Algumas pessoas não são o
que aparentam ser. Eu posso dizer isso com toda a certeza.
Eu morei há alguns anos em
um condomínio na capital. Era apertado, um tanto que velho, mas era
decente. No dia em que me mudei para o lugar, recordo-me que a pessoa
que me deu as boas-vindas mais calorosas foi Dona Rosa. Era uma
mulher de uns sessenta, viúva há algum tempo. Simpática como um
anjo, gostava de me convidar para a sua casa para tomar café e
conversar um pouco. Eu me sentia bastante confortável em sua
presença, ela me tratava como se eu fosse sua filha, e eu estava
perfeitamente satisfeita com esse relacionamento.
Pobre Dona Rosa, afinal,
seus dois filhos moravam em outro estado e ela teve que morar só,
vivendo da pensão do esposo falecido. Seu companheiro era Félix, o
cão que latia muito. Muitos vezes seu latido incomodava os
vizinhos que viviam dizendo para Dona Rosa se livrar do animal. Outra
companhia para Dona Rosa era Lulu, uma cadela sua. Ela aparentemente
nunca saía do apartamento e de vez em quando a ouvíamos latir um
latido muito estranho, não parecia um cachorro.
Mas enfim, apesar de toda a
cachorrada, nos tornamos boas amigas. Um dia, porém, tudo mudou.
Eu
voltava do expediente e me deparei com Bruno, meu namorado, me
esperando em casa (ele tinha as chaves). Naquela ocasião, Félix
estava latindo como nunca e Bruno, já farto, veio falar comigo sobre
o barulho. Mas eu ignorei, mandei ele esquecer aquilo.
Mas naquela noite, Dona Rosa
veio me procurar.
- Boa noite, vizinha. Vamos
tomar um chá comigo? A novela já vai começar – Dona Rosa disse,
sorridente.
Já tínhamos feito aquilo
várias vezes e eu gostava de fazer companhia a Dona Rosa, o que era
benéfico para nós duas pois eu também me achava solitária algumas
vezes. Naquela noite, porém, o que eu queria mesmo era passar um
tempo com o Bruno já que não nos víamos fazia uma semana.
Planejávamos ver um filme. Mas apesar de meu comprometimento com
Bruno, eu não queria deixar Dona Rosa só, já tínhamos criado um
vínculo muito especial.
Assim, me despedi de Bruno,
irritado com minha decisão, e fui visitar Dona Rosa.
Quando entrei em sua casa,
Dona Rosa foi logo trancando a porta da maneira mais sútil que pôde,
mas mesmo assim eu notei e a indaguei sobre aquilo, mas a senhora
nada respondeu.
A televisão estava ligada e
Dona Rosa foi à cozinha, voltando com uma bandeja de biscoitos e uma
xícara de café. Era a mesma bandejinha de sempre a mesma xícara
com um desenho de flor. Até aí era só mais uma visita amigável à
minha vizinha, mas então eu comecei a me tocar.
Depois de me entregar os
lanches, a senhora retirou-se para os fundos onde ficou por um bom
tempo. Ouvi barulhos vindos de outro cômodo, possivelmente seu
quarto. Durante toda a nossa amizade, nunca havia me aventurado além
da sala de estar, me limitando ao conforto de seu pequeno sofá. O
primeiro sinal de que havia algo de errado eram justamente os
barulhos que eu passei a ouvir. Era como se alguém estivesse mexendo
em correntes de ferro. Pensei nos seus cachorros, uma explicação
plausível. Aí então eu olhei para a porta e me lembrei que ela
havia a fechado na chave.
Eu segurava um biscoito
nesse momento, mas não cheguei a mordê-lo. Olhei para ele com um
rosto de quem não queria acreditar estar em perigo. Por sorte eu
havia trazido o meu celular e pude mandar uma mensagem para Bruno:
VEM CÁ, RÁPIDO!
Fui me levantando e disse
"Obrigada, Dona Rosa, mas eu tenho que ir!". Tive como
resposta uma risada sinistra da velhinha.
- Mas está tão cedo... -
ela disse.
Dona Rosa apareceu vindo do
seu quarto. Vinha segurando uma corrente e uma coleira. O sorriso em
seu rosto era o que se esperaria ver estampado na cara de um
psicopata. Eu me virei, desesperada, e tentei pateticamente abrir a
porta, mas a maldita estava fechada. Antes de poder gritar por
socorro, Rosa me atacou pelas costas, me enforcando com sua corrente.
Fui arrastada como um animal pelo chão de sua casa, eu nem conseguia
gritar de tão sufocada. Sempre fui pequena, mas mesmo assim fiquei
impressionada com a força de Dona Rosa.
Fui levada ao seu quarto, um
lugar escuro e imundo. Dona Rosa havia me soltado e eu estava jogada
ali no assoalho, tão enfraquecida pelos ferimentos que nem tentava lutar para escapar. Minha garganta doía, meu pescoço sangrava e eu
tinha dificuldades para respirar.
A velha ria maliciosamente.
- Se tivesse comido os
biscoitos já estaria quietinha – ela disse.
Em seu quarto estava Félix,
seu cão barulhento. Mas o mais horrorizante que descobri ali foi o
outro mascote de Dona Rosa. A cadela Lulu, que tinha se escondido
debaixo da cama de sua dona, saiu de seu esconderijo ao chamado da
senhora.
Era grotesco. Uma mulher de
uns vinte e tantos anos, totalmente nua, corpo cheio de feridas,
andando de quatro. Aquela era Lulu, a responsável por latidos tão
estranhos, o animal de estimação que nunca saia do apartamento.
Foi nesse momento que eu
ouvi batidas na porta. Era Bruno, que a chutou até derrubá-la e
veio até o quarto de Dona Rosa. No primeiro instante ele quase
vomitou ao ver a cena e foi então agredido por Dona Rosa, que
primeiramente jogou spray de pimenta em seu rosto e então começou a
batê-lo com um porrete. Porém, foi parada pelo síndico do prédio
que havia sido chamado por Bruno.
A polícia foi chamada imediatamente e não só o condomínio, mas o bairro inteiro parou e então a cidade ficou sabendo dos horrores que ocorreram quando uma equipe de reportagem chegou ao local. Não entendi no momento e ainda não entendo o que pretendia Dona Rosa. Queria ela me aprisionar somente ou tinha planos para Bruno? Gosto de acreditar hoje em dia que a velha tinha sido dominada pela loucura.
Não demorou muitos dias
para que eu me mudasse do condomínio e fosse morar com Bruno. Eu
ainda tenho sequelas do acontecimento, as cicatrizes no meu pescoço.
Quanto a "Lulu",
apelido de Luciana, ela foi levada a um hospital psiquiátrico.
Nunca mais ouvi dela, mesmo depois de tantos anos. Sabe-se lá que
tipo de torturas psicológicas Dona Rosa infligiu na moça.
Aparentemente, Luciana tinha sido também vizinha de Dona Rosa anos
antes de tudo que tinha acontecido.
A velha tinha sido presa
onde provavelmente vai ficar pelo resto dos seus dias.
Bem que Bruno tinha me
avisado para não fazer muito amizade com vizinhos. Hoje em dia
estamos casados e moramos juntos, mas raramente fazemos visitas ao
que moram ao lado e nunca nem pensamos em adotar um cãozinho.
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