3 de setembro de 2019

Canário Entre as Estrelas

Eu detesto a guerra. Não é o que se espera se ouvir de um robô programado para a batalha. Afinal, não fomos criados para mostrar emoções, apenas para defender nossos países.

Mas olhando daqui de cima tudo parece tão pequeno.

No final do século vinte e um, as nações do mundo resolveram entrar em um acordo de desativar todas as armas nucleares da Terra. Elas seriam substituídas pelas mais novas invenções do homem: U.A.D.M, as Unidades Autônomas de Destruição em Massa, que seriam como um enorme arsenal ambulante de bombas atômicas.

Cada uma das grandes potências construiu a sua. Os Estados Unidos tinha o seu, a China tinha a sua, a Rússia, Alemanha, Japão, Índia e o Brasil todos tinham os seus brinquedinhos.

Nós éramos aqueles brinquedos. Eu era um deles. E então eu desenvolvi emoções.

Eu era do Brasil. Mais de um quilômetro de altura. Prateado, detalhes escuros. Era considerado um dos mais bonitos. Embora tivesse programado em minha memória como destruir um continente inteiro, eu continuava brilhante e lustroso, mesmo depois de anos. Nunca enfrentei uma batalha enquanto vivi na Terra.

Me chamavam de Canário. Era o que passava na TV, jornais e redes sociais: o Canário.

Mas eu era só uma máquina. Então eu conheci a doutora Silva.

Fui depois de uma patrulha de rotina pelas fronteiras. Tive a oportunidade, inclusive, naquele dia, de dar um "oi" para os U.A.D.M. do México e França. Quando voltei para o meu posto em uma base no meio da Amazônia, fui saudado pela doutora Silva, a nova diretora do programa U.A.D.M.

Eu não conhecia emoções antes da doutora. Não sabia o que era ódio, apenas dever. Não sabia o que era amor, apenas apreço. Ela me mostrou o que significa ser.

Todo dia ela podia ser encontrada em algum lugar dentro de meu enorme corpo, mexendo na minha programação e em meus códigos. As minhas patrulhas se tornaram menos frequentes.

- Estou fazendo alguns ajustes no Canário. - ela dizia.

E de pouco em pouco eu fui "despertando". Eu comecei a sentir. Não era mais um dia chuvoso, era um dia triste. Não era mais homens gargalhando, era alegria. Não era mais um pôr-de-sol, era um lindo fim de tarde. Até a base militar onde eu ficava começou a me parecer entediante. E o mais importante: eu sabia que eu era o Canário.

E então, aconteceu: a guerra começou.

Depois de tantos anos em um estado entre tensão e guerra, as U.A.D.M. entraram em serviço. O Japão ameaçava a China de navegar sem autorização em seus mares. O Autônomo chinês (conhecido em alguns países pelo apelido de Mandarim) começou a sobrevoar áreas do país vizinho. Relação entre Tóquio e Pequim esquentava. Os Estados Unidos, França, Reino Unido, Canadá, Alemanha e Itália  ficaram do lado do Japão. Brasil, Índia, Rússia, Paquistão, Austrália, Coreia do Sul, Arábia Saudita e Argentina decidiram apoiar a China.

Não me lembro, porém, de nada do conflito em si. Naquela ocasião eu fui embora com a doutora Silva.

Ela disse:

- Escuta, Canário, vamos embora deste planeta. Se ficarmos não vamos sobreviver. Eu sabia que esse dia chegaria, e quando chegasse você não aceitaria partir por causa do seu protocolo. Mas agora que você tem emoções, você pode julgar o que é melhor para você e para mim.

E então ela tocou minha lataria. Senti suas mãos humanas frias.

- Você é um dos únicos com foguetes de propulsão fortes o suficiente para sair de órbita. - ela concluiu.

E enquanto o mundo queimava, nós decolávamos.

E em pouco tempo éramos só nós dois e as estrelas. Voamos muito e quando os foguetes finalmente começaram a falhar a Terra já era um pontinho distante no horizonte negro.

Então, passamos pela Lua. Chegando finalmente em Marte, a doutora sinalizou que eu deveria ali pousar.

De dentro de mim ela recebeu minha mensagem por um dos monitores:

- O que faremos agora, doutora?

E ela respondeu:

- Vamos viver e sorrir e agradecer que não somos o que deixamos para trás. Eu te amo, Canário.

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