15 de março de 2020

Guerra em Sala de Aula


Nunca vou me esquecer do dia em que testemunhei uma verdadeira guerra em minha sala de aula.

Isso foi há anos. Estávamos ainda na segunda série e embora fossemos jovens, vislumbrávamos um grande futuro pela nossa frente e, por conta disso, alguns de nós éramos muito presunçosos. Eu era, porém, o mais calado e sentava no fundão. Não era barulhento, nem estúpido, nem muito brilhante.

O estopim do conflito foi o mais ridículo possível: um apontador. Tudo teve início durante a aula de matemática do professor Gilberto. Uma das minhas colegas, cujo nome não teve mais peso significante durante todo o resto do conflito, emprestou seu apontador a Adão, o rapaz mais célebre da sala (físico e intelectualmente) e um dos mais populares da escola.

Aconteceu a Carlos, quieto e pensativo cabeça da turma, o seguinte: por que não são todos que possuem um apontador? Tal indagação foi crescendo em sua mente até chegar a uma conclusão clara de que todos na sala precisavam ter um apontador. Ora, todos mereciam um. E não somente um apontador, ele pensou. Era sabido a Carlos que Adão tinha em sua posse um estojo carregado de uma variedade de canetas de diversas cores e tamanhos. Nem todos na sala tinham uma caneta, um objeto raro que era constantemente roubado ou perdido.

Pois acontece que eu era um grande amigo de Carlos, éramos na verdade o melhor amigo um do outro, não se socializando muito com os demais. Portanto, foi logo contando-me do plano que tinha de uma "distribuição de canetas" para todo o alunato. Não demorou para que compartilhasse com o professor Gilberto suas mirabolâncias políticas.

Posicionou-se, então, na frente dos colegas e disse:

- A partir de hoje, todos terão canetas! Àqueles que não possuírem uma, Adão providenciará de seu estojo.

Adão protestou quando confrontado com a possibilidade de uma violação de sua propriedade. Inicialmente, a sala inteira estava contra a nova medida ou pelo menos indiferente, a não ser eu, sempre fiel a meu amigo Carlos. Porém, a situação estava prestes a mudar.

Com o fim do horário aproximando-se, eu e Carlos nos isolamos no fundo. Juntos (ou melhor, só ele, não fui mais que um observador e comentarista) bolamos um manifesto a favor da igualdade entre os alunos de nossa sala. Estávamos prontos para tomar medidas mais drásticas, uma revolução começaria!

Entre as mudanças que exigíamos: qualquer um teria direito de sentar-se onde bem entender, todos com direito ao mesmo conjunto de materiais escolares e os alunos não mais seriam explorados pelos professores. Basicamente, todos passariam a dividir e nada mais de ficar depois do sinal bater.

Escrevemos ligeiramente os princípios de nossa teoria política e grudamos na parede da sala.

Entretanto, pouco sabíamos que tínhamos adversários tramando contra nossos planos. Adão e seus colegas arquitetavam, ao mesmo tempo de nós, um manifesto próprio com diferentes exigências. Com a ajuda de Cátia, enérgica e estudiosa garota que tinha o hábito de sentar-se na frente, chegaram a conclusão que o "coletivo" não existia e que cada carteira que o aluno ocupasse seria sua propriedade individual sagrada, assim como seus bens e que estes poderiam ser compartilhados com quem bem entendessem, sem distribuições e oferecimentos obrigatórios.

Assim foram postuladas as duas distintas teorias que regeriam as políticas daquela sala nos próximos minutos. Adão era o primeiro-ministro de seu estado, a Frente da Sala. Carlos era o secretário-geral do Fundão, eu o seu braço direito.

Com a sala dividida em dois lados, teve início a guerra.

O primeiro ataque inimigo veio na forma de uma bolinha de papel. Atirado por Dudu, piadista da classe e aliado de Adão, o projétil acertou em cheio nosso secretário-geral, bem na testa. Passamos minutos planejando um contra-ataque, uma ofensiva eficaz como resposta contra aquele ataque gratuito.

O sinal tocaria em cinco minutos, precisávamos de uma rápida ação. Esta veio de Aline, atenciosa estudante das aulas de ciências, que, como sempre foi conhecida como uma garota impulsiva, tomou a iniciativa não só de aplicar um tapa na nuca de Adão (que estava de costas para ela) como também rasgar uma página de seu caderno, insulto que impressionou a muitos de nós.

Depois desta ofensa, houve uma verdadeira batalha de bolinhas de papel. Tivemos que montar uma muralha com nossas carteiras. Não demorou para que Adão e seus aliados tivessem que recorrer a uma, já que passamos a atirar nossas próprias bolinhas. Algumas eram grande e pesadas, outras leves, mas todas causavam enorme dor.

Não houve sequer uma baixa, mas muitos mudaram de lado.

O primeiro foi Felipe. Tornou-se desiludido com o governo de Adão e, inspirado pelos ideais da fraternidade e igualdade, decidiu unir-se a nós. E então veio para nosso lado Isabela, a garota por quem eu tinha há muito tempo uma queda. Não consegui expressar a minha felicidade quando a vi cruzando a sala e juntando-se ao nosso exército.

Assim como Felipe e Isabela, muitos outros aderiram à nossa causa socialista e abandonaram a tirânica e desigual ditadura de Adão. Ficou claro para eles que as políticas liberais e capitalistas de Adão, apoiadas fortemente pelo cínico Dudu, incentivavam o acúmulo de riquezas. E embora nosso governo recebesse duras críticas por conta de seu suposto autoritarismo e instabilidade comercial, ainda éramos a solução para os persistentes problemas que assolavam a humanidade, a libertação do proletariado!

Com aquele verdadeiro êxodo, nossas forças tornaram-se maiores do que a do inimigo, um contraste que evidenciou a vitória, mesmo a Adão e Dudu. E de fato eram somente eles os restantes, dois generais derrotados presos em seu castelo (um muro de carteiras amontoadas).

Eu, Carlos, fui testemunha não só da guerra ideológica e do conflito de bolinhas de papel, mas também de uma quase rendição do inimigo. Vi Adão se levantar, como se já tivesse um discurso feito. Era a derrota final, o fim do inimigo, a destruição do demônio político e a implantação definitiva de nosso sistema.

Mas éramos só garotos da quarta série e o sinal bateu bem naquele momento. Era recreio, hora de lanchar, não de guerrear por ideais.

Todos saímos da sala. Não houve derrotados nem vitoriosos, apenas crianças com muita imaginação. Mas quem sabe se os instintos ideológicos que pulsavam dentro de nós não fossem verdadeiros? Talvez houvesse uma luta de verdade naquela sala de aula, uma imitação das guerras reais pelo mundo. Ou só brincadeira de meninos?

Uma coisa é certa: nunca mais brincamos com bolinhas de papel ou de senhores da guerra.

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