Nunca vou me esquecer do dia
em que testemunhei uma verdadeira guerra em minha sala de aula.
Isso foi há anos. Estávamos
ainda na segunda série e embora fossemos jovens, vislumbrávamos um
grande futuro pela nossa frente e, por conta disso, alguns de nós
éramos muito presunçosos. Eu era, porém, o mais calado e sentava
no fundão. Não era barulhento, nem estúpido, nem muito brilhante.
O estopim do conflito foi o
mais ridículo possível: um apontador. Tudo teve início durante a
aula de matemática do professor Gilberto. Uma das minhas colegas,
cujo nome não teve mais peso significante durante todo o resto do
conflito, emprestou seu apontador a Adão, o rapaz mais célebre da
sala (físico e intelectualmente) e um dos mais populares da escola.
Aconteceu a Carlos, quieto e
pensativo cabeça da turma, o seguinte: por que não são todos que
possuem um apontador? Tal indagação foi crescendo em sua mente até
chegar a uma conclusão clara de que todos na sala precisavam ter um
apontador. Ora, todos mereciam um. E não somente um apontador, ele
pensou. Era sabido a Carlos que Adão tinha em sua posse um estojo
carregado de uma variedade de canetas de diversas cores e tamanhos.
Nem todos na sala tinham uma caneta, um objeto raro que era
constantemente roubado ou perdido.
Pois acontece que eu era um
grande amigo de Carlos, éramos na verdade o melhor amigo um do
outro, não se socializando muito com os demais. Portanto, foi logo
contando-me do plano que tinha de uma "distribuição de
canetas" para todo o alunato. Não demorou para que
compartilhasse com o professor Gilberto suas mirabolâncias
políticas.
Posicionou-se, então, na
frente dos colegas e disse:
- A partir de hoje, todos
terão canetas! Àqueles que não possuírem uma, Adão providenciará
de seu estojo.
Adão protestou quando
confrontado com a possibilidade de uma violação de sua propriedade.
Inicialmente, a sala inteira estava contra a nova medida ou pelo
menos indiferente, a não ser eu, sempre fiel a meu amigo Carlos.
Porém, a situação estava prestes a mudar.
Com o fim do horário
aproximando-se, eu e Carlos nos isolamos no fundo. Juntos (ou melhor,
só ele, não fui mais que um observador e comentarista) bolamos um
manifesto a favor da igualdade entre os alunos de nossa sala.
Estávamos prontos para tomar medidas mais drásticas, uma revolução
começaria!
Entre as mudanças que
exigíamos: qualquer um teria direito de sentar-se onde bem entender,
todos com direito ao mesmo conjunto de materiais escolares e os
alunos não mais seriam explorados pelos professores. Basicamente,
todos passariam a dividir e nada mais de ficar depois do sinal bater.
Escrevemos ligeiramente os
princípios de nossa teoria política e grudamos na parede da sala.
Entretanto, pouco sabíamos
que tínhamos adversários tramando contra nossos planos. Adão e
seus colegas arquitetavam, ao mesmo tempo de nós, um manifesto
próprio com diferentes exigências. Com a ajuda de Cátia, enérgica
e estudiosa garota que tinha o hábito de sentar-se na frente,
chegaram a conclusão que o "coletivo" não existia e que
cada carteira que o aluno ocupasse seria sua propriedade individual
sagrada, assim como seus bens e que estes poderiam ser compartilhados
com quem bem entendessem, sem distribuições e oferecimentos
obrigatórios.
Assim foram postuladas as
duas distintas teorias que regeriam as políticas daquela sala nos
próximos minutos. Adão era o primeiro-ministro de seu estado, a
Frente da Sala. Carlos era o secretário-geral do Fundão, eu o seu
braço direito.
Com a sala dividida em dois
lados, teve início a guerra.
O primeiro ataque inimigo
veio na forma de uma bolinha de papel. Atirado por Dudu, piadista da
classe e aliado de Adão, o projétil acertou em cheio nosso
secretário-geral, bem na testa. Passamos minutos planejando um
contra-ataque, uma ofensiva eficaz como resposta contra aquele ataque
gratuito.
O sinal tocaria em cinco
minutos, precisávamos de uma rápida ação. Esta veio de Aline,
atenciosa estudante das aulas de ciências, que, como sempre foi
conhecida como uma garota impulsiva, tomou a iniciativa não só de
aplicar um tapa na nuca de Adão (que estava de costas para ela) como
também rasgar uma página de seu caderno, insulto que impressionou a
muitos de nós.
Depois desta ofensa, houve
uma verdadeira batalha de bolinhas de papel. Tivemos que montar uma
muralha com nossas carteiras. Não demorou para que Adão e seus
aliados tivessem que recorrer a uma, já que passamos a atirar nossas
próprias bolinhas. Algumas eram grande e pesadas, outras leves, mas
todas causavam enorme dor.
Não houve sequer uma baixa,
mas muitos mudaram de lado.
O primeiro foi Felipe.
Tornou-se desiludido com o governo de Adão e, inspirado pelos ideais
da fraternidade e igualdade, decidiu unir-se a nós. E então veio
para nosso lado Isabela, a garota por quem eu tinha há muito tempo
uma queda. Não consegui expressar a minha felicidade quando a vi
cruzando a sala e juntando-se ao nosso exército.
Assim como Felipe e Isabela,
muitos outros aderiram à nossa causa socialista e abandonaram a
tirânica e desigual ditadura de Adão. Ficou claro para eles que as
políticas liberais e capitalistas de Adão, apoiadas fortemente pelo
cínico Dudu, incentivavam o acúmulo de riquezas. E embora nosso
governo recebesse duras críticas por conta de seu suposto
autoritarismo e instabilidade comercial, ainda éramos a solução
para os persistentes problemas que assolavam a humanidade, a
libertação do proletariado!
Com aquele verdadeiro êxodo,
nossas forças tornaram-se maiores do que a do inimigo, um contraste
que evidenciou a vitória, mesmo a Adão e Dudu. E de fato eram
somente eles os restantes, dois generais derrotados presos em seu
castelo (um muro de carteiras amontoadas).
Eu, Carlos, fui testemunha
não só da guerra ideológica e do conflito de bolinhas de papel, mas
também de uma quase rendição do inimigo. Vi Adão se levantar,
como se já tivesse um discurso feito. Era a derrota final, o fim do
inimigo, a destruição do demônio político e a implantação
definitiva de nosso sistema.
Mas éramos só garotos da
quarta série e o sinal bateu bem naquele momento. Era recreio, hora
de lanchar, não de guerrear por ideais.
Todos saímos da sala. Não
houve derrotados nem vitoriosos, apenas crianças com muita
imaginação. Mas quem sabe se os instintos ideológicos que pulsavam
dentro de nós não fossem verdadeiros? Talvez houvesse uma luta de
verdade naquela sala de aula, uma imitação das guerras reais pelo
mundo. Ou só brincadeira de meninos?
Uma coisa é certa: nunca
mais brincamos com bolinhas de papel ou de senhores da guerra.
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