16 de março de 2020

Memórias


Cada memória que ela tinha do amante, cada recordação, cada detalhe acerca dos seus modos e dos jeitos era ruim. Carla havia confiado nele, havia passado tanto tempo com ele que já o considerava parte de si. Foram momentos de pura ternura e bons enquanto duraram, mas que haviam sido em vão pois ele revelou, enfim, sua verdadeira face. Acabou tornando-se uma cicatriz em sua vida, uma ferida que só aumentava. E ela chorou muito pois não sabia como reagir, não sabia o que dizer ou fazer. Nem tinha onde enterrar sua cabeça. Não sabia se ficava com raiva ou só triste. Carla sempre foi uma pessoa que dava importância a tudo, cada segundo uma jóia. Mas ela sempre procurava desviar do mal, sempre em busca do que melhor a beneficiasse como pessoa. As atitudes que o namorado passou a tomar foram, para ela, de quebrar o espírito. Pela primeira vez alguém entrou em seu caminho e tentou arruinar sua felicidade, e ele o fez de forma excepcional.

Não tinha mais como suportar o parceiro. Carla estava completamente decepcionada. Entretanto, no fundo do seu coração ainda existia amor por ele. Estimava-o como ninguém. Afinal, foi uma era inteira juntos, anos de troca de carinho que, agora, se mostravam desperdiçados. Por causa do amor que ainda sentia, não sabia se era forte o bastante para dizer adeus. Ela pensou em fugir, não tinha medo. Talvez a distância a fizesse esquecê-lo. Mas a solução não veio com uma ideia própria.

Certo dia, ela viu um anúncio em um website. Era uma invenção nova, uma máquina genial, uma tecnologia que permitiria, por um gordo preço, apagar memórias que fossem indesejadas. Era a sua oportunidade de se livrar do terrível e tirano companheiro que tanto a machucara. Seria um começo inteiramente novo onde não contaria com o peso do amor remanescente em sua alma, Carla estaria livre para viver, sem nenhuma corrente atrelaçado ao seu coração. A publicidade alertou que tratava-se de um protótipo, mas Carla não ligou e pegou sua bolsa e correu para a clínica onde passaria pelo processo.

Chegando à clínica, descobriu que tratava-se de um enorme aparelho onde o paciente se deitaria em uma cama e adentraria em uma máquina oca, similar ao processo por qual os pacientes de quimioterapia passam. Os cientistas foram logo explicando acerca do procedimento que seria realizado. Seria uma varredura total das memórias correspondentes a um determinado objeto, conceito, ideia, lugar ou, no caso de Carla, pessoa. Alertaram que alguns memórias importantes ou boas poderiam ser eternamente destruídas. Mas Carla não se importou com aquilo naquele momento. Fez positivo com a cabeça e foi em frente. Queria esquecer do namorado, para sempre.

Todavia, quando já estava deitada e pronta para iniciar a operação e os cientistas operavam a máquina, Carla teve uma epifania. Lembrou do namorado. Mas não pensou nas coisas ruins desta vez, mas nas coisas boas. Contudo, não as considerou como motivo para continuar com ele, mas como uma parte integral da vida. Era sua vida, afinal, sua mente, sua alma, seu coração. Ali, enquanto deitava, ela pensou em como iria colocar tudo em risco, todas as suas tão preciosas experiências que a enriqueciam como humana e que, embora a magoassem, poderiam deixá-la mais forte.

Não queria mais saber do maldito namorado, mas também não destruiria parte de si. Gritou em protesto para que interrompessem o procedimento e se despediu de todos da clínica. Pegou sua bolsa e dirigiu até sua casa. Quando voltou, olhou para uma foto que tinha na parede: Carla quando tinha seis anos. Tinha um lindo sorriso de criança no rosto, um sorriso que persistia, embora mais enfraquecido, em seu rosto vinte anos depois. O que ela pretendia fazer na clínica seria o fim daquela pessoa.

Olhou para o namorado, ou melhor, ex-namorado que se sentava em uma poltrona no canto da sala, um olhar de fera em seu rosto, um descontentamento raivoso e cruel. Carla olhou para ele e pensou no bom e no ruim, nas cicatrizes e delícias que ele a proporcionara. Não tomou julgamento quanto a ele naquele momento. Vilão ou mocinho? Não era o mais importante. Mas a sua decisão de deixá-lo foi imediata. O companheiro não reagiu, como que já esperasse, como se soubesse que suas ações acarretariam naquilo. Ele não merecia Carla, até o própria tinha conhecimento disso.

A história termina com o sol que se põe brilhando no rosto de Carla enquanto ela dirige por uma rodovia em direção ao seu futuro. Um futuro incerto, cheio de felicidade e tristeza, gozo e dor, mas sem dúvida um futuro que vale a pena ser vivido e que jamais será apagado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário