foram o céu nublado e a neve tocando seu rosto. Pôde sentir o gelo endurecendo a sua pele, como que fosse congelado. Gritos de homens e o som de lâminas chocando-se foram os sons finais ouvidos pelo rei derrotado. E então tudo ficou escuro.

A história me comoveu bastante. Cheguei a largar as palavras cruzadas que eu solucionava de lado para dar ouvidos à sua fantasia. Sim, fantasia, pois até agora aquilo não passava de um conto inventado talvez pela mente senil de um velho solitário. Entretanto, Haldur (ou seja lá qual fosse seu nome verdadeiro) decidiu apresentar uma evidência de sua queda em batalha. Lentamente ele desabotoou a camisa e revelou, na região do peito, uma cicatriz de perfuração. Fiquei pasmo por um segundo e me deixei levar mas depois eu demonstrei minha increduilidade.

- Ah, está me dizendo que essa ferida foi causada por uma flechada que o senhor tomou durante a Idade Média? - eu disse.
- Eu juro!
- Muito bem, então como é que o senhor está falando comigo agora? Como veio parar em nosso tempo.

O velho limpou os lábios e deu início a mais uma longa história. Dessa vez eu fui transportado a 1968. Mas antes veio o prólogo. Por muito tempo Haldur permaneceu congelado. O inverno provocado pela bruxaria de Guillestein provou ser mais terrível do que qualquer um imaginara, inclusive o próprio Guillestein. O país foi totalmente destruído, os que sobreviveram fugiram para outros cantos da Europa. Lorde Guillestein por pouco tempo comemorou a sua vitória. Morreu de frio em seu castelo na capital, um fim trágico para o vilão Os seus mais fieis aliados fugiram. Em suma, Tacomênia tornou-se desabitada.

Um milagre, porém, surgiu de toda essa maldição. Assim como previam as profecias, Haldur acabou realmente voltando à vida. Nos anos sessenta, mergulhadores e arqueólogos descobriram, explorando o fundo de um lago no centro da Europa, ruínas de uma civilização há muito esquecida pelo resto do continente. Tratava-se do que já fora um dia Tacomênia. O reino inteiro se encontrava em uma enorme depressão, muito abaixo do nível do mar. Quando a temporada gélida atacou, a neve cobriu a tudo e, conforme foi intensificando-se, a paisagem foi sendo enterrada por metros e metros da massa branca. Como o inverno durou décadas, foi lento o descongelamento e, quando este aconteceu, foi criado um lago que encheu a todo a depressão onde um dia esteve Tacomênia.

E era justamente esse o nome do grande lago situado entre a Alemanha e a Polônia: Lago Tacomênia. Uma ilha situava-se exatamente no centro do lago, a Ilha Negra. Era na verdade o que já foi a Montanha Negra, ou melhor, o seu cume e lá poucos sabiam mas o dragão Rastang ainda dormia profundamente esperando para que o chamasse.

Séculos se passaram e a Europa foi reconstruída. O nome Tacomênia se tornou uma lenda, uma palavra engraçada usada para definir algo de natureza fantástica, memórias de um mundo esquecido.

Porém, durante a exploração do lago em épocas mais recentes, foi descoberto, cubrindo ao que já foi o reino como que uma armadura, uma espessa e peculiar crosta de gelo. Tratava-se de um fenômeno decorrente do intenso inverno que assolou o país séculos antes, embora os pesquisadores na época fossem ignorantes quanto a isso. A bruta e constante tempestade que durou décadas acabou por criar um espécie de atmosfera própria para a depressão onde Tacomênia se encontrava. As temperaturas eram absurdamente baixas e a região literalmente congelou. Porém, com o descongelamento, o gelo persistiu e passou a residir, imutável, no fundo do lago Tacomênia.

Tantos detalhes científicos foram contados a mim pelo próprio Haldur, algo que me surpreendeu. Ouvir histórias mirabolantes daquele velho era esperado, mas termos científicos? De qualquer forma, estava tudo sendo bem divertido e eu não ligava para o que era verdade e o que era mentira. Toda aquela baboseira de fundo de lago congelado podia ser invenção do velho, assim como o bruxo da idade média. Mas era uma tarde entediante, fazer o quê?

Continuou a história. Entre os achados estavam ruínas de catedrais, castelos e cidades. Mas o mais interessante de todos foi um corpo encontrado em um planície. É importante ressaltar que tais descobertas foram realizadas por uma máquina capaz de aguentar as altas pressões no fundo do lago. Utilizando um tipo de furadeira, a incrível máquina abria caminho por entre o grosso gelo no fundo do Lago Tacomênia. Desse modo foi encontrado o corpo de um velho, vestia armadura e era tão bem conservado que parecia vivo. Sua remoção foi cautelosa, contando com o uso de garras mecânicas operadas remotamente.

O resto da história parecia ter vindo de um filme de terror. Resgatado o iceberg que continha Haldur, toda a equipe ficou chocada com o que via. Como podia um homem ter sido preservado de tal maneira? Quando o gelo descongelou, foi levado a um laboratório onde exames foram feitos no "cadáver". Perceberam que ainda estava vivo, seus batimentos cardíacos e todo o seu metabolismo, embora desacelerados, ainda se mantinham. Era como um urso hibernando. Foi quando um dos cientistas teve a ideia de reanimá-lo e trazer um homem da Idade Média ao século vinte. Não foi tão difícil, porém, despertá-lo. Uma poderosa descarga elétrica, por meio de fios ligados ao seu peito, foi suficiente para abrir-lhe os olhos. O homem saltou com um grito e se viu em uma laboratório na Alemanha, não havia cavaleiro nenhum ali.

Dessa forma foi trazido Haldur Taco III ao nosso mundo. O governo da Alemanha Oriental o manteve em sigilo por um tempo e sob quarentena. Sabe-se lá que vírus carrega, assim pensaram. O exército logo ficou interessado. Que segredos biológicos podiam ser adquiridos com pesquisas intensas naquele estranho personagem recém-descongelado? Talvez fosse a chave para desvendar o segredo da imortalidade ou talvez uma peça no enigma do super-humano. Interrogado, descobriu-se que se tratava-se de um homem que ao menos pensava ser de um país que nunca tinham ouvido falar e que teria acabado a muito tempo. Foi dito como louco pelo exército. Mas conforme as pesquisas arqueológicas foram trazendo à tona a história perdida de Tacomênia, foi dado a ele, para a surpresa de todos, confiança. Era a sua sobrevivência no gelo que os fascinavam. Muitos testes e exames foram feitos em Haldur, mas nada de anormal foi encontrado em seu corpo, era um homem como qualquer outro. Haldur sabia, entretanto, que fora um milagre que o salvou. A profecia era verdadeira e ele realmente fora ressuscitado por Deus. E se lembrou do resto da profecia que dizia: e depois de renascer, ele governará ao mundo.

A divisão científica dos militares perdeu o interesse em Haldur depois de semanas frustantes. Não pareciam descobrir nada de interessante quanto a ele, nada em seu sangue ou seu DNA que revelassem o segredo para a sua improvável sobrevivência debaixo daquela grossa camada de gelo no fundo do lado. Assim, Haldur foi liberado. Foi providenciado a ele um quarto em um hotel em uma cidadezinha próxima e uma boa quantia em dinheiro, tudo para que se sustentasse por um tempo. Quanto à comunicação, Haldur falou durante toda a vida o tacomeno, língua morta e com raízes latines, porém tendo certo familiaridade com o alemão moderno. Foi-lhe ensinado palavras e expressões básicas depois de muito esforço e estudo. "Bom dia" e coisas do gênero foi julgado como o necessário para sobreviver na Alemanha de 1968. A verdade é que o homem ainda estava chocado com tudo aquilo, muito mais chocado do que aqueles que o descobriram. Nas semanas seguintes de sua ressurreição mal falou e alimentou-se pobremente, seu raciocínio nublado. Os cientistas asseguraram que tudo era causado pela sua longa hibernação. Mas Haldur sentia-se doente por dentro, e seu remédio tinha origem divina: precisava fazer a vontade de Deus e governar o mundo em nome de Jesus Cristo.


Começou adquirindo um mapa da Europa. Em seu quarto de hotel ele por muito analisou a obra cartográfica. Não encontrou, todavia, Tacomênia. Lembrou-se do que os militares disseram-lhe, seu antigo reino não passava de uma relíquia passada e esquecida pelos Europeus. No mesmo dia, Haldur assistiu ao telejornal (a televisão, como o resto das novidades tecnológicas do século vinte, foi de difícil aceitação para a mente medieval de Haldur) onde noticiaram sobre as novas descobertas realizadas por pesquisadores no fundo do Lago Tacomênia. O nome Tacomênia foi como o bater de um sino em sua cabeça. Ainda estavam acostumando-se com o idioma novo, mas a palavra soou-lhe perfeitamente familiar. Olhou mais uma vez para o mapa estendido em sua cama. Era hora de dominar o mundo!

Mas embora tenha sido mantido em segredo pelos cientistas, não demorou para que rumores circulassem por toda a Alemanha sobre um homem encontrado no fundo do Lago Tacomênia. A história, inicialmente não mais que uma piada, ganhou fama e tornou-se popular por todo o país. Ainda instalado na pequena cidade onde os militares o deixaram, Haldur ouviu, enquanto tragava uma cerveja em uma bar, sobre tal história. Já estava habituando-se, embora lentamente, à vida no século vinte. Estava acostumando-se com as roupas e as palavras novas. Não surpreendeu-se com a rápida adaptação, era um homem muito estimado na sua época pela sua sapiência. Assim, como notou que a notícia do seu retorno estava chegando aos ouvidos do povo, decidiu fazer um humilde pronunciamento público naquele barzinho, típico de um monarca. Subindo no balcão, declarou, tropeçando nas palavras

- Rei... Tacomênia... Eu sou! - ele gritou para todos ali.

No começo houve silêncio, mas os risos tornaram-se incontroláveis em alguns segundos. Todos no bar passaram a zombar do pobre senhor. Rei de Tacomênia? Estava mais para bêbado. Entretanto, a visão do velho subindo no balcão chamou a atenção de uma jovem jornalista que ali por acaso estava. Emilie Weber procurava algo de interessante no interior do país, algo que servisse de matéria para seu jornal. Resolveu, então, confrontar o homem que se declarava rei. Inicialmente, a moça achou se tratar só de mais um bêbado, mas embora Haldur realmente tivesse bebido cerveja, mostrou-se honesto aos olhos de Emilie. Intrigada pela história de Haldur, seja fato ou fantasia, ofereceu-lhe carona para a capital, onde seria entrevistado e feito notícia no país inteiro, seja como piada ou não.

Em Berlim Leste, maravilhado com a grandiosidade das cidades modernas, Haldur foi entrevistado por Emilie e ela teve sua matéria publicada mesmo com a descrença do editor com quanto a tal título. Rei do passado volta a vida, assim dizia. E foi neste jornal que Haldur, visto como louco na redação, expôs todos os seus planos para a dominação mundial. Não como tirano, mas como um rei benevolente com guiamento divino. Haldur deixou claro que era de fato o rei de Tacomênia do século treze que fora congelado e reanimado na era moderna. Seu plano: fazer a Europa inteira, e se possível todo o mundo, aceitá-lo como seu rei em nome de Jesus Cristo. Assim seria a profecia. E Emilie Weber talvez fosse a única até então a dar ouvido ao velho, e logo os dois se tornaram amigos. Sua admiração por Haldur era como de uma criança por seu ídolo, algo que se encontra em pessoas idealistas.

A notícia abalou o país inteiro. Alguns riram, alguns acreditaram e outros apenas ignoraram, só mais um louco. Haldur, agora falando um bom alemão e trabalhando como engraxate no centro da cidade (emprego que conseguiu com a ajuda de Emilie Weber), teve sua cara impressa em muitos jornais e não demorou para que fosse surpreendido por "fãs" que o reconheciam no meio da rua. Foi virando uma celebridade em Berlim e em toda a Alemanha. Chegou ao ponto em que um canal de televisão o procurou para fazer uma reportagem. Foi parar nos televisores de todo país, ganhando alcance ainda mais abrangente.

Nessa parte, Haldur fez uma pausa e suspirou. Mal eu sabia que a aventura estava apenas começando. O velho olhou para baixo e depois levantou a cabeça e continuou a contar sua história. Passou-se mais de um ano após a sua chegada em Berlim (parte oriental). Trabalhando como engraxate e vivendo uma vida nada digna para um rei, isto é, em um minúsculo apartamento no subúrbio, Haldur não poderia estar mais descontente. Não tinha quem considerasse amigos de verdade além de Emilie, embora fosse conhecido por muitos. Entretanto, a garota e ele mal se viam, pois ela se comprometia muito ao trabalho. Sozinho, Haldur era no máximo um ponto turístico ambulante. Lá vem o rei de Tacomênia, alguns diziam. Mas não o respeitavam de verdade, mesmo depois das inúmeras entrevistas que ele dera assegurando que sim, fora um rei da idade média. Era pura zombaria. Assim, Haldur começou a se isolar mais. Não cumprimentava mais "fãs", não aceitou dar mais entrevistas. Até jornais de outros países europeus o procuraram (até mesmo um americano), mas ele preferiu ficar em seu apartamento. Como aquilo poderia acontecer? Onde estava Deus? A profecia deveria ser concretizada, ele deveria ser rei e governar a Europa inteira. Mas onde estava? Engraxando sapatos como um reles plebeu. Foi tomado de decepção.

Haldur disse-me que não chegou a ficar deprimido e que os tacomênos não conheciam tal estado emocional. Entretanto, eu pude ver em seus olhos que suas memórias daquela época eram dolorosas só de pensar. Havia algo muito humano naquele homem e que eu estava prestes a descobrir.

Os seus dias sombrios como engraxate depararam-se com uma reviravolta: Emilie Weber, a jornalista que fez da história de Haldur um sucesso em escala nacional ao achá-lo em um barzinho no interior, um dia apareceu a sua porta. A pobre moça soluçava e estava em estado deplorável, chegou a lembrar Haldur dos seus cavaleiros que retornavam da guerra feridos ou uma aldeã que perdia seus filhos em um massacre em um vilarejo tacomeno.

- Nosso jornal... foi atacado!

Não era mentira o que Emilie falava. Haldur ligou a televisão e o noticiário destacava imagens do prédio onde ficava a redação. Estava em chamas, arruinado. Todos escaparam com vida, mas o estrago tinha sido absoluto. Haldur pôde ver pela janela a fumaça que subia. Lembrou-se das guerras do passado que travou contra Guillestein e outros vilões, os corpos dos soldados tacomenos eram geralmente queimados e o vapor negro se erguia. Haldur teve calafrios com tudo aquilo.

O telejornal que assistiram alarmou ainda mais a Haldur. Segundo o âncora, o incêndio não foi acidental e que haviam suspeitos: um grupo misterioso de encapuzados. Haldur deixou o queixo cair quando viu pela televisão o que os criminosos haviam pinchado na parede do edifício em chamas: uma enorme caveira coroada. Memórias negras do passado voltaram à mente de Haldur. Recordou-se principalmente da batalha final que travou contra o Lorde e das bandeiras inimigas que balançavam. Caveira Coroada!

A partir daquele momento, todo pensamento negativo e sombrio que permeava a mente de Haldur foi-se. Não havia sensação de abandono, não havia mais descontentamento na sua alma ou decepção com o plano divino. Não iria, porém, fugir. Iria enfrentar seu inimigo. Guillestein estava de volta, não sabia como, mas havia retornado. O símbolo da caveira coroada era o mesmo usado pelo Lorde séculos atrás. Deus, aparentemente, ainda tinha um plano para Haldur.

E possivelmente incluía Emilie Weber.

- Preciso de sua ajuda para reivindicar meu trono! - ele disse.

A moça não hesitou, disse sim na hora. Tinha uma fascinação pelo velho, um apego, uma adoração. Sua história era delirante para ela, quase uma paixão encarnada, um personagem de fantasia trazido à vida, um sonho de aventura que almejava desde pequena e que agora era realidade. Além disso, tinha perdido tudo com o incêndio em seu jornal, não tinha mais onde morar. Se ficara louca, Haldur não soube dizer, mas ficou grato pela lealdade oferecida. Arrumaram as malas às pressas e partiram para a França, mais precisamente Paris.

O motivo do ataque à redação não foi óbvio no momento, mas especularam que Guillestein, ou seja quem fosse, pensou que Haldur estivesse no prédio. Ou talvez tenha sido um ato de terror, um aviso de havia uma guerra iminente estava por vir. Haldur tinha um plano: viajar à França, e então Espanha, Portugal e outros países europeus buscando alianças com os líderes dessas nações. Buscava um exército para chamar de seu, uma armada que poderia usar para subjugar os poderes do mundo e enfim cumprir a profecia divina. Não estava louca, não podia estar. Emilie Weber pelo menos não o via assim.

Saíram cedo de Berlim em um trem levando apenas o necessário. Observei que nesse momento a história tornou-se mais interessante, com a inclusão de mais um personagem. Chegando em Paris, viram-se momentaneamente longe de Guillestein (ou assim pareceu-lhes), mas estavam perdidos, não tinha direção e mal sabiam falar francês. Mesmo assim, Haldur e sua fiel servidora não desistiram do plano. Partiram para o Palais d'Élysée onde iniciariam o processo de diplomacia, mas os dois entusiastas da glória tacomena foram barrados pela segurança e pelos enormes portões da residência presidencial. Decepcionados, teriam ido embora se não fosse pela aparição de uma curiosa figura. Um rapaz, não mais velho de Emilie, gritando contra o Palácio, segurando cartazes que diziam "apoiem o rei de Tacomênia". O personagem instantâneamente chamou a atenção de Haldur. Já sabiam que Tacomênia havia tornado-se, mais uma vez, um nome popular na Europa, mas simpatizantes eram novidade pois a maioria que falava esse nome tinha um tom de zombaria na voz. Aquele rapaz parecia estar convicto de suas causas.

- Qual é seu nome? - Haldur perguntou.
- Eu sou Jasper... - disse o rapaz.

O mundo parecia estar a cada dia tornando-se mais tacomeno. Jasper afirmou ser, assim como Haldur, um sobrevivente do inverno que destruiu Tacomênia. Afirmou ter sido resgatado das geleiras do lago, exatamente da mesma forma como fora Haldur. Incrédulo, Haldur pediu por uma prova e recebeu como atestado de veracidade uma longa conversa decorrida inteiramente em tacomeno, a língua morta que há muito Haldur não ouvia saindo da boca de outro homem e que era desconhecida até pelos maiores historiadores europeus. E algo ainda mais surpreendente: a corneta que já fora usada para chama Rastang, o Grandioso. Tinha sido encontrado com o instrumento em suas mãos e uma flecha cravada no peito. Jasper não tivera tempo de chamar o dragão e morreu enquanto soprava na corneta. Desse modo, a trupe havia acabado de ganhar mais um membro. Jasper fora achado semanas depois de Haldur, mas não obteve a mesma fama pois o que ele por mais de um ano buscou não foi a deominação mundial ou o cumprimento de uma profecia, mas apenas o seu rei em pessoa que ele sabia que estava em algum lugar por aí. Fora um dia um mero camponês convocado pelo próprio rei a lutar contra o exército de Guillestein. Com muitos dos familiares mortos pelo frio, Jasper não viu opção senão manter-se fiel ao seu rei. Mas mesmo com a alegria da nova companhia, o plano de conquista global visiado por Haldur (ou melhor, por Deus) não parecia ter muito futuro e eles resolveram dar um tempo para melhor arquitetarem os próximos passos.

Resolveram instalar-se na humilde casa de Jasper, nada mais que três quartos apertados em um cortiço, piores até que onde Haldur morava em Berlim. Porém, Haldur mostrou-se humilde, focando apenas no plano que tinha em mente e não nas baratas que andavam pelas paredes. Alojaram-se no cortiço por longas e dolorosas duas semanas. Este trecho da história seria cômico se não fosse trégico. O espaço apertado era terrível e desconfortável, o banheiro causava calafrios na delicada Emilie e as hábitos de Jasper era no mínimo repugnantes, por um momento Haldur teve vergonha de tê-lo como compatriota.

Haldur por muito tempo ficou aliviado, nem pensava mais em Guillestein. Chegou a bolar viagens até a Turquia e Moscou, buscando o apoio de quem fosse necessário. Porém, mais uma vez o noticiários televisivo o abalou. Novas notícias de Lorde Guillestein. Havia tornado-se um criminoso procurado por toda a Europa. Ficou conhecido por uma série de atentados em Berlim, Bruxelas e Roma. Os comentaristas, apavorados, temiam sua chegada à Paris.

- Ele está em busca de vossa majestade! - disse Jasper – Ele não vai desistir até destruí-lo e tudo que resta de Tacomênia!

Mais uma vez Haldur fez o que todo rei deve fazer: liderou seu povo. Abriu mais um mapa, dessa vez um maior e deparou-se com massas de terra até então desconhecidas para ele. Estados Unidos? Líbia? Japaão? O mundo havia tornado-se bem maior e eles precisavam escapar de qualquer maneira. Guillestein não desistiria. Haldur e seu povo precisava ir para bem longe.

- Aonde iremos? - ele se perguntou olhando o mapa.
- Que tal aqui? Ouvi falar que eles tem praias e muito sol por lá! - disse Emilie apontando para um enorme continente no hemisfério sul.
- Certo – disse Haldur – Vamos ao Brasil!

Levantei as sobrancelhas naquele momento. Estava tudo finalmente se encaixando. Então aquele velho senhor estava conversando comigo na praça pois há muitos anos tinha escapado de um inimigo que o perseguia pelo velho continente. Ele estava quase me convencendo com a sua história fantástica, história essa que me fazia desejar que aquela tarde durasse um pouco mais.

Tiveram que atravessar o país inteiro até chegarem ao sul onde puderam alugar um barco clandestino que os levaria até o outro lado do Atlântico. Somente a jornada até o litoral foi tensa, com o perigo de um ataque de Guillestein sempre presente. O Lorde não estava sozinho em sua perseguição contra o rei. Segundo o que Haldur tinha compreendido, ele contava com um grupo de leais servidores, soldados em sua guerra contra Tacomênia. Se eram sobreviventes retirados do lago, Haldur não sabia.

Arranjaram um barquinho. O capitão, Pierre, um barbudo de aparência gentil, era um mestre dos mares, hábil em seu trabalho. Fez boas amizades com Haldur, Jasper e Emilie. Além do trio, estavam abordo pelo menos uma dúzia de pessoas, todas procurando um meio de atravessar o enorme oceano, vítimas de qualquer desespero que as forçava a sair de suas casas. O francês foi difícil para o grupo, mas Emilie, felizmente, sabia um pouco. Assim iniciou-se a jornada. O mediterrâneo era calmo e sereno e embora o Atlântico tenha se mostrado mais grosseiro, ainda era bem melhor do que viver em guerra no continente. Haldur não conhecia o mar, o seu país era de agricultores, pescadores não eram famosos lá e não haviam capitães ou velejadores em Tacomênia. Tudo era novo para Haldur. Brasil? Linda palavra nova.

Mas a paz durou pouco. Durante uma tarde de fortes ventos e céu nublado, muito parecido com aquele dia testemunhado por Haldur e seus soldados quando lutaram por Tacomênia, uma embarcação surgiu ao longe. Era maior do que o barco de imigrantes de Pierre e muito mais ameaçador pois tinha pintado em si um símbolo que encheu Haldur de medo. Um marujo falou com megafone, sua voz estridente:

- Rendam-se! Somos os piratas da Caveira Coroada! Queremos Haldur e sabemos que ele está aí!

O frenesi abordo foi imenso, os tripulantes pareciam um bando de galinhas confusas e assustadas. Pierre e os outros não sabiam do que se tratava exatamente, mas mesmo assim temeram o pior. Pierre sabia dos perigos daquelas águas melhor do que ninguém e acelerou como nunca. Haldur, Emilie e Jasper pensaram em pular e ir nadando para o litoral. Pensaram errado; água muito gelada e distância até a costa muito grande. Resolveram entrar em pânico.

- Queremos Haldur! Entregue-o! - o marujo hostil voltar a gritar em seu megafone.

Haldur não tinha ideia de como haviam sido encontrados, talvez mais uma bruxaria de Guillestein? De qualquer modo, tinham que escapar dali rapidamente. Mas o inimigo era rápido e implacável e os homens de Guillestein tinham poderosas armas de fogo em sua posse e começaram a atirar contra a embarcação de imigrantes.

Pierre era um velho lobo do mar mas não era páreo para piratas tão terríveis. Nunca antes teve sua embarcação alvejada daquela maenira, o velho barquinho chegou a balançar e o som das balas batendo no casco era insuportável. Não teve opção a não ser render-se.

Apareceu na proa com os braços ao alto:

- Estamos nos rendendo!

Pela própria expressão no rosto de Haldur e pelo tom de sua voz eu pude deduzir que tratavam-se de lembranças sombrias. Não sentia-se tão em guerra desde os velhos tempos. Contava essa parte velozmente, como se quisesse pular logo. Mas não pôde evitar, pois o momento mais importante na história tinha chegado: o seu confronto final com Guillestein.

Era verdadeiros piratas, cães marinhos. A embarcação inimiga aproximou-se do barco onde os heróis tacomenos encontravam-se e foram todos forçados a subir a bordo. Pierre e os imigrantes foram poupados e dados a permissão de partir. Haldur, como um bom rei, tinha um plano como sempre.

Estavam cara a cara com Guillestein. Estava mais terrível que nos dias antigos. Sua barba estava enorme e como era negra a sua barba, um homem alto e de olhos terríveis, um filho do diabo. Estava, porém, trajendo roupas militares muito mais modernas, nada de armaduras. Seus homens, na maioria contratados, portavam metralhadoras.

A neblina cercava todo o navio. O frio era tão terrível como o de 1251.

- Finalmente! - disse Lorde Guillestein – As circunstâncias fizeram com que nós sobrevivêssemos para que pudéssemos nos enfrentar mais uma vez! Aqueles homens que me tiraram do lago foram tolos demais. Dessa vez, Haldur Taco III, você não sobreviverá e a coroa do mundo será minha!

Um dos seus homens aproximou-se carregando uma espada. Haldur arregalou os olhos ao ver Guillestein lentamente tirando-a de sua bainha. Era Corta-Aço, a antiga arma dos reis tacomenos.

- Como? - Haldur disse – Ela quebrou-se em batalha!

- Foi encontrada no lago e levada a um museu. Eu e meus homens não hesitamos em roubá-la e reforjá-la. E agora, Haldur, vocês dois serão mortos por ela!

Foram forçados a se ajoelhar em uma cena cruel de execução. Emilie soluçava, Haldur continuou com uma expressão séria que logo transformou-se em um leve sorriso. Guillestein notou o semblante que seu adversário portava.

- Por que está rindo, Haldur? Você e sua patética amiga morrerão agora!

- Você não é o único que tem um exército. - respondeu Haldur.

Emilie, tão chocada com a situação e embriagada de terror, notou somente então que Jasper não estava ali presente. Para onde fora o jovem tacomeno? Foi aí então que um poderosíssimo som ecoou por todo o mar onde se encontravam. A neblina dissipou-se como fumaça que é levada por um forte vento e todos os homens de Guillestein levaram suas mãos aos ouvidos em resposta à aguda dor que sentiam.

Haldur já sabia o que era. A corneta soou de novo e dessa vez foi como que o mundo todo tivesse tremido. Era Jasper que jogara-se no mar. Tinha trazido a corneta como plano contra qualquer ataque vindo de Guillestein. Não tinham ideia se funcionaria até ouvirem um trovão vindo dos céus. Era Rastang, o Grandioso! Era mais veloz que qualquer águia, a força de suas asas incomensurável, sua figura como um véu negro que cobria todo o céu. A Ilha Negra no Lago Tacomênia partiu-se em pedaços quando o seu espírito, regido por forças mágicas desconhecidas pelos homens comuns, despertou de seu sono profundo. Cruzou a Europa como um locomotiva.

Quando chegou ao encontro de Haldur e os outros, seu rugido pode ser ouvido como um hino de terror e de majestade. O coração de Guillestein encheu-se de medo e pavor ao notar a terrível imagem do dragão milenar cruzando os céus e indo em sua direção. A boca da criatura já se abria e, mesmo distantes, os personagens que se encontravam naquela cena no meio do Atlântido já conseguiram sentir o calor de sua baforada de fogo.

E como o fogo de Rastang era destruidor! No momento que a labareda vermelha encontrava o casco do navio, Haldur e Emilie apressaram-se em pular na água. A última visão que tiveram de Guillestein e seus capangas era dele entre uma roda de chamas e seus gritos eram de homens desesperados, parecia um inferno. A água do oceano, antes fria como o fundo do que já foi Tacomênia, já era quente devido à presença de Rastang. E o dragão continuou com suas baforadas, o navio queimando como uma tocha.

Aquele foi o fim de Guillestein e de sua perseguição contra os tacomenos. Nunca mais o estandarte da Caveira Coroada foi reverenciado ou temido depois daquele dia. Todavia, não era o fim da história de Haldur.

- Minha história termina com minha chegada no Brasil... - o velho me disse.

E continuou contando-me. Derrotado o inimigo, Haldur, Emilie e Jasper agradeceram ao velho dragão e lhes foi oferecida uma carona até onde desejassem.

- Posso voar até qualquer lugar do mundo – disse o dragão, redescobrindo depois de muito a sua incrível capacidade de falar.

- Ao Brasil! - disse Haldur.

Sentaram-se, ou deitaram-se, nas costas do dragão. Suas escamas verdes de longe podiam parecer duras, mas eram macias como um casaco. Passaram quase um dia nas costas de Rastang a cruzar o Atlântico. O sol se pondo, Haldur contou-me, foi algo que ele nunca se esqueceu. Teve uma epifania naquele segundo. Pela primeira vez desde seu despertar quase dois anos atrás, Haldur finalmente entendeu o plano que Deus tinha para ele. Não envolvia dominar o mundo, governar a Europa e declarar-se o rei de todas as nações para cumprir com alguma antiga profecia. Talvez fosse outra coisa que ele ainda não tinha compreendido. Tinha até mesmo esquecido da sua espada, a Corta-Aço, perdida entre o mesmo fogo que consumiu Guillestein. Todo seu orgulho que ele nem sabia ter foi eliminado de sua alma assim que Rastang pôs na cidade litorânea.

O Brasil era bem diferente da Europa da qual Haldur estava habituado. Emilie, muito educada, tinha visto apenas em fotos e livros e Jasper nem sabia direito o que era. Não haviam muitas cidades, o clima era mais quente e o próprio céu parecia ter outra cor.

De qualquer forma, lá estavam, talvez não onde quissessem estar, mas onde pareciam precisar estar. Vontade divina ou força misteriosa do destino, no Brasil estavam.

Tiveram que despedir-se de Rastang.

- Aonde vai? - perguntou Emilie.
- Não sei, jovem, talvez procurar por outro dragão ou encontrar uma caverna onde possa me esconder – o dragão respondeu.

E alçou voou. Ninguém nunca mais viu Rastang, e ele se tornou uma lenda no mundo. Dizem que ele chegou a encontrar uma dragoa em algum lugar da Ásia e que juntos eles tiveram muitas crias. Outros dizem que ele morreu de solidão na Antártida. Ninguém nunca soube da verdade.

Quanto aos companheiros de jornada de Haldur, cada um teve, assim como o rei, uma mudança de espírito. Jasper não era o mesmo pobre camponês que abandonara o campo em 1252 para morrer ao lado de seu rei. Tinha agora visão, um futuro todo pela frente. O mundo já não era mais sua pequena fazenda no interior de Tacomênia, era muito mais.

Emilie entregara sua alma a seu rei, seu ídolo singular cuja imagem beirava o divino. Haldur, com o passar da jornada, havia se tornado mais que uma fonte de inspiração e idolatria para a jovem Emilie Weber. Seu coração ardia por ele e o admirava com ternura e paixão. Mas escondeu isso inicialmente, guardando o sentimento para si.

Rastang os deixou em uma clareira cercada por um denso matagal. Sabiam que ao sul havia uma grande cidade banhada pelo litoral pois tinha a avistado durante o voo. Por muito caminharam até encontrarem uma estrada. Um caminhoneiro gentil ofereceu uma carona aos três exaustos viajantes. Até a cidade. Quando perguntaram qual era o nome dela, o motorista respondeu:

- Ora, é o Rio de Janeiro!

Neste ato final da história, Haldur pôde finalmente respirar pois foi aí que seus dias de paz começaram. Os primeiros meses no Rio foram difíceis para os três. Não falavam direito o idioma (este problema parecia perseguí-os) e não tinham dinheiro nem trabalho. Diferente da Europa, Haldur não era famoso por ser o rei perdido de Tacomênia. Era só mais um senhor. Mas Jasper acabou conseguindo trabalho em um supermercado local e pôde sustentar os amigos. Emilie não conseguiu mais esconder seus sentimentos pelo seu rei. Saudoso dos tempos matrimoniais com sua amada rainha, Haldur acabou revelando sua surpreendente afeição por Emilie Weber em um estranho caso improvável de amor.

Mostrou-me uma foto que guardava no bolso de um rapaz e duas moças.

- Meus filhos. - ele me disse, sorrindo.

- E o que aconteceu nos anos seguintes? - eu perguntei.

- Nada demais. - o velho me respondeu – Não houve mais batalhas contra bruxos, nem mais dragões, nem mais magias, nem exércitos de cavaleiros ou qualquer coisa parecida. O mundo parecia normal. Eu arranjei um emprego miserável por um tempo, aprendi o idioma e consegui me aposentar. Até me casei com Emilie.

- E quanto a Jasper?

- Viajou há anos. Foi embora, para bem longe, não sei onde. Acho que ele achou seu propósito.

- E quanto a você? Qual seu propósito?

- Não sei – ele disse – Talvez Deus só quisesse que eu vivesse, não que eu continuasse sendo um rei. Mas não me importo muito em saber a resposta para essa pergunta. Estou grato por estar aqui, nessa vida boa e simples.

O velho levantou-se lentamente com a ajuda da sua bengala e olhou para o horizonte, o sol estava se pondo. Olhou para mim com um sorriso no rosto, um sinal humilde de despedida.

- Meu senhor, essa história toda é inacreditável. - eu disse - Dragões e feitiçaria não são coisas reais. Como espera que eu acredite nisso tudo? Por que, afinal, me contou tudo isso?

O velho respondeu:

- Ora, não precisa acreditar. É uma história para alegrar essa tarde entediante. A vida precisa de um pouco disso tudo.

E saiu a passos lentos. Despediu-se de mim com um aceno e sumiu na esquina. Nunca mais cheguei a ver aquele velho senhor de novo. Fiquei lá, sentado, pensado em reinos encantados e castelos cheios de tesouros, bruxos maléficos e dragões terríveis. Será que a história era verdadeira ou só produto da fértil imaginação de um senil idoso? Por algum motivo, fiquei inclinado a acreditar na primeira hipótese. Lembrei-me do histórico mitológico e religioso da humanidade. Nós sempre nos sentimos mais confortáveis crendo em mitos e lendas e depositando neles nossas esperanças, sonhos e convicções. Talvez a história de Haldur, ou seja lá quem fosse aquele senhor, fosse verdade e ele fosse o último rei de Tacomênia. E se não, qual a importância? O importante é que eu tinha mais uma história interessante adicionada ao meu vasto catálogo, algo para sempre me lembrar, um mundo aonde eu possa viajar quando estiver entediado num fim de tarde numa praça.

19 de dezembro de 2019

Homem Comum


Por que você está lendo este conto? Não leu o título, por acaso? Eu, o narrador, sou apenas um homem normal. Sou genérico, ordinário, comum. Não tenho nenhum grande talento ou nada que me destaque-me da multidão.

Ainda está lendo? Bem, já que está tão interessado, permita-me não te surpreender. Meu nome é João, ou seja, um nome bastante comum neste país. Moro em uma casa de classe média baixa. Trabalho em uma firma. Ganho o suficiente para não passar fome. Não sou rico mas também não sou miserável. Minha casa (ordinária) tem um portão que faz um barulho irritante quando é aberto. É onde eu enfio meu carro totalmente ordinário. Família? Não tenho. Não sou casado. Não tenho filhos muito menos. Se um dia eu vou me casar? Não sei, e não faz diferença e não vai mudar minha condição. Mas falando nisso, conheci uma moça legal ontem na academia. Estamos nos falando e nos dando bem. Mas ela é como eu: uma pessoa normal. Se eu penso muito no futuro? Sinceramente, não. Como eu já disse, não faz diferença. Nada faz. Tudo é a mesma coisa para mim.

Agora devem estar pensando que eu sou um cara triste e vazio por dentro. De forma alguma. O que eu mais gosto de fazer e ir pro barzinho tomar umas com meus amigos enquanto jogo sinuca e assisto a futebol (sou flamenguista, time normal). Nada melhor do que uma vida totalmente comum assim. Devem me achar sem graça. Acho que sou mesmo. Não me importo.

Já é o quarto parágrafo e ainda está lendo? Você é persistente. Mas enfim, não tenho muito o que falar. Esse conto (nem merece assim ser chamado, não tem narratva) na verdade nem precisava ser escrito. Você está perdendo o seu tempo. Vá fazer alguma coisa de interessante, alguma coisa extraordinária. Aprenda algum idioma novo, pois eu só sei português; aprenda a tocar violão, piano ou saxofone, treine seus músculos e coordenação, vire um faixa preta em artes marciais; escreva um livro, torne-se um famoso autor; vire um médico, salve vidas; vire um filósofo, mude o mundo! Não seja como eu, totalmente normal. Eu não sou importante e nunca vou ser, e isso não é ruim e nem bom, é um fato somente. Sou só um homem comum.

6 de dezembro de 2019

Sob a luz de um poste

Era noite. Mariana segurou bem forte a mão do rapaz. Este era bem mais alto do que ela, cabelos negros, olhos profundos, sorriso bonito. Ela segurava a sua mão pois não queria perdê-lo, mas sabia que, ali naquela pracinha modesta, seria a última vez que se veriam.

Pararam sob a luz de um poste. Uma luz amarelada que dava à cena uma atmosfera melancólica e triste. O rapaz pegou nas mãos de Mariana. Ela queria acreditar que daria tudo certo. Entretanto, o olhar dele já dizia tudo: era um adeus.

- Vou embora.
- Não vá – Mariana protestou.
- Eu vou.
- Não me deixe.

Ela o abraçou. Era um episódio de novela. O silêncio da noite não os deixava ouvir a própria respiração. O escuro que os circulava era como um oceano negro. Não um negro assustador, tudo naquela noite era somente triste. Até os vaga-lumes e outros insetos que circulavam o poste eram arautos da infelicidade. Mariana, menina observadora, olhou bem para os minúsculos animais alados que voavam ao redor da luz do poste. Por muito tempo os contemplou e viu como era descontente a sua natureza. Sempre estavam a circular o poste, mesmo sabendo que este eventualmente se apagaria assim que chegasse a aurora. Mariana pensou nisso e chorou. Abraçou com mais força o amante. Ele tentou consolá-la com um beijo na testa, mas ela só chorou mais. Seu amor era efêmero, ela pensou. Mas, assim como os vaga-lumes que perdem sua luz, tinha que aprender a perder sua paixão.

- Eu vou embora, tudo bem? - ele disse.
- Tá, eu aceito isso. Vou sentir sua falta. Te amo.

Ele a beijou no rosto, um beijo logo e apertado. Mas a hora chegava de dizer adeus. Segurou uma última vez em suas mãos frias e delicadas e as apertou, como que se estivesse tirando as últimas gotas de seu amor de menina, amor tão precioso. Se olharam e então ele virou-se, mãos no bolso, e adentrou a escuridão.

Mariana engoliu suas lágrimas pesadas. Não podia chorar. Olhou para os vaga-lumes e descobriu que nem todo adeus é eterno e que, assim como a luz que se apaga pela manhã volta quando o sol se esconde de noite , o nosso amor se reacende quando reencontramos alguém que o mereça.

Que menina forte era Mariana, ali, parada sob a luz daquele poste.

Bar

Bares tem uma natureza única
Como um canto aparte do mundo
Um cheiro de cachaça e fumo
Uma música brega no fundo
Talvez por isso gostem deles
É onde vão para esquecer de tudo

A menina que me encanta

Eu gosto dela como ela é
Com seus defeitos perfeitos
Com sua beleza e gentileza
Como me encanta essa princesa!

E como é macia a sua mão
E lindo é seu olhar
Ela tem um belo coração
E conseguiu o meu roubar

Não consigo esconder
o que sinto por ela
Pois trata-se de uma donzela!
Ah, como quero ela!

25 de novembro de 2019

Matemática

Números e equações são
para muitos uma enorme
dor de cabeça.
Mas não há ciência sem
aritmética, não há métrica
sem uma fórmula geométrica
e não existe espaço nem
matéria se não pudermos com
números e equações
calcular suas incríveis
medições.

16 de novembro de 2019

O Ignorante

Eu não sei
Não sabia
Não saberei
Para onde eu for
Nada eu direi

Pois sou só um tolo
Sem nada para falar
A ignorância em mim manda
E manda eu me calar
E assim eu quero estar

Amor Marginal


Marcos lembrava-se bem do rosto de sua vítima. O jovem ladrão nunca antes havia visto um rostinho tão lindo. Era de um natureza que por si só desafiava o seu jeito marginal de ser. Aconteceu numa rua pouco movimentada. A moça loira caminhava pelo calçamento, provavelmente voltando do trabalho. Parecia ter condições, admirável como resolveu ir a pé. Pouco ela sabia que Marcos já planejava naquele dia cometer um assalto. Já fora molequinho malandro, criado nas ruas, esperto para a maldade. Roubava para depois vender. Assim funciona o crime. As consequências não são estimadas por esses tipos bandidos. O mesmo valia para Marcos. No momento em que avistou a moça, esta estava de costas para ele. Marcos pilotava uma moto. Não usava capacete e nem óculos, só um boné. Era bandido solitário, mas um prodígio, e era corajoso. Não fora seu primeiro assalto.

- Passa a bolsa! - ele disse, enquanto apontava o revólver na direção da garota, que não era mais velha do que ele.

O velho trabuco tinha anos de uso e mais parecia um ferro-velho. Nem dava mais tanto medo, parecia peça sem uso. Mas a moça, que era de classe, se espantou. Assim que ela se virou, Marcos pôde ver seus lindos olhos que logo o encantaram. Ela tinha uma leveza e boniteza nos modos, mesmo assustada perante a realização do crime. A sua expressão de terror, mesmo realçando os traços grossos de seu rosto, ainda conseguiram conquistar Marcos.

Porém, mesmo sob o efeito do amor à primeira vista, Marcos não hesitou em concluir seu plano maléfico. Tomou a bolsa da moça e foi embora. Antes de ir, entretanto, uma rápida consideração cruzou o consciente do bandido: e seu roubar um beijo de minha vítima? Contudo, não o fez. Pensamento bobo. Acelerou e saiu dali o mais rápido possível. A ideia de ser pego pela polícia fazia cada fibra de seu corpo tremer. Já não era menor de idade e não gostava da ideia de ir para a cadeia.

Mas uma coisa era certeza: apaixonara-se.

Não viu a moça mais. Seu coração, todavia, era dela. Marcos tinha roubado da moça e ela roubado dele. Ladrão rouba ladrão. O que faria? Não parava mais de pensar nela. Voltou para casa, isto é, uma moradia aos pedaços que ficava nos subúrbios. Habitava uma parte pobre e escura da cidade, terra de bandidos como ele. Assim era a vida. E enquanto voltava ao seu lar, fantasiou mil e uma cenas, recriando incontavelmente os eventos de mais cedo enquanto assaltava aquela senhorita. Infelizmente, a única memória que tinha dela consistia de um semblante de medo. Não gostava de pensar naquilo. Fez mudanças quanto a sua cara. Imaginou-a rindo; não conseguiu.

Marcos tinha que fazer algo. Precisava revê-la. A primeira coisa que pensou foi em verificar sua identidade pelo celular roubado. Era bloqueado. Tinha que vendê-lo de qualquer forma. Precisava do dinheiro. O que um ladrão apaixonado poderia fazer? Foi na mesma rua que a assaltara nos dias seguintes, mas nunca mais a viu. Passou muito tempo rodado pelas ruas próximas do ocorrido pateticamente procurando por ela. Nada. Já não pensava mais na vida criminosa a qual tanto dedicava tempo e energia. Só pensava em coisas boas, puras. Com o passar dos dias, pode sentir o seu coração canalizar emoções positivas. Para ele não havia dúvida: estava sob o efeito do amor. Fora picado e o veneno já chegara à sua alma. Sentia-se grato por aquilo, grato pelo amor que sentia. Queria retribuir todas aquelas emoções, todo aquele amor. Marcos queria vê-la mais do que qualquer coisa. Queria tê-la em seus braços, beijá-la, dizer quanto a amava. Era um bandido com muito amor para dar.

Contudo, não conseguia parar de pensar em certos cenários como o de uma possível rejeição por parte dela ou de um amor impossível. Afinal, tratave-se de um reles assaltante, um habitante das mais escusas vielas da cidade, um filho do lado negro da sociedade, um marginal sem futuro. Ela, por outro lado, era talvez uma médica ou algo parecido, uma excepcional membra da sociedade em pleno exercício de suas funções como cidadã, orgulhosa de si e virtuosa. Como poderia terminar bem essa história? Tais considerações mantinham-no acordava durante a noite. Mas mesmo com tantos pesadelos envolvendo uma paixão distante e fria, havia sonhos doces em que se imagina vivendo entre seus seios, provando de seu beijo e cheirando a fragrância que cobria o seu ser. Tais sonhos faziam-no acordar com um largo sorriso no rosto. Marcos não desistiria fácil.

Mirabolou, então, uma ideia que beirava o ridículo. Mas não tinha tempo para discriminar o normal do absurdo. Tinha um plano. Iria atrair a atenção e então, talvez, ela aparecesse para ele. Certo dia, saiu de casa com um revólver em sua mão. Era o mesmo velho trabuco. Chegou a pensar em jogá-lo fora, não gostava de lembrar-se da memória em que ameaçava aquela anjo de mulher com tal grotesca tecnologia. Não precisaria usá-lo. Bastava chamar a atenção de algum policial que circulava em local pública. Chegou perto de um guarda e apontou para ele. Foi simples assim. Foi imediata a reação do oficial, que logo sacou a sua e pôs Marco no chão. Foi rápido.. No minuto seguinte já estava na viatura indo à delegacia com um sorriso no rosto.

As câmeras logo vieram. A melhor ideia que Marcos já tivera. Estava dando certo. Um repórter de algum programa policial chegou perto dele e foi fazendo perguntas. Marcos, muito empolgado, foi respondendo cada uma e fazendo questão de adicionar sua mais importante mensagem enquanto olhava para a câmera:

- Eu fiz isso por você... não sei quem você é... nem lembro o seu nome. Mas um coisa é certa: estou apaixonado por você. Se você está assistindo isso, meu amor, espero que se lembre de mim, o bandido que roubou sua bolsa outro dia...

Aquela entrevista, depois que foi ao ver, virou um sucesso instantâneo na internet e em redes sociais. Marcos ganhara a fama de bandido apaixonado. Acabou, como era de esperar, na cadeia. Mas sua família, distante mas ainda assistente quando necessário, havia conseguido um advogado para o rapaz e tinha esperanças de tirá-lo daquela condição. Iria apelar para o verdadeiro motivo por trás da ameaça contra o policial: chamar a atenção. Talvez convenceriam o juiz de que ele não estava em pleno exercício das faculdades mentais. Ou seja, enamorado.

Chegou o dia em que iria se encontrar com seu advogado. Não foi avisado, porém, que se tratava de uma advogada. Quando entrou na sala, viu, sentada à mesa, uma jovem de cabelos loiros e olhos lindos. Estava de terno e bem produzida, mas Marcos a reconheceu instantaneamente. Era aquela mesma pessoa que ele havia assaltado semanas atrás. A mesma proporção, os mesmos jeitos, o mesmo olhar, o mesmo ser.

Marcos a fitou profundamente.

Ela o fitou também.

- Olá, sou a doutora Carla. Sente-se, por favor. Deixa eu te tirar desse lugar.

O que se segue é uma história de bandido e princesa que é grande e espetacular demais para caber em um mero conto.

11 de novembro de 2019

Adão e Eva


Aquele foi, literalmente, o fim do Paraíso. Éden nunca mais. Dali em diante eles estariam sozinhos. Era o mundo e eles.

Eva ainda estava chocada com o que havia acontecido. Não teve onde esconder o rosto envergonhado. Por que fui comer aquela fruta, ela passou tempos pensando. E que cobra era aquela? E ficava pior quando pensava no que estava por vir. Gravidez? Ela não estava a fim de sofrer dores atrozes para conceber um filho. E por que tinham que conceber daquele jeito? Bastava tirar uma das costelas do parceiro como Deus fizera uma vez.

Adão estava com muita raiva de Eva. Enquanto viviam no Éden, Adão tinha uma mentalidade muito mais inocente. Não enxergava o ruim em Eva. Tudo era bom. Mas depois que Deus os apresentou à vergonha, tudo que era de ruim ficou claro. Ficou claro que a esposa (não gostava desse termo) era estúpida. Foi tola o suficiente para dar ouvidos a uma cobra falante, besta que nem ao menos constava nos planos divinos. Por causa dela, Adão perdeu tudo que tinha e já não era mais o mesmo homem virtuoso e puro como antes. Era primitivo, rude e até bárbaro. Uma sombra do que já foi. Assim era tudo para ele.

E tinham que sobreviver, a partir do dia em que foram expulsos, em uma terra seca e árida. Não havia verde como antes. Os animais, antes pacíficos, agora eram selvagens e procuravam matar o casal. Por isso, precisaram buscar abrigo primeiramente em uma caverna e depois em uma cabana mal feita que conseguiram erguer. A água era escassa, disponível apenas em algumas fontes isoladas e cercadas por ferozes competidores.

Assim seria a vida. O preço a pagar pelo pecado.

Passavam o dia sem se falar. Apenas sobreviviam. Não suportavam um ao outro. O pecado havia os transformado quase que em outras criaturas. Não eram mais os mesmos. Passaram a ser humanos. Palavra nova era aquela. Estranha. Sentiam-se quase que como diferentes entidades dentro do mapa divino. Tinham espírito e alma, disso sabiam, mas desde o dia em que foram expulsos tinham a sensação de estarem mais entrelaçados ao próprio chão em que pisavam, como que se fizessem parte dele. "Do pó viestes e ao pó retornarás". Eram fracos, mundanos, estúpidos e suas vidas, embora durassem muito mais do que a maioria das criaturas, eram frágeis.

Entretanto, havia algumas coisas boas. Dentre as novas descobertas estava o amor carnal. Com a criação da vergonha, foi necessário algo para cobrir suas partes íntimas e para protegê-los de outras adversidades como o frio. Devido à intensa convivência, o casal foi, entre desentendimentos, desenvolvendo uma ternura não vista antes na face da Terra. Suas vestimentas tornaram-se véus para segredos íntimos que aos poucos foram sendo desvendados. Deitaram-se incontáveis vezes e as palavras amor, afeto e tesão foram inventadas, algo inexistente no Éden. Porém, era um amor envolto em paixão, não era puro, apenas físico. Uma necessidade meramente humana de saciar os mais profundos desejos.

Quanto a Deus, este estava distante. Não sentiam a Sua presença. Parecia que não existia. Sabiam, na verdade, que Ele era real, mas ultimamente Seu Nome mais soava como uma ideia. Adão, certo dia, chegou a pensar que talvez Ele fosse uma invenção e que toda a vida que se lembravam te ter tido no Jardim fora uma ilusão ou um sonho extremamente realista que tiveram. Deus? Palavra curiosa, mas ainda carregada de poder.

Os dias passaram e Adão, ainda irado, começou a bolar um plano: e se matasse Eva? Tal mirabolância surgiu enquanto caçava em um campo perto de onde viviam. Adão era um bom caçador, chegava a pegar grandes e gordos animais. Lebres eram saborosas quando cozidas. Havia aves terrestres de peito farto que enchiam bem a barriga do casal. E Adão caçava com vontade, com vigor. Se lembrava de uma época em que considerava todas as criaturas da Terra como amigas, como companheiras. Agora agia com violência para com elas. Ou eram suas presas ou suas competidoras. Tinha sangue nos olhos enquanto corria atrás de algum javali com sua afiada lança. E como era bem afiada. Armas eram outro invenção pós-Éden. Tudo era brutal naquela nova época, principalmente para o homem que era mais voraz que a fêmea humana. Inclusive os pensamentos e as reflexões de Adão. A ideia de matar a parceira persistia. Tudo poderia voltar ao normal. Talvez existisse uma chance de retornar ao Paraíso e conseguir o perdão de Deus. Eva era um problema. O primeiro homem tinha saudades do Éden, saudades de um tempo em que era só ele e os animais.

Por muito tempo conjecturou o ato horrendo. Pensou em usar sua lança e dar um golpe fatal em Eva. Poderia se alimentar do corpo dela. Canibalismo era um termo que não existia e, portanto, não passava por nenhuma vistoria moral. Moral nem existia. Era só Adão, Eva e o mundo. Nada de outros humanos. Um plano perfeito, uma chance de redenção aos olhos do Criador.

Eva nem suspeitava. Sua rotina consistia em tomar conta do assentamento, isto é, uma cabana aos pedaços feita de galhos velhos de árvores. Haviam estabelecido-se perto de uma pequenina lagoa. Eram os donos dali. E era ali onde pretendiam ficar. Eva fazia a comida (o fogo, descoberta recente, ajudava bastante) enquanto o marido caçava. Com o tempo, a coitada foi sentindo-se cada vez mais solitária. A infelicidade surgira. A mulher começou a sofrer. Adão era autoritário, mal. Não a tratava bem e ela não se surpreendia em levar umas surras do terrível parceiro que Deus a dera. Sentia-se sozinha, como se não pertencesse àquele planeta, como se o mundo não fosse dela. Houve muitas noites que ela passou conversando com os astros, buscando um amigo no meio das estrelas. Adão chegou a chamá-la de louca uma vez, a primeira doida da História. Mas apesar de tudo, Eva persistia.

E então, um dia, sentiu enjoos. Vomitou muito, achou que a hora chegara para finalmente morrer. Mas aguentou por muito tempo. Quando deu conta, Eva tinha uma enorme barriga. Não tinha ideia do que estava acontecendo. Adão estava pasmo com aquilo. Nenhum dos dois se lembrava de Deus os ter contado sobre algo assim. Mas quando perceberam que o mesmo fenômeno acontecia a vários animais, ficou tudo claro. Eva seria mãe. Adão seria pai. A humanidade era a herdeira da Terra. "Crescei e multiplicai-vos".

Eva ficou assustada e também maravilhada. Pela primeira vez se sentia com alguém ao seu lado. Não estava mais sozinha. Teria um filho, uma outra pessoa para realmente fazer-lhe companhia. Por outro lado, estava com medo do que o futuro guardava para ela. A criança poderia nascer de qualquer jeito. Seria como eles ou pior? O que seria ensinado a ela? Menino ou menina? Quando tempo demoraria para crescer ou será que já sairia de seu ventre adulta?

Adão não gostou nada daquilo. Não queria uma terceira pessoa no seu pequeno mundo. Assim ele sentia-se: o dono de tudo. Será que teria que matar o bebê também? Não temia fazer isso, já tia pecado o bastante. Não temia punição de nenhum deus ou demônio. Quando a barriga de Eva já estava enorme, Adão decidiu sair para caçar e ficou dois dias fora sob a desculpa de ir procurar uma grande caça. Andou muito. Cruzou inúmeros riachos e conheceu terras verdes e belas. Pensou consigo que talvez não precisasse matar Eva e que talvez pudessem ser felizes juntos. Afinal, foi esta a finalidade que Deus tinha em mente quando a criou. Mas o mesmo espírito que habitava a Serpente ainda vagava pelo mundo e conseguiu tocar o coração de Adão. Viu vários bisões pastando sob um céu estrelado em sua frente e pensou: isso tudo é meu, é o meu mundo, minhas bestas, meu céu, meu planeta e minhas estrelas. Afiou sua lança e decidiu voltar para casa, decidido a matar sua esposa.

Quando voltou deparou-se não só com Eva, mas com um garotinho em seu colo. Era como Adão, mas bem pequeno. Tinha ombros curtos, olhos brilhantes e bochechas gordas. Eva, porém, não percebeu a chegada do marido e ficou a nanar a criança. Deitada em um leito de palha, seus cabelos eram como ramos de uma vinheira jogados sobre seu rosto cansado de mãe. Palavra nova: mãe. E foi a primeira.

Adão veio lentamente por trás já erguendo sua arma de caça pronto para desferir o golpe fatal. Foi aí que ele ouviu as palavras proclamadas por Eva, palavras que mudaram sua vida.

- Eu te amo. - Eva disse para o bebê.

O amor era uma das muitas palavras que os dois tinham aprendido. Mas Adão não entendia o que era aquilo que ela dizia para a criança. Era uma emoção nova que para o homem era desconhecida. Amor para ela era somente o coito intenso nas trevas. Como ela poderia amar um serzinho daqueles? Como era possível dedicar sua vida a uma criatura tão desprezível? Será que era algo que só as mulheres conheciam? Ou será que Deus tinha um plano para eles que ainda precisava ser descoberto envolvendo essa palavra?

De qualquer forma, Adão não filosofou muito. Sua emoção o dominou. Deixou cair sua lança. O que teve não foi exatamente pena, mas amor. Amor real. Tocou o ombro da amada esposa e a beijou na testa e então tomou a criança nos braços. Brincava de cutucá-la no nariz para a diversão do pequeno, que ria.

Adão conhecia seu lugar. Eva não estava mais sozinha. A primeira família.

- Como ele vai se chamar? - perguntou Adão.

- Cain – Eva respondeu. - É um lindo nome.

1 de novembro de 2019

O Terremoto

Tratava-se de uma reportagem que eu precisava escrever para o jornal onde trabalhava. Seria o meu primeiro grande feito como repórter, depois daquilo haveria uma matéria assinada com o meu nome. Então eu estava mais que empolgado. Além disso, não é todo dia que a gente visita um país do Caribe, nem que fosse o Haiti.

Portanto, como seria minha primeira grande reportagem, tinha a obrigação de torná-la marcante. Tinha que mostrar alguma coisa única e interessante sobre aquela nação tão pobre, algo que fosse memorável. Segundo os meus colegas de redação, uma de minhas qualidades é o meu "sexto sentido", uma capacidade que tenho de presumir que está há algo de errado. Pensei que tal habilidade pudesse ser útil em minha viagem.

Tive sorte assim que cheguei. Eu estava em Porto Príncipe, capital do Haiti, quando conheci Enzo. O jovem médico se mostrou entusiasmado em falar sobre sua estadia no país caribenho. Resolvi encontrá-lo em seu quarto de hotel no centro cidade. Estava lá para visitar seu pai, o embaixador e diplomata Carlos Gomes. Falou muito sobre este, ressaltando suas qualidades como grande dialogador. Porém, ficou claro para mim que havia um tom de negatividade em sua voz quando eu perguntei sobre a relação que tinha com o pai. O rapaz deu de ombros e disse que preferia não falar sobre aquilo.

- Ele sempre duvidou de minhas qualidades – Enzo disse – Por isso virei médico, para provar que sou capaz.

No momento em que concluía esta frase, o telefone tocou. Enzo, desculpando-se, levantou-se e foi atender. Tentei não escutar, mas ouvi uma parte da conversa que Enzo tentava manter em um tom baixo. Mas, em alguns momentos, por conta de explosões em sua voz, fui capaz de captar alguns trechos da diálogo. Parecia estar muito zangado com seu pai. Perguntava a ele coisas como "por quê?" e "qual é seu problema?". Enzo desligou o telefone furioso e também frustrado.

- Me desculpe – ele disse – Era meu pai. Queria saber como era nossa relação? Aí está!

Mas não me disse mais nada. Eu estava perguntando-me o porquê de investigar a vida particular daquele rapaz. Então, decidi continuar em minha jornada e pedi para que Enzo me desse uma carona até o hotel onde eu estava hospedado a alguns quilômetros dali. Ele, generosamente, concordou.

Durante a carona, Enzo me contou sobre alguns pontos importantes do centro. Falou-me da história de Porto Príncipe e do Haiti em geral, pareceu até que dirigimos por um século. Enzo se mostrou um bom rapaz e eu, durante toda a minha entrevista com ele, senti muita estima. Uma pena que tivesse uma relação tão ruim com o pai.

Quando o informei em que hotel eu havia me hospedado, ele espantou-se.

- Que coincidência! É onde meu pai está!

Chegamos à porta do hotel, que era consideravelmente menor que aquele onde Enzo se hospedara. Foi nesse instante, enquanto saíamos do carro, que começou. O meu "sexto sentido", motivo de tantos elogios que já recebi na redação, começou a ter efeito. Inicialmente, achei tratar-se de alguma construção ali perto. Porém, se intensificou e pude sentir os tremores sob os meus pés que então se espalharam por todo meu corpo. Olhei para Enzo e ele estava assustado.

- O que é isso? - eu perguntei.
- Acho que é um terremoto! - ele disse – Vamos para o meio da rua, estaremos mais seguros.

Quando nos demos conta, havia multidões apavoradas pelas ruas. Aparentemente, não era a primeira vez que testemunhavam aquele fenômeno. Eu já havia pesquisado e terremotos não eram novidade no Haiti.

Para o terror geral, os abalos sísmicos foram progressivamente intensificando-se. Chegou a um ponto em que podíamos ouvir o concreto dos prédios ranger. O asfalto comportava-se como uma onda. Nunca imaginei que chegaria a incluir tal evento na minha reportagem.

Quando olhei para Enzo, enxerguei desespero em seus olhos, um pavor que percebi não ser relacionado com o terremoto. Quando perguntei a ele o que se passava, ele olhou para o hotel em nossa frente. As paredes do edifício começaram a rachar. Várias pessoas saíam apavoradas. Logo cheguei a conclusão do que levava o jovem médico a estampar aquele semblante em seu rosto e me lembrei do que havia dito quando chegamos: seu pai estava lá dentro!

Mas antes de podermos fazer qualquer coisa, testemunhamos, para a nossa total aflição, o prédio sucumbir. Andar por andar o edifício veio abaixo. Enzo paralisou. Tive que tirá-lo dali antes que qualquer destroço atingisse-nos. Instalamos-nos atrás de um carro que estava estacionado do outro lado da rua, mas não conseguimos nos proteger da poeira que engoliu a tudo.

A rua ficou toda como que nublada, envolta por uma neblina cinzenta. Os tremores estavam cessando, mas o desespero apenas crescia. Os gritos das pessoas intensificavam-se.

Durante todo o desabamento eu mantive meus olhos fechados. Quando os abri, não encontrei Enzo. Levantei-me e olhei ao redor, a poeira se dissipava. Gritei seu nome e fui encontrá-lo em frente aos escombros, chorando.

- Pai! - ele dizia.

Não sabia o que dizer ou que fazer, eu estava tão chocado quanto ele. Imaginei o número de mortos somente naquele desabamento. Pelo resto da cidade deveria ter havido ainda mais fatalidades.

Aquele foi apenas o começo de um dia sombrio. Os bombeiros chegaram e começaram a procurar por sobreviventes. Enquanto isso, Enzo, ainda abalado, ligava incessantemente para o telefone do pai, mas ninguém atendia. Os bombeiros recomendavam manter distância, então tratamos de ficar na calçada de uma lanchonete no outro canto do quarteirão.

Mas Enzo não se inquietava. Tinha quase certeza do pior: seu pai estava morto. Fiquei extremamente sentido e abalado com a possibilidade daquele fato que, confesso, considerei. Olhei o jovem sentado naquela calçada e pensei como era triste saber que, caso seu pai estivesse realmente morto, eles nunca teriam a chance de fazer as pazes.

Mas, levantando-se em um salto, Enzo enxugou as lágrimas e olhou para o edifício desabado onde já hospedara-se Carlos Gomes e, talvez por desespero, teve a ideia de procurar por si só o pai. Uma ideia tola.

- Se passarmos pelos bombeiros, nós chegaremos aos destroços. Eu vou procurá-lo, não peço que me siga! - ele disse.

Tive que acompanhá-lo, eu não podia deixá-lo. De qualquer modo, todo aquele infeliz desastre iria acabar nas páginas de meu jornal. Tivemos que dar a volta no quarteirão para então conseguir acesso aos escombros. Tivemos sorte que os bombeiros não nos viram. Fui testemunha de um homem que, ajoelhado, desesperadamente procurou por o que restara do pai, removendo pedra por pedra em busca de qualquer sinal. Ficamos minutos lá e eu já não aguentava mais a poeira que era bastante irritante. Eventualmente, fomos avistados por paramédicos e bombeiros que nos tiraram de lá. Enzo já não chorava, acho que naquele ponto ele já havia aceitado a morte do pai.

Quanto às capacidades do corpo de bombeiros e dos paramédicos haitianos, pude observar que eram pobres em recursos mas, em resposta à catástrofes como aquelas, faziam seu melhor para salvar o máximo de vidas. Nas redondezas foram armados vários barracos onde resolvemos ficar. Vimos, para meu contentamento e alívio, várias pessoas serem resgatadas com vida. Algumas nem estavam muito machucadas. Enzo viu, inclusive, conhecidos. Mas depois de uma hora não havia sinal do senhor Carlos Gomes.

Até que, finalmente, o chefe dos bombeiros informou-nos que um homem branco tinha sido achado nos escombros, possivelmente o pai de Enzo. O jovem médico saiu em disparada ao encontro do socorrido. Fui atrás, quase o perdi em meio a multidão. Chegando lá, tivemos a confirmação do pior.

- Pai! - Enzo gritou.

Não sabia se ficava feliz por ter o achado com vida ou desesperado por ter um andar todo em cima dele. Carlos havia sido encontrado em uma fissura entre os escombros. Os bombeiros que o acharam apenas ouviram seus gritos de socorro. Com a ajuda de lanternas foram capazes de iluminar a pequena "caverna" onde ele estava preso e enxergar o embaixador. Um dos socorristas que fora ao encontro de Carlos nos informou:

- Ele está sob uma parede, sob muito peso. É possível que alguma viga tenha o perfurado. Sinto muito, mas ele não tem muito tempo de vida. Já sangrou muito...

Aquelas informações agourentas apenas contribuíram para a crescente aflição de Enzo, que estava em prantos.

- Podem tirar ele de lá? - eu perguntei.
- Sim, mas como eu disse, ele já perdeu muito sangue. Não tem muito tempo de vida.

Novamente tivemos que nos afastar para permitir o trabalho dos profissionais. Vários homens adentraram nos escombros e, depois de uma hora e de muito esforço, vimos Carlos ser retirado de baixo do que restara do prédio pelos bombeiros. Estava deitado em uma maca e banhado em sangue . Não era a visão mais bonita, principalmente para um simples repórter que estava empolgado para conhecer um país tão diferente e que esperava ver o lado bom daquele lugar. Só podia imaginar o que passava pela cabeça de Enzo.

Foi levado para uma ambulância onde ficou por muito tempo sendo tratado por vários paramédicos. Não foi levado a um hospital, mas tratado ali mesmo. As ruas estavam muito movimentadas e não era considerado sensato entrar debaixo de um casa depois daqueles abalos.

O que Enzo mais queria era falar com Carlos. Por muito tempo nós dois só observamos de longe. O rapaz suava. Finalmente, depois de algum tempo, os paramédicos conseguiram estabilizar a saúde do seu pai. Fomos autorizados a falar com o socorrido.

Estava destruído. Não se parecia nada com o homem que eu via nos jornais. Sua camisa estava cheia de sangue e seus olhos mal se abriam. Seu pescoço estava coberto por aparatos. Não era de se surpreender para alguém que até pouco tempo tinha o peso de um andar sobre si. Parecia morto.

- Pai... - Enzo se aproximou – Pode me ouvir?!

Carlos tentou abrir os olhos e enxergar alguma coisa. Não conseguia, entretanto, mover a cabeça. Balbuciou alguma coisa, como uma criança treinando as primeiras palavras. Com o tempo foi conseguindo articular-se melhor e teve sucesso em falar com Enzo, ainda com dificuldades.

- Enzo... - Carlos disse – É você, filho?

Eu via tudo de um metro de distância. Não queria intrometer-me, mas não podia perder os detalhes daquela cena emocionante em meio a tanto caos. Eu já tinha algo para colocar no meu jornal, sem dúvida. E seria memorável.

Lembrei-me de ir pegar minha mochila que eu havia deixado no carro. Minha câmera estava lá dentro. Encontrei o carro todo amassado e tive de ser rápido para que ninguém me percebesse e me tirasse dali. Minha câmera estava intacta. Quando voltei à cena, achei Enzo sobre o pai.

- Desculpe por duvidar de você... - Carlos dizia para o filho – Sinto muito mesmo, Enzo...

Enquanto isso, eu tirava fotos. Seria a manchete principal.

- Eu te amo... - Carlos concluiu.

E então fechou os olhos. Enzo ainda chamou pelo pai, mas ele não respondeu. Tentou mover o cadáver do homem, mas nenhuma resposta. Teve que ser tirado de lá. Os paramédicos levaram Carlos para dentro da ambulância e por muitos minutos ficaram lá dentro. Eu tentei consolar Enzo, mas não havia o que acalmasse o jovem médico.

Um homem saiu da ambulância e se aproximou de nós anunciado o que eu já sabíamos: a morte de Carlos. Enzo desabou, ficou de joelhos e de olhos cerrados, molhados de lágrimas angustiadas. O pai se fora, um amor que ele não teve tempo de desfrutar senão nos últimos minutos de vida dele. Mais uma vez tentei confortá-lo, mas a dor era enorme. Não era possível para ele que tivesse perdido o pai antes mesmo de poder ter uma experiência verdadeira com ele, antes mesmo de poder dizer que o amava.

Saímos dali. Eu já não aguentava mais aquele lugar. Tinha sido um dia terrível, o pior de Enzo e, por muito tempo, o pior de minha carreira como jornalista. Passamos os dois dias seguintes em um abrigo no centro da cidade. O hotel onde eu Enzo estava hospedado não sofreu muito dano, mas tínhamos medo de um novo tremor. Eventualmente, retornamos.

No mesmo dia de nosso regresso ao hotel, aconteceu o funeral de Carlos. Faltou muito para honrar aquele homem. Poucas pessoas além de mim e Enzo estavam presentes, colegas e poucos conhecidos, a família estava no Brasil. Três dias depois eu iria embora. Fora uma experiência única no país, mas eu já estava ficando traumatizado. Mas ainda queria ficar por mais algum tempo para dar apoio a Enzo, meu amigo do Haiti.

- Ele foi um bom homem – Enzo disse durante o funeral.
- Foi, claro. - eu respondi.
- O que você vai colocar na sua matéria? - ele perguntou. Me surpreendi com a pergunta, um tanto que inesperada.
- Vou falar sobre como um terremoto uniu, de forma infeliz, um pai e um filho.
- Coloque mais do que isso. Escreva que nem sempre quem te odeia faz isso por maldade. Por trás de muito ódio existe amor, muitas vezes parco, mas amor.
- Vou escrever.

Despedi-me de Enzo e retornei ao Rio com muito pesar no coração por tudo pelo que ele eu tínhamos passado. Não pensei em outra coisa a bordo do avião.

Quando cheguei em casa carregando uma tonelada de malas, fui recebido por dois lindos garotinhos: Carlos e Enzo. Como estavam crescidos. Agarrei-os como nunca tinha agarrado antes. Minha mulher logo apareceu, correndo da cozinha. Beijei-a como se fosse a primeira vez. Estavamos nós quatro no meio do corredor, uma família que eu não queria perder.

- Como foi? Fiquei tão preocupada, amor – minha esposa disse – E quanto a sua matéria? Ainda vai escrevê-la?
- Sim – eu disse - É a história mais emocionante de todas.