Este é um tanto que pesado, nossa. Nem eu pensei que ficaria desse jeito! Mas ficou ótimo, nos meus padrões.
I: O Bar
O cansado homem de meia-idade arrumava seus redondos óculos enquanto fitava a sua vodka, azeda só de olhar.
- Vai querer mais, cara? - disse o barman.
- Sim, por favor.
- Nossa, vodka é uma negócio forte. Tem certeza?
- Eu estou pagando, irmão. Vai fundo.
A bebida corria por sua garganta, ardendo, queimando, quase corroendo. Naquele bar em ruínas, apenas ele e um bando de mulheres extrovertidas e um homem interesseiro. O ar do recinto se enchia de um vocabulário corrido, estressante.
- Ei, barman! - disse o homem.
- O que foi?
- Tu sabe misturar bebidas?
- Eu te adoro, cara! - riu o atendente.
***
Do lado de foro do bar, um carro de aparência sinistra estacionava. Era escuro, ainda mais do que a escuridão que o envolvia naquela noite.
- Chegamos, amor. - disse o rapaz pálido que dirigia o veículo.
- O que tem de tão bom aqui, Gustavo? - a jovem perguntava.
- Ah, eu gosto desse barzinho. É de um amigo meu. Sempre veio pra cá para dar uma relaxada.
- Tá, tá bom. Vamos entrar. Mas se for chato eu vou embora e tu me leva pra casa!
O jovem casal, um tanto que punk e um tanto que gótico, logo entrou no estabelecimento quadrado, perdido ali na beira da estrada. Uma música lenta e antiga tocava, mulheres vomitavam suas bobagens para um tolo no canto e um homem fazia caretas no balcão.
- Viu? Calmo. - disse Gustavo.
- É, melhor que sua casa. - a garota respondeu com um sorriso.
O barman, ao vê-los, pensou "ah, jovens" e trocou a música rapidamente por algo mais do mais frenético: rock europeu.
- Eaí, Gustavo. Tudo bem? - disse o atendente.
- Fala. Essa aqui é minha namorada, Ana.
- Eu não sabia que tu tinha namorada.
- Acha que eu sou viado? - e riram.
Sentados no balcão, os dois ficaram um bom tempo falando tudo sobre o nada. Beberam todo o tipo de coisa que o barman conseguia alcançar. No final, estavam um tanto que bêbados. Mas ainda podiam contar os dedos e enxergar.
- Ei, amigo! - disse Gustavo.
- O que? - se virou o barman.
- Quem é aquele?
Apontou reto para o homem sentado à direita deles. Era baixo, calvo e usava óculos. Estava bebendo algo muito forte, a julgar pelas suas expressões.
- É o Freund.
- Que?
- Freund, esse é o nome dele.
O homem olhou de volta.
- Teu nome é Freud? - perguntou Gustavo.
- Que nome de merda. - Ana ria enquanto molhava os lábios com alguma outra porcaria.
- Meu nome é Freud, sim. É alemão. Quer dizer "amigo". - disse Freund, admirando seu copo seco.
Agora chovia lá fora e mesmo com a música tocando, havia um certo silêncio melancólico. Ana e Gustavo se aproximavam de Freund, com interesse no quieto homem.
- Tu parece triste, cara. O que houve? Tua namorada te fodeu? - perguntou Ana.
- Não.
- Foi demitido?
- Não.
- Então?
- Hoje foi um dia como qualquer outro, mas por algum motivo eu estou mais triste do que nunca.
Enquanto as mulheres e o senhor deixavam o bar, Freund pedia mais uma dose. Trovões quebravam nos céus. A chuva se intensificava.
- O que tu faz da vida? - disse Gustavo.
- Sou cinegrafista.
- Sério? Legal. Você trabalha na tevê? - disse Ana.
- Trabalho para uma produtora de filmes pornô.
- Você é...?
- Cameraman de filme pornô.
O casal se desmoronou em risadas.
- Isso é ainda mais bacana! - riu Gustavo.
- Por que tu tá triste então, Freund? - perguntou Ana.
- Por que eu percebi hoje que meu trabalho consiste em filmar pessoas fazendo sexo.
- E...?
- E eu nunca fiz sexo.
- Quantos anos você tem? - perguntou Gustavo.
- Trinta e oito.
A chuva diminuiu e os trovões eram agora distantes. Freund olhava para baixo, olhar vazio.
- Cara, que louco. - disse Gustavo.
- É, muito estranho. Eu não era mais virgem com 16. - disse Ana.
- Eu tive uma ideia. - Gustavo se alegrou. - Que tal se o Freund filmasse a gente? Poderíamos ter nosso próprio pornô.
- Ah, boa ideia, amor.
- O que eu ganho?
- Poderíamos chamar uma vadia pra tu. Assim ambos ganham. Temos nosso filme e você perde sua virgindade. Vamos lá.
Freund pôs as ultimas gotas do álcool venenoso goela abaixo, limpando seus lábios e deixando o dinheiro rasgado sobre aquele balcão sórdido. Levantou sua cabeça como se a bebida tivesse dado-o poderes.
- Muito bem, fazer o que?
II: Ação.
O casal tirava suas roupas enquanto Freund arrumava a câmera, sempre usada por ele para filmar seus filmes. O quarto apertado do condomínio cheirava a sujeira e comida podre, mas isso não impedia a excitação dos dois.
- Já podem começar. - disse o cinegrafista.
- Calma, homem. Ainda nem coloquei a camisinha. - respondeu Gustavo.
- Rápido.
- Temos toda a noite, Freund. Se lembra que eu chamei a garota e ela vai vir daqui à uma hora.
- Bora, caralho. Põe essa merda aí. - disse Ana.
Assim que o preservativo foi colocado, a luz vermelha da câmera começou a piscar como o olho de uma fera maligna.
A ação começou e os dois, Ana e Gustavo, laçavam-se em amassos e beijos. Freund suava e tremia. O cinegrafista mudava os ângulos, levantava a câmera, abaixava ela e dava zooms constantes como se não houvesse a posição perfeita.
Uma chama interior dominava Freund. A maldita chama que sempre dominou-o, que ele odiava. A sensação de inveja e fraqueza. A inquietude. Fome.
Enquanto o casal movimentava a cama decrépita, Freund movia-se lentamente até a cômoda no canto. Ele abre a gaveta enquanto filma a distração do casal. Um olho na câmera e outro na gaveta, tirando um objeto de dentro.
Uma faca.
Aguçada, lustrosa. Do tipo que se usa para cortar a carne mais dura e espessa, seja de animal ou de homem. Freund pôde até ver seu reflexo na lâmina, com seu sorriso tristonho e apavorante.
Ele esperou o orgasmo de Gustavo para jogar sua câmera no chão, ainda gravando, e jogar-se com fúria para cima de seu "elenco".
Gritos. Gritos e sangue. A cama se tingiu de vermelho. O abdômen de Ana totalmente furado jorrava suas vísceras. A cabeça de Gustavo estava segurada por um pedaço de carne, outra vez seu pescoço.
Os dois mortos. Freund conseguiu o que queria, a sua vingança sem sentido. Mas ainda havia muito a ser feito naquela tenebrosa noite.
III: A Prostituta
Freund ainda assistiu seu filme pelo menos sete vezes antes de tomar um banho e se limpar de todo o sangue de suas vítimas. Depois ele ainda limpou o chão, trocou o colchão da cama e se livrou dos corpos enterrando-os no quintal. Tudo em menos de duas horas.
A garota de programa, que Freund sabia que se chamava "Susan" (um nome que Freund odiou), estava chegando em alguns minutos. O câmeraman, setando em sua poltrona, meditava olhando fixo para seu piso sujo. Havia até trocado de roupa, para parecer mais elegante para a prostituta. Mas seu rosto continuava o mesmo. O rosto de Freund Lemos, o cara virgem que filmava pornografia.
Alguém bateu à porta.
- Entra!
Era uma mulher alta, negra e de cabelo cacheados. Vestia-se de azul, em um vestido apertado, curto e provocante.
- Você é o cara com nome engraçado? - ela perguntou.
- Sou Freund.
- Que nome horrível.
- Eu sei.
***
Freund estava jogando em sua cama, como um pano velho e inútil. Ainda estava vestido e parecia não ter vontade de tirar as roupas.
Susan apareceu saindo do banheiro, nua e de passos longos. Se lançou à cama, tremendo todo o cômodo. Começou carícias em Freund, que não se alegrava tanto.
- Vamos, Freund, tire suas roupas.
- Não consigo. - ele respondeu.
- Como não?
- Simplesmente não consigo.
- Ah, mas assim a gente não chega à lugar nenhum. Você me chamou aqui por um motivo. Onde estão seus amigos?
- Foram embora. Eu não gostava deles.
- Você quer que eu vá embora?
- Não. Fique.
- Então, eu posso tirar suas roupas?
- Sim, faça isso logo.
À medida que Susan abria o zíper e tirava as calças de Freund, este desabava-se em suor. Ele tremia, tinha pesadelos em sua cabeça. Ela era um monstro, e ele era um rei em seu castelo. Não aguentou que Susan tocasse-o.
- AAAHH!!! - Freund gritou.
- O que foi, caralho?
- E-eu, não consigo. N-não consigo.
- Por que?
- É que eu não te contei. Eu sou virgem e tenho quase quarenta anos. Eu gravo filmes pornôs há 12 anos. Não tenho filhos, nem mulher e nenhuma família.
- Calma, garoto. Vai ficar tudo bem.
- Não vai!
- Vai sim. Só relaxa e deixa eu fazer tudo.
- Não. Eu preciso ir no banheiro. Eu tenho que ir.
- Ah, tá. Mas não demora.
O espelho quebrado do banheiro de Freund refletia a imagem daquela aberração, uma perfeita aberração. Era maravilhosamente horrível, perfeitamente feio. Mas ele sabia que ainda precisaria sair daquele maldito banheiro com uma boa ideia para não matar ninguém, pois até os piores monstros precisam controlar si mesmos.
- Eu tive uma ideia. - disse Freund saindo do banheiro. - Vamos usar nossa câmera. Filmamos nossa transa, assim fica mais fácil pra mim.
- Tem certeza?
- Sim. Basta colocar no tripé.
- Tá bom.
***
As nuvens de fumaça criavam formas diversas no teto da casa, como se fosse nuvens. Freund as contemplava de baixo, na sua cama ao lado de uma prostituta fumante.
Um homem realizado, um homem feito. Eles esperou anos por isso. Agora não era mais virgem.
- Como você nunca tinha feito isso antes? - perguntou Susan.
- Está surpresa?
- Curiosa.
- Bem, eu acho que o problema nunca foi comigo, mas com os outros. Foi assim que eu sempre vi.
- Sei.
Freund se levantou, espantando a fumaça do cigarro com a mão. Encheu dois copos com uma cerveja bem escura, parecia até urina de um doente, e ofereceu-a à Susan, que aceitou sem hesitar a bebida imunda.
- Quanto anos você tem, Susan? - perguntou Freund.
- Quer mesmo saber?
- Por que não?
- Vinte e cinco.
- Ah, interessante. E pretende ser uma puta para o resto da vida?
- Quando eu era mais nova eu queria ser médica.
- Está longe disso.
- É.
O silêncio de sempre se instaurou. Apenas os grilos foram ouvidos por um tempo, tornando-se poetas. Susan e Freund beberam juntos, naquela noite fria e estranha.
- E você, o que queria ser? - disse Susan entre lábios molhados.
- Eu nunca quis ser nada.
- Sério?
- É. Meu pai nunca me incentivou.
- E sua mãe?
- Ela morreu quando eu tinha dois anos.
Mais um gole.
- Meu pai se casou muitas outras vezes, mas nenhuma madrasta se importou comigo.
- Que merda.
- É.
- Mas como virou cameraman?
- Um amigo meu disse que estavam procurando um cameraman. No início eu não sabia que era pra gravar putaria. Pagavam e ainda pagam bem, então fiquei com o emprego.
Outro gole.
- Quer saber de uma coisa? - disse Freund, se levantando. - Cansei. Cansei dessa merda toda.
- O que, porra?
- Cansei de viver. É uma porra. Isso acaba hoje, aqui.
Um ultimo gole, profundo. Lágrimas.
- Susan, você foi a única mulher que já amei, mesmo não amando. Obrigado.
- Do que você tá falando?
- Eu gravei tudo na câmera. Está tudo lá. É minha obra final, meu legado.
- Você tá me assustando, caralho.
- Eu sei, mas não se assuste. Acabou pra você também. Eu bebi mais do veneno, mas você também bebeu.
- Que? Que veneno é.... peraí, você colocou o que nessa bebida, porra?
Espasmos, gritos de dor. Freund leva as mãos ao estômago enquanto geme. Ele desaba, agonizando.
Susan corre para a porta, mas antes de chegar lá ela também desmorona. Vômito. Mais sangue, saindo do nariz e até dos ouvidos. Morta.
Freund ainda teve tempo de olhar para o cadáver da prostituta e pensar o quão bom foi sua primeira e ultima noite ao lado de alguém como ela.
Tudo gravado. O melhor filme pornográfico de todos.
FIM