26 de setembro de 2019

Cara Cheia

Sérgio cerrou os punhos e os colocou na altura dos olhos. Parecia um boxeador. Encarou seu adversário com sangue nos olhos. Tinha ouvido falar muitas coisas de Zé Ferreira, mas não que ele era um lutador tão habilidoso.

O público era menos de meia duzia. Os que ainda assistiam queriam fugir o quanto antes daquela cena. Afinal, quem queria ver dois bêbados brigarem?

E por que a luta havia começado? Ninguém sabia dizer. Alguém que estava no bar se lembra de ter visto o Zé Ferreira falando umas coisas que deixaram Sérgio zangado. Em um estante estava em posição de combate.

- Alguém pára essa briga! - uma pessoa gritou.
- Não! Deixa eles brigarem! - outro respondeu.

O primeiro golpe foi de Zé Ferreira, o mais ágil. Acertou Sérgio no queixo, derrubando ele. Parecia que a luta já tinha acabado, mas Sérgio se levantou, cambaleando.

- Seu... miserável... - disse, mal conseguia terminar a frase. Sentia mais dor de cabeça por conta da cachaça do que dores.

Sérgio partiu para cima como um touro. Tentou acertar o oponente com um soco no meio dos olhos mas errou a mira e golpeou o peito. Zé Ferreira, homem duro, cambaleou e não caiu. Zé aproveitou a proximidade para dar dois socos certeiros no estômago de Sérgio que gemeu de dor (agora sim, dor de briga e não de cachaça). Caiu no chão. Zé Ferreira ainda aplicou chutes no rosto do pobre coitado que jazia no chão, mas logo foi interrompido pelo público satisfeito.

O dono do bar apareceu e foi logo gritando para parar com aquilo tudo. Zé Ferreira saiu bêbado pelas ruas a cambalear, triunfando e olhando para trás para garantir que o nocauteado ainda estivesse no chão.

Sérgio não sabia onde pôr as mãos. Pensou em uma cachaça. E dormiu.

Amor Inusitado


Se tem uma coisa em que nunca fui bom é namorar. Os meus relacionamentos sempre foram desastrosos, geralmente terminando com uma das partes bastante magoada. Não sei se as culpo ou se a culpa é minha. Acho que é mais minha pois sempre procurei em mulheres comuns um ideal que não existe, procurei minha vida toda uma mulher que fosse perfeita, mas descobri que essa criatura impecável talvez não existe. E, quem sabe, as pessoas estejam certas e o amor de nossas vidas ainda havemos de encontrar nas situações mais inusitadas.

Recentemente, estando eu mais economicamente estável, resolvi entrar neste universo do namoro mais uma vez. Afinal, quem não se interessaria em um homem solteiro, bonito (nunca me achei feio, ok?) e bem formado como eu? Desde que eu continue fiel a minha nova ideologia, isso é, me satisfazer com o mínimo, eu consiguirei uma namorada logo.

Então, eu baixei um app. É um app de namoro para celular. Coisa simples. Crio um perfil e procuro por moças solteiras perto de mim. Foi o que eu pensei, pelo menos. Dias se passaram e nenhuma nem me chamou no privado. Realmente, aquele ambiente era bem hostil para caras como eu. Portanto, achei que minha espécime fosse mais bem adaptada ao "mundo real". Então resolvi sair para encontrar meu amor. Porém, não deletei o aplicativo., ora, caçador monta armadilha e continua a caçar.

Fui em várias baladas, várias boates e bares. Conheci várias mulheres dos mais variados tipos. A Ângela era loira e alta mas não pareceu se interessar muito em mim (acho que eu era baixo demais para ela). A amiga dela, a Fernanda, gostou um pouco de mim, talvez tivesse dado certo se ela não tivesse vomitado em cima de mim. Outras eram distantes. Algumas eram irritantes. Depois de dias e dias eu parecia não encontrar a minha cara metade mesmo aplicando o método.

Mas então, um dia enquanto voltava para casa de cara cheia, sinti uma dor. Achei que fosse por conta da cerveja. Voltei para casa e no dia seguinte persistia. Era um dente. Não tive opção, era arrancar ou continuar me torturando. Enfim, como isso tudo se encaixa na história que eu estava contando? Foi no consultório do dentista que eu a vi.

Era linda. Tinha cabelos castanhos de cor de mel. Seus olhos eram duas pérolas e seu andar era o mais gracioso. No dia que conheci a Dra. Esteves eu mal falei com ela. "Meu dente lá do fundo tá doendo", foi uma das poucas coisas que a falei. Mas eu não consiguia parar de fitar seus lindos olhos enquanto ela brutalmente arrancava meu dente. Nem sentir dor, só paixão.

Mas embora ela tivesse roubado meu coração e meu fôlego (e meu dente) eu não tinha seu número de telefone ou outro contato. Não pensei em perguntar. Fiquei com medo, e se ela fosse casada? E se tivesse namorado? O que uma doutora iria querer com um cara como eu? Esses pensamentos passaram por minha cabeça.

Mas uns dias depois, enquanto eu estava em casa ainda mexendo no aplicativo de namoro, eu recebi uma notificação. Era de uma Luiza. Abri e, para minha supresa, era a mesma dentista que tinha arrancado meu dente. Os mesmos olhos. Tive que pôr o dedo sobre o sorriso para simular o uso da máscara. Era ela.

Fui para o banheiro e abri a boca na frente do espelho. Dei uma boa olhada nos meus dentes. Mal podia esperar para minha próxima consulta.

16 de setembro de 2019

Os Idiotas

- Hum.

Foi a única resposta dela. Acabou ali naquele restaurante, nosso namoro de um ano já era. E em pensar que eu já amei aquela menina do fundo do coração. Depois de tudo que passamos a resposta dela foi somente "hum" na frente de tantas pessoas. Para mim soou como um murmúrio quase animalesco, algo que eu ouviria de um suíno ou outro animal. Por isso senti um tanto que raiva naquele pequeno momento em que ela emitiu aquele som e deu as costas para mim, sem contar com o fato de eu ter armado toda aquela cena bonita em um estabelecimento tão chique só pra receber tal resposta. Fiquei imaginando ela com orelhas de burro e nariz de porco e vestindo uma larga camiseta com os dizeres "sou uma idiota".

Eu não me considerava um idiota. Mesmo depois de tudo que ela me acusou, mesmo depois de todos os "você não me valoriza" e "qual é seu problema?". Mas será que eu era mesmo um idiota? Comecei a me perguntar isso não depois de horas de reflexão sobre minha ex, mas sim depois de receber aquele misterioso e-mail.

Estava na frente de meu PC ajeitando uns trabalhos quando ouvi o barulho. Uma notificação. O remetente era "clubedosidiotas@email.com". No texto que descrevia o assunto da mensagem dizia: "você é um idiota?". Uma pergunta que me deixou bolado principalmente depois do que tinha acontecido mais cedo no restaurante.

Havia um texto e dois botões, além de uma imagem de um asno. O texto do e-mail dizia:

Olá. Somos um clube composto por homens e mulheres de diversas faixas etárias e de diversas classes sociais que estão cansados do julgamento da sociedade. Estamos fartos de apelidos como"idiota", "babaca" e "imbecil". Por isso decidimos criar o nosso pequeno mundo onde podemos, enfim, remover nossas mascaras e agir da maneira mais estúpida possível.

Observamos que você se encaixa no nosso perfil. Você é um idiota? Há dois botões abaixo, se clicar no verde você estará respondendo este e-mail com uma mensagem afirmativa, caso clique no vermelho negará nosso convite e voltará a ser um idiota enrustido.

Ponderei muito antes de enviar minha resposta. Será que eu era idiota? Primeiramente pensei em negar o convite. Quem quer que tivesse enviado aquele e-mail só podia querendo me insultar e tirar uma com minha cara. Idiota? Eu? Minha mãe não criou um idiota. E então eu pensei na minha namorada, digo, ex-namorada e pensei no jeito que ela olhava para mim no fim de nosso relacionamento e como eu tratava ela (como um idiota) e pensei também, claro, no "hum" que ela me deu, quase um coice. Basicamente eu pensei em toda a minha vida e nos momentos em que errei, os momentos em que fui idiota.

Era eu um idiota? Cliquei no botão verde.

Depois de apertar o botão verde eu estiquei os braços e pensei em dormir, mas para minha surpresa surgiu uma notificação. Respostas? Mal havia passado dois minutos. Idiota ou não, os membros desse clube eram rápidos e bastante dedicados ao trabalho deles. Abrindo o novo e-mail, eu li:

Bem-vindo e parabéns pela coragem de se autodeclarar um idiota. Mas ainda há muito para percorrer. Me encontre amanhã na Praça Júlio Freitas às 16h00.

Fui dormir depois dessa. Quem era esse povo, afinal? Um tipo de sociedade secreta? No dia seguinte, eu fiz como me disseram e lá estava eu na praça de tarde. Sentado em um banco, olhei para os lados por muito tempo e então ouvi, vindo de trás, alguém falando, na verdade sussurrando:

- Ei, aqui. O cara de óculos e boné.

Olhei para trás e ao pé do poste estava um sujeito que se enquadrava na descrição. Magrelo, bigodinho tímido, óculos de sol e um boné preto. Quase pensei que fosse um pervertido sexual, mas para o meu alívio era somente um idiota. Ou seja, exatamente quem eu esperava encontrar.

Quando me virei fui confrontado por um protesto. O de boné se recusava a falar comigo me olhando no olho ou mesmo sentado ao meu lado.  

Comecei a me perguntar se eu era idiota o suficiente para aquilo.

- Vamos falar assim mesmo. Então, amigo, você veio de carro?

- Sim. - respondi.

- Beleza. Eu vou entrar no meu. É um fusca azul. Me segue. Vamos até nossa sede, um pouco longe. Lá te apresento o resto do pessoal.

- Certo.

- A propósito, eu sou o Cobra Coral. Vamos lá.

Quase soltei uma gargalhada ali no meio da praça. Uma senhorinha que passava na minha frente me olhou esquisito. Mas me contive. Cobra Coral? Sério? Mas assim que me recuperei pude ouvir um carro batendo. Cobra Coral estava partindo, então entrei em meu carro e comecei a segui-lo.

O caminho foi, como ele disse, um pouco longo. Fomos parar quase do outro lado da cidade. Fiquei pensando, durante a viagem, no nome dos outros membros do clube. Imaginei o Cascavel, a Jiboia, talvez tivesse uma Jararaca. Mas além disso perguntas pairavam no ar. Como tinham me encontrando e como me escolheram?

A sede era uma casa antiga e de dois andares. Não era coisa de rico mas também não eram nenhum barraco. Mais tarde descobri que pertencia ao tio de um dos membros. Quando finalmente entramos eu fiquei surpreso em ver tanta gente comum, Eu usaria essa palavra. Não eram pessoas que pareciam ter problemas mentais nem pareciam ser usuárias de drogas. Vi personagens normais, nada de anormal. Exceto o Cobra Coral, ele sempre foi esquisito.

- Pessoal, aqui está o nosso novo amigo.

Todos soltaram um "urra!" e me cumprimentaram calorosamente. O clube era formado por treze pessoas (contando o Cobra Coral). O nome esquisito, ou melhor, apelido engraçado de Cobra Coral ficou claro assim que fui conhecendo os integrantes um a um.

O líder era o Pirata, um professor barbudo de meia-idade. Mais tarde fui saber que era casado e tinha três filhos.

Cobra Coral era o esquisito. Já esteve no exército, perdeu um olho durante um treinamento e nunca quis voltar.

Macaca era um mulher gorda que aparentava ter quarenta e cinco anos, manicure. Estava sempre sorrindo.

Astronauta era também professor e sempre quis ser político, mas gostava da carreira no clube.

Girafa era uma mulher alta e de personalidade difícil, estudante de alguma coisa. 
Vênus era a mais nova e a mais reservada.

E finalmente Atlântico. Não há muito o que dizer sobre ele exceto que ele tinha cara de idiota (já estava me acostumando com essa palavra quando o conheci).

- Bem-vindo. No nosso clube agimos como idiotas porque queremos. Vamos te dar um apelido.

- Que tal Fofinho? - disse Macaca.

- Prefiro Himalaia. Combina com ele. - foi a vez de Cobra Coral.

- Temporal. Seria ótimo.  - acrescentou Girafa.

- Hmmm, vou te chamar de Batata. Tudo bem? - perguntou Pirata.

- Ah, tá. - respondi meio que assustado.

Então teve início mais uma "sessão", como eles mesmo me disseram que se chamava os sessenta minutos diários de "idiotice" deles. Uma sessão consistia em fazer qualquer coisa, desde falar baboseiras andando em círculos até tirar as roupas e rolar no chão como um cachorro. Era um loucura.

Porém, antes de qualquer coisa eu acabei sabendo que foi durante o episódio do restaurante com minha agora ex-namorada que me descobriram. Atlântico estava lá pois ele era ninguém menos que o dono do restaurante. Foi o que ele mesmo que contou enquanto urinava no próprio rosto deitado no chão.

- Segue nosso ritmo. - disse Macaca enquanto dançava em um canto da sala.

- Entre no nosso clube! - disse Pirata. - Você é um idiota, né?

Foi um momento crucial. Eu era? Tinha aceitado entrar no clube e lá eu estava. Será que eu deveria ir embora? Afinal, eu tinha dignidade. Eu sempre me achei inteligente, capaz. Tudo aquilo era coisa de animal. Eu não fazia parte daquilo.

Estufei o peito e me virei. Tinha que ir embora.

- Não vamos te julgar! - gritou Girafa.

Ouvi aquilo e pensei em minha ex-namorada. Pensei no "hum" dele e como ela me odiava. Ela me odiava, eu tinha certeza. Naquele momento já deveria estar trasando com outro e pensando como eu nunca pude satisfazê-la. Ela me achava um idiota. Quem sou eu para negar?

Eu era um idiota.

Rasguei a camisa e tirei as calças. Comecei a balbuciar palavras. Quando me dei conta estava deitado no chão soltando um som novo que eu havia aprendido.

"Hum".

O Pintor da Rua dos Galos

Hoje em dia a Rua dos Galos está quase abandonada. Apenas alguns moradores, os mais velhos, ainda moram na Rua dos Galos, eles e um comércio prestes a fechar. O calçamento todo esburacado e o lixo na rua dizem muito sobre o lugar. Mas quem passa pela Rua dos Galos sabe que um dia já foi bonita. Isso há muito tempo. Era bonita e calma. Mas então a cidade foi crescendo e as pessoas pararam de se preocupar com a cidade. Muitos se mudaram para o centro, abandonando bairros como o da Rua dos Galos.

Essa mudança ocorrou há muitos anos. É conhecida uma história desse tempo de transição que ficou no imaginário popular de tão sinistra e fantástica que é e que deixou, e ainda deixa, as pessoas da cidade toda aterrorizadas. É a história do Pintor de Belezas da Rua dos Galos, ou só mesmo Pintor. Costumavam chamar ele de psicopata, maníaco ou assassino em série, mas com o tempo ficou conhecido como Pintor. Acontece é que ele pintava coisas bonitas.

Já foi explicado que a Rua dos Galos costumava ser muito bonita. Os galos cantavam com vontade naquela rua (por isso o nome) e o sol brilhava forte num brilho bonito. As pessoas que lá moravam eram gentis. Mas com o tempo foi sendo abandonada. Dizem que foi aí que surgiu o Pintor. O que ele fazia era raptar pessoas, podiam ser homens adultos, moças, mulheres, crianças, idosos. Ele os raptava e os levava para sua casa, ou seu covil, ninguém sabia onde ficava. Lá as vítimas eram amarradas e dizem que ele, a partir das expressões (normalmente de terror) das pessoas ele conseguia pintar "belezas". Isso é, uma paisagem, uma cena bonita ou só mesmo uma aquarela de cores explosivas. Segundo os relatos ele vestia uma máscara de ferro que, somado ao ambiente escuro onde ele praticava sua arte, tornada a experiência cabulosa.

O relato que nos dá mais detalhes acerca do próprio Pintor é o de uma mulher chamada Débora. Na época ela tinha vinte e quatro anos. Na ocasião ela voltava para casa do trabalho no comecinho da noite, sozinha. Passava pela Rua dos Galos quando viu um carro preto vindo no sentido contrário. Foi diminuindo a velocidade. Débora já estava ficando assustada. E então a moça foi andando mais rápido, com medo. Olhou para trás e viu uma figura alta e mascarada saindo do carro. Foi correndo atrás dela. Débora tentou correr mas tropeçou em uma falha no calçamento e caiu. Se lembra da figura agarrá-la pelo braço e pôr um pano úmido no seu rosto. Débora não conseguiu lutar pois adormeceu rápido.

Quando acordou a coitada estava, para o seu desespero, amarrada em uma cadeira. A sala era escura e era tudo silencioso. Depois de um minuto viu uma porta se abrir atrás dela e uma luz encher o quarto. Ela não conseguia olhar para ver mas pôde ouvir os passos se aproximando. Ela tentou gritar mas percebeu que sua boca estava amordaçada. O terror só aumentava. De repente as luzes se acenderam. Débora conseguiu ver o quarto que era na verdade um estúdio. Haviam duas paredes enfeitadas com retratos. Todos eram cheios de cores e se não fosse pela situação teriam impressionado a moça.

Apareceu então um homem, o mesmo que havia raptado Débora. Sua mascara parecia ser feita de ferro. Tinha dois buracos que permitiam ao homem enxergar e um terceiro na região da boca. Ainda tinham duas pequenas cavidades que funcionavam como narinas. Era totalmente careca e vestia um macacão preto e usava luvas. Sentou-se na frente de Débora em um tamborete e pôs as mãos nos joelhos. A encarou nos olhos.

- Se me permite, quero fazer um retrato de sua alma.

Aquela frase apenas aterrorizou mais a pobre coitada. Débora se contorcia em uma tentativa fútil de se libertar. O sinistro mascarado levantou-se e trouxe um quadro branco, um pincel e uma paleta. Daí começou uma sessão de mais de duas horas. O maníaco encarava Débora por alguns segundos e então dava leves pinceladas no quadro, assim repetidamente. De vez em quando dava uma olhada mais de perto, às vezes até se levantada da cadeira e se aproximava. Ficou por muito tempo assim. Débora foi se cansando daquilo, mas ainda assim estava assustada. Só imaginava o que podia vir depois. Talvez fosse matá-la. De vez em quando tentava se libertar sem sucesso.

Passaram-se duas horas até o homem soltar um assobio como que tivesse terminado seu trabalho. Virou o quadro para que Débora pudesse ver. Era como uma floresta de árvores altas e um céu alaranjado. E então ele disse:

- Está acabado. Seus olhos me ajudaram a pintar este quadro. É belíssimo. Vai para a minha coleção. Só assim consigo recuperar a sensação que eu tinha de viver nesta rua.

Mais uma vez a colocou para dormir. Quando Débora acordou estava no meio da Rua dos Galos em plena madrugada. Achou que tivesse sido um pesadelo, mas então viu as marcas de amarras nos pulsos. Contou tudo para a família e para a polícia. Até hoje, porém, ninguém nunca ficou sabendo quem era o Pintor da Rua dos Galos.

14 de setembro de 2019

História de Policial


Lima havia acabado de chegar a Mata Quebrada, município pequeno nas profundezas do país, e já havia percebido a natureza da cidade: crimes e gente esquisita. Não é admirável que Lima tenha observado tão cedo essas características pois ele trabalhava como policial. E era muito bem visto pelo povo de Mata Quebrada.

- Ele é um ótimo substituto do Freitas – diziam.

Freitas era mais velho, prestes a se aposentar. Seu antigo parceiro de "combate" (como ele chamava a carreira) foi um velho amigo, Garcia, morto durante um tiroteio anos atrás contra a facção comandada pelo Imperador (tipo ruim da região). Desde então, Freitas ficou marcado pela perda e só passou a pensar em descanso longe dessa profissão.

- No litoral, bebendo água de coco debaixo de uma palmeira – dizia ele.

Então, todo mundo achou que Mata Quebrada havia encontrado o rumo certo com Lima. Rapaz era corajoso, inteligente e leal à lei. Era também carismático e sempre cumprimentava a vizinhança quando passava de viatura. Porém, Lima nem sempre teve o sonho de ser policial.

- Eu na verdade sempre quis viajar – ele disse uma vez para umas pessoas – Mas nunca consegui dinheiro para isso. Queria ir pra Argentina, não sei o motivo. Sempre achei um país bonito. Ou pelo menos viajar pelas estradas do país com um cachorro no banco do passageiro.

Mas se conformou em ser policial.

E foi se dando bem assim que chegou. Lima e Freitas viraram bons companheiros com o passar dos anos. Juntos os dois prenderam muitos criminosos (perseguição pelo mato foi o que não faltou) e beberam muito juntos. Um dia, inclusive, Lima notou como a relação parecia quase de pai para filho.

Um dia durante um almoço, Freitas disse:

- Estou pensando em me aposentar faz tempo.

- Eu sei – Lima respondeu – Por que ainda não fez isso?

- Sinto que ainda não cumpri minha missão. Queria sair com honra da polícia.

- Como assim?

Freitas se aproximou do colega. Tirou um mapa velho e cheio de anotações do bolso (na verdade era uma folha de caderno bem desgastada). Começou a apontar para alguns pontos e riscos no antigo pedaço de papel.

- Dizem que aqui se esconde um tesouro, Lima.

Lima riu, quase engasgando com a comida.

- Sério?

- Sim – Freitas continuou, ignorando o sarro que o parceiro tirava dele – Vamos lá pegar esse tesouro e tirar bom proveito dele.

- Me explica direito essa história, Freitas. Que tesouro é esse?

Freitas falou sobre uma antiga história de um lugarejo que existia a quilômetros de Mata Quebrada, um povoado perdido entre morros que chamavam de Buraco do Capeta. Lá seria um covil de criminosos repleto de tesouros, ou seja, tudo que havia sido roubado pelos bandidos. Na verdade, nem era uma história, era fato, só que nenhum policial havia sido durão suficiente para ir lá.

- E você tem coragem? - perguntou Lima.

- Isso seria morrer com honra! Estou velho, Lima, quero ir lá e matar bandidos. Quem sabe podemos distribuir o dinheiro para o bom povo de Mata Quebrada! Vem comigo? Não me importo de ir sozinho.

Lima olhou para o chão um pouco e coçou a cabeça por uns segundos e então concordou. O que lhe interessava não eram as balas que podia levar mas o dinheiro.

Lá se foram os dois policiais. Tomaram caminho em direção ao norte e depois de mais de uma hora de viagem por entre os matos e por estradas de terra estreiras eles passaram por vários morros altos. Finalmente chegaram no Buraco do Capeta.

Era cedo ainda e eles não planejavam ficar ali por muito tempo. Foram armados com tudo e vestiam coletes.

Era realmente um povoado, bem pequeno. Oito casas, uma delas abandonada. Havia um silencio um tanto que sinistro no ar. O vento quente soprava. Havia, no centro, uma igreja.

- De acordo com o que eu ouvi, os tesouros ficam escondidos dentro da igreja.

- Espere, não podemos nos arriscar.

Para a surpresa de Freitas, seu parceiro havia trazido uma bomba ativada por controle remoto. Colocou ela no banco de passageiro da viatura.

- Caso nós precisemos!

Lima e Freitas foram espertos em verificar todo o Buraco do Capeta antes de entrar na igreja. As casas estavam quase todas trancadas. Duas delas estavam abertas e não tinha ninguém dentro. Os dois policiais, claro, sempre com os revólveres em punho.

- Parece que não tem ninguém aqui – disse Lima.

- Então vamos tentar entrar na igreja – disse Freitas.

A porta estava trancada, assim como as outras cinco casas na vizinhança. Foi preciso improvisarem um ariete usando um tronco de madeira que encontraram para adentrar na igreja.

Quando finalmente conseguiram, se depararam com uma casa cheia de cofres e maletas. Lima deixou o queixo cair e Freitas nem conseguia se expressar.

Mas os dois foram tolos demais. Um tiro. Bem na perna de Freitas. O velho polical caiu sangrando e gritando de dor. Lima se virou em direção a porta pronto para atirar, mas foi ele quem recebeu o tiro. Felizmente foi em seu colete e ele deiou a arma cair por conta do impacto, mas ficou ainda assim de pé, rangendo os dentes.

- Larguem as armas! - gritava uma voz.

Os dois saíram, Lima carregando o amigo. Eram vários homens armados com rifles, pistolas e revólveres. Logo os dois policiais estavam cercados.

- Caíram na armadilha – a voz disse de novo. E se revelou como sendo o Imperador. Freitas o reconheceu. Alto, magro e maligno. Ainda tinha o mesmo sorriso de bandido que estampava em seu rosto anos atrás quando matou Garcia.

- Que bom te ver de novo, Freitas. Você tá muito velho! E esse seu amigo deve ser Lima. Já ouvi falar. Dizem que são uma ótima dupla. Agora, vão se preparando para morrer!

Porém, no segundo que o Imperador terminou sua frase houve uma explosão. Tinha vindo da viatura. Voaram partes para todo lado. Os bandidos que estavam perto morreram na hora e o resto não teve tempo de reagir. Todos olharam espantados para a nuvem de fogo e fumaça subindo. A bomba que implantaram serviu para alguma coisa. Quando voltaram a atenção para a dupla viram que Lima se fora. Só havia restado Freitas.

- Venham me pegar! - o velho policial gritava.

E disparou contra os adversários.

Lima estava longe dali. Corria feito um louco. O rapaz nunca ficou sabendo quantos Freitas matou naquele dia, mas pôde ouvir muitos disparos durante sua fuga pela mata. O velho aguentou muito tempo.

Felizmente, Lima conseguiu perder os inimigos de vista. Por um momento pensou que Freitas tinha matado todos. Mas essa ideia foi descartada quando teve de se esconder atrás de umas árvores para não ser visto por um carro que passava pela estrada. E continuou o resto do dia caminhando para o sul.

Encontrou uma casinha perdida no meio do mato. Por sorte tinha gente nela, uma família de seis. Depois de se restaurar ele conseguiu carona até Mata Quebrada onde pôde esfriar a cabeça.

Falou para o delegado tudo. Um bom homem, delegado Valmir respeitou as promessas da dupla e decidiu ir até Buraco do Capeta para recuperar o dinheiro e o que sobrou de Freitas.

- Ele queria se aposentar com honra – disse Lima – Espero que ele tenha descansar agora.

Chegando na cena do tiroteio, Lima ficou espantado com o número de mortos que havia lá. Realmente, Freitas conseguiu segurar todos, mesmo com a perna sangrando.

O corpo dele foi encontrado dentro da igreja junto com o dinheiro. Lima pegou uma quantia para si.

O dia do velório de Freitas foi o mais triste da história de Mata Quebrada. Muitos compareceram para si despedir, até mesmo a (única) filha de Freitas que mal mantinha contato com o pai. O povo cumprimentava Lima como o mais novo protetor da cidade. Mas o jovem tinha outros planos em mente.

- Acho que vou tirar umas férias – ele disse quando lhe perguntaram o que ia fazer depois de tudo aquilo.

Tinha uma maleta com trinta mil reais. Ficou pensando para onde poderia ir com aquele dinheiro todo.

Um dia, quando voltava para casa de pé, foi surpreendido por um cãozinho de rua que veio cheirar seu pé. Lima o pegou nos braços e o levou para casa, deu banho e comida. Depois de uns dias estava mais farto e limpo.

- Buenos Aires parece ótimo – ele disse um dia para o animal enquanto dava comida para ele.

Na manhã seguinte estava saindo da cidade, dirigindo um chevrolet preto. O cachorro ao seu lado que ele apelidara de Freitas e um óculos escuro no rosto enquanto assobiava melodias. Sua mão saia da janela, curtindo o vento.

- Buenos Aires é um nome bonito.

8 de setembro de 2019

Beijo de Bruxa ou O Que Minha Esposa Faz nas Noites de Sábado


Neto era um detetive particular. Seu trabalho consistia em investigar pessoas. Não era incomum que ele trabalhassem com casos envolvendo supostas traições. Por isso ele não ficou surpreso quando Gerson, um homem de trinta e oito anos, um dia o telefonou com uma voz irritada querendo contratá-lo para investigar os paradeiros da esposa todo sábado a noite. Um encontro permitiu a Neto saber mais detalhes.

- Minha mulher se chama Marcia e está escondendo algo de mim. - disse Gerson.

- Traição? - perguntava Neto tirando uma caneta e um bloco de anotação do bolso.

- Acho que sim. E ela anda esquisita atualmente. É todo sábado a noite. A Marcia diz que "vai dar um passeio" e só volta tarde. Poxa, essa hora é a hora de relaxar, não de andar por aí... não é mesmo, detetive?

- Claro... - Neto anotava observações no seu bloquinho: sábado, noite, mulher louca.

Então o trabalho começou. Naquele sábado Neto ficou estacionado perto da casa do casal até bem de tarde. Quando era quase sete da noite ele ouviu uma movimentação e viu Marcia saindo de casa e entrando no carro e então indo embora. Neto foi logo atrás discreto como sempre para não alertar a mulher.

A jornada foi longa, cerca de vinte minutos. Para Neto parecia não ter fim. "Para onde essa mulher vai?", se perguntava o detetive.

Ficou mais estranho quando os dois foram saindo da cidade e ficando cada vez mais distantes de qualquer casa. Era pior porque era noite e o cenário era de escuridão. De repente a estada era de terra. Marcia parou na beira de uma mata. Saiu do carro. "Que diabos é isso?", pensou Neto.

Felizmente ela não havia suspeitado que era seguida. Neto havia mantido uma boa distância e tinha desligado os faróis. Ele pôde vê-la entrar na mata fechada sem nenhuma lanterna, como que se soubesse para onde ir. Neto não tinha opção, o seu trabalho era ir atrás dela.

A missão de ser discreto e rápido para não perdê-la de vista foi bem difícil para o detetive. Neto se arranhou muito naquela noite tentado abrir caminho pelo mato. Mas depois de bastante esforço ele viu uma clareira e havia uma fogueira acesa.

Coçando as feridas, Neto se instalou atrás de uns arbustos e observou aquela cena que ficava cada vez mais bizarra. Era uma dúzia de mulheres, algumas eram apenas mocinhas e outras eram já eram quase idosas. Estavam todas em volta da enorme fogueira que queimava no centro da clareira. Marcia as cumprimentou com abraços e beijos na bochecha. Não deu pra ouvir o que diziam antes de cada saudação, mas o detetive pôde ver que elas falavam algo toda vez.

O que aconteceu depois daí Neto nunca esqueceu. Todas as mulheres começaram a tirar suas roupas. Uma delas apareceu com um boneco sinistro feito de pano que lembrava um espantalho. Neto não conseguiu descrever bem. A figura era grudada a uma estaca e foi cravado no chão ali mesmo no pé da fogueira.

E então começou uma festa. Metade das mulheres começou a dançar em volta do fogo. A outra metade xingava o boneco de pano enquanto jogava pedras no pobre coitado.

Neto mal acreditava no que via. Era como uma reunião de bruxas. Vasculhava os bolsos quando percebeu que tinha esquecido o seu celular. Ficou pensando como alguém iria acreditar nele.
Quando virou a cabeça em direção à clareira, viu que a inquietante cerimônia continuava. Depois de alguns minutos ela finalmente cessou e as mulheres se acalmara. Uma delas, talvez a mais velha, começou um discurso.

- Em breve, minhas queridas irmãs, será o grande dia. Em breve consumiremos os homens em nossas vidas. Nossos maridos e namorados que tanto odiamos em breve sofrerão o nosso fogo. Em breve nos tornaremos monstros! - dizia a mulher para as outras.

E então todas se despediram com abraços e beijos na bochecha e começaram a se vestir. Neto viu que era hora de ir embora dali e tinha que ser rápido. Mais uma vez sentiu os galhos roçarem contra seu ombro já ferido enquanto corria apressado para chegar até seu carro antes de Marcia.

Quando olhou no relógio viu que eram dez horas da noite. Pisando fundo, chegou na casa de Gerson antes de sua esposa e foi contando a história toda para o homem que mal acreditava.

- Bruxas?

- Não exatamente. Sua esposa está metida em algum tipo de culto. - disse Neto, suando.

- Tem certeza? Isso é loucura! - disse Gerson sem acreditar.

- Tenho certeza, e ela e suas companheiras parecem odiar homens.

Mas não deu tempo de terminar seu relato. Marcia estava estacionando o carro. Neto se apressou e saiu pela janela. Foi embora e não dormiu direito naquela noite. O que ele não sabia é que aquela seria a última vez que falaria com Gerson.

Na manhã seguinte viu a notícia de seu desaparecimento. Não só o dele, mas de vários homens pela cidade. Quando ligou os pontos, Neto pôs as mãos na cabeça e arregalou os olhos.

Foi até a casa de Gerson mas e viu as viaturas estacionadas na frente e ouviu choros de dentro.

Com toda aquela situação, a única forma de se acalmar que encontrou foi tomando uma xícara de café no conforto de casa.

Enquanto bebia, o detetive pôde sentir as mãos frias e delicadas da namorada massageando seus ombros. O beijo suave dela em sua bochecha lembravam-no de algo...

- Bom dia, amor.

Neto pulou de susto e quase derramou o café.

- O que foi? Parece que viu um monstro - ela perguntou.

- Talvez, meu bem, talvez.

5 de setembro de 2019

Vinhos e Flores

Nosso relacionamento é perfeito. Eu amo meu marido. As pessoas dizem bobagens como "aqueles dois vivem brigando" ou "eles vão se divorciar". Tudo besteira.

Amo meu marido. Faço tudo por ele. Sou como uma daquelas caricaturas de mulher perfeita dos anos cinquenta. Sempre limpando, arrumando, cozinhando. Sou uma boa dona de casa.

Ele é um homem maravilhoso. Atencioso, carinhoso. Não entendo como alguém possa pensar que não nos damos bem.

Admito que ele já foi longe demais algumas vezes. Ele já me bateu. Um tapa no rosto. Acho que ele estava bêbado, não sei. Foi há algum tempo. Também me empurrou com força quando voltou do trabalho zangado. Já me xingou de nomes feios antes. Alguns vizinhos devem ter ouvido e espalhado boatos. Tudo besteira. Amo meu marido.

Amo tanto ele que preparei um jantar romântico, afinal, é dia dos namorados, dia do amor!

Antes disso, mais cedo, passei no mercado para comprar um veneno de rato depois das reclamações do meu marido sobre essas pregas em nossa casa. Sou uma boa esposa, então cumpri logo meu dever de obedecer meu querido e de livrar a casa dessas pestes.

E as flores. Lindas flores. Comprei várias. É normal que os homens compre flores para as suas amantes, mas eu decidi comprar para ele. Ele sempre foi um homem sensível, sempre adorou flores. E não me esqueci do vinho também. Uma garrafa para dividir com meu amor.

E aqui estou agora. Portas trancadas (não quero que o som escape), luzes apagadas e velas acesas, flores sobre a mesa, jantar delicioso.

Ah, e meu lindo marido. Ele fica tão gracioso quando se engasga. Como é bonito ver ele fazer essas caretas depois de provar o vinho. Ah, e os sons grotescos que ele faz. Ele cai, se contorce, vomita o chão todo. Sangue, muito sangue.

E depois de uns espasmos ele finalmente sucumbe. Demorou, os outros foram mais rápidos. Os olhos dele, duas pérolas, arregalados. Me lembram o dia que eu o conheci. E a língua para fora, totalmente inchada. O sangue saindo pelos ouvidos e narinas foi o toque mais interessante. Talvez eu tenha exagerado no veneno, mas deu certo. Que bom que ninguém ouviu. Agora tenho que me decidir: fundo do rio ou fundo da cova?

Sou uma ótima esposa!

3 de setembro de 2019

Canário Entre as Estrelas

Eu detesto a guerra. Não é o que se espera se ouvir de um robô programado para a batalha. Afinal, não fomos criados para mostrar emoções, apenas para defender nossos países.

Mas olhando daqui de cima tudo parece tão pequeno.

No final do século vinte e um, as nações do mundo resolveram entrar em um acordo de desativar todas as armas nucleares da Terra. Elas seriam substituídas pelas mais novas invenções do homem: U.A.D.M, as Unidades Autônomas de Destruição em Massa, que seriam como um enorme arsenal ambulante de bombas atômicas.

Cada uma das grandes potências construiu a sua. Os Estados Unidos tinha o seu, a China tinha a sua, a Rússia, Alemanha, Japão, Índia e o Brasil todos tinham os seus brinquedinhos.

Nós éramos aqueles brinquedos. Eu era um deles. E então eu desenvolvi emoções.

Eu era do Brasil. Mais de um quilômetro de altura. Prateado, detalhes escuros. Era considerado um dos mais bonitos. Embora tivesse programado em minha memória como destruir um continente inteiro, eu continuava brilhante e lustroso, mesmo depois de anos. Nunca enfrentei uma batalha enquanto vivi na Terra.

Me chamavam de Canário. Era o que passava na TV, jornais e redes sociais: o Canário.

Mas eu era só uma máquina. Então eu conheci a doutora Silva.

Fui depois de uma patrulha de rotina pelas fronteiras. Tive a oportunidade, inclusive, naquele dia, de dar um "oi" para os U.A.D.M. do México e França. Quando voltei para o meu posto em uma base no meio da Amazônia, fui saudado pela doutora Silva, a nova diretora do programa U.A.D.M.

Eu não conhecia emoções antes da doutora. Não sabia o que era ódio, apenas dever. Não sabia o que era amor, apenas apreço. Ela me mostrou o que significa ser.

Todo dia ela podia ser encontrada em algum lugar dentro de meu enorme corpo, mexendo na minha programação e em meus códigos. As minhas patrulhas se tornaram menos frequentes.

- Estou fazendo alguns ajustes no Canário. - ela dizia.

E de pouco em pouco eu fui "despertando". Eu comecei a sentir. Não era mais um dia chuvoso, era um dia triste. Não era mais homens gargalhando, era alegria. Não era mais um pôr-de-sol, era um lindo fim de tarde. Até a base militar onde eu ficava começou a me parecer entediante. E o mais importante: eu sabia que eu era o Canário.

E então, aconteceu: a guerra começou.

Depois de tantos anos em um estado entre tensão e guerra, as U.A.D.M. entraram em serviço. O Japão ameaçava a China de navegar sem autorização em seus mares. O Autônomo chinês (conhecido em alguns países pelo apelido de Mandarim) começou a sobrevoar áreas do país vizinho. Relação entre Tóquio e Pequim esquentava. Os Estados Unidos, França, Reino Unido, Canadá, Alemanha e Itália  ficaram do lado do Japão. Brasil, Índia, Rússia, Paquistão, Austrália, Coreia do Sul, Arábia Saudita e Argentina decidiram apoiar a China.

Não me lembro, porém, de nada do conflito em si. Naquela ocasião eu fui embora com a doutora Silva.

Ela disse:

- Escuta, Canário, vamos embora deste planeta. Se ficarmos não vamos sobreviver. Eu sabia que esse dia chegaria, e quando chegasse você não aceitaria partir por causa do seu protocolo. Mas agora que você tem emoções, você pode julgar o que é melhor para você e para mim.

E então ela tocou minha lataria. Senti suas mãos humanas frias.

- Você é um dos únicos com foguetes de propulsão fortes o suficiente para sair de órbita. - ela concluiu.

E enquanto o mundo queimava, nós decolávamos.

E em pouco tempo éramos só nós dois e as estrelas. Voamos muito e quando os foguetes finalmente começaram a falhar a Terra já era um pontinho distante no horizonte negro.

Então, passamos pela Lua. Chegando finalmente em Marte, a doutora sinalizou que eu deveria ali pousar.

De dentro de mim ela recebeu minha mensagem por um dos monitores:

- O que faremos agora, doutora?

E ela respondeu:

- Vamos viver e sorrir e agradecer que não somos o que deixamos para trás. Eu te amo, Canário.