Cada memória que ela tinha
do amante, cada recordação, cada detalhe acerca dos seus modos e
dos jeitos era ruim. Carla havia confiado nele, havia passado tanto
tempo com ele que já o considerava parte de si. Foram momentos de
pura ternura e bons enquanto duraram, mas que haviam sido em vão
pois ele revelou, enfim, sua verdadeira face. Acabou tornando-se uma
cicatriz em sua vida, uma ferida que só aumentava. E ela chorou
muito pois não sabia como reagir, não sabia o que dizer ou fazer.
Nem tinha onde enterrar sua cabeça. Não sabia se ficava com raiva
ou só triste. Carla sempre foi uma pessoa que dava importância a
tudo, cada segundo uma jóia. Mas ela sempre procurava desviar do
mal, sempre em busca do que melhor a beneficiasse como pessoa. As
atitudes que o namorado passou a tomar foram, para ela, de quebrar o
espírito. Pela primeira vez alguém entrou em seu caminho e tentou
arruinar sua felicidade, e ele o fez de forma excepcional.
Não tinha mais como
suportar o parceiro. Carla estava completamente decepcionada.
Entretanto, no fundo do seu coração ainda existia amor por ele.
Estimava-o como ninguém. Afinal, foi uma era inteira juntos, anos de
troca de carinho que, agora, se mostravam desperdiçados. Por causa
do amor que ainda sentia, não sabia se era forte o bastante para
dizer adeus. Ela pensou em fugir, não tinha medo. Talvez a distância
a fizesse esquecê-lo. Mas a solução não veio com uma ideia
própria.
Certo dia, ela viu um
anúncio em um website. Era uma invenção nova, uma máquina genial,
uma tecnologia que permitiria, por um gordo preço, apagar memórias
que fossem indesejadas. Era a sua oportunidade de se livrar do
terrível e tirano companheiro que tanto a machucara. Seria um começo
inteiramente novo onde não contaria com o peso do amor remanescente
em sua alma, Carla estaria livre para viver, sem nenhuma corrente
atrelaçado ao seu coração. A publicidade alertou que tratava-se de
um protótipo, mas Carla não ligou e pegou sua bolsa e correu para a
clínica onde passaria pelo processo.
Chegando à clínica,
descobriu que tratava-se de um enorme aparelho onde o paciente se
deitaria em uma cama e adentraria em uma máquina oca, similar ao
processo por qual os pacientes de quimioterapia passam. Os cientistas
foram logo explicando acerca do procedimento que seria realizado.
Seria uma varredura total das memórias correspondentes a um
determinado objeto, conceito, ideia, lugar ou, no caso de Carla,
pessoa. Alertaram que alguns memórias importantes ou boas poderiam
ser eternamente destruídas. Mas Carla não se importou com aquilo
naquele momento. Fez positivo com a cabeça e foi em frente. Queria
esquecer do namorado, para sempre.
Todavia,
quando já estava deitada e pronta para iniciar a operação e os
cientistas operavam a máquina, Carla teve uma epifania. Lembrou do
namorado. Mas não pensou nas coisas ruins desta vez, mas nas coisas
boas. Contudo, não as considerou como motivo para continuar com ele,
mas como uma parte integral da vida. Era sua vida, afinal, sua mente,
sua alma, seu coração. Ali, enquanto deitava, ela pensou em como
iria colocar tudo em risco, todas as suas tão preciosas experiências
que a enriqueciam como humana e que, embora a magoassem, poderiam
deixá-la mais forte.
Não
queria mais saber do maldito namorado, mas também não destruiria
parte de si. Gritou em protesto para que interrompessem o
procedimento e se despediu de todos da clínica. Pegou sua bolsa e
dirigiu até sua casa. Quando voltou, olhou para uma foto que tinha
na parede: Carla quando tinha seis anos. Tinha um lindo sorriso de
criança no rosto, um sorriso que persistia, embora mais
enfraquecido, em seu rosto vinte anos depois. O que ela pretendia
fazer na clínica seria o fim daquela pessoa.
Olhou
para o namorado, ou melhor, ex-namorado que se sentava em uma
poltrona no canto da sala, um olhar de fera em seu rosto, um
descontentamento raivoso e cruel. Carla olhou para ele e pensou no
bom e no ruim, nas cicatrizes e delícias que ele a proporcionara.
Não tomou julgamento quanto a ele naquele momento. Vilão ou
mocinho? Não era o mais importante. Mas a sua decisão de deixá-lo
foi imediata. O companheiro não reagiu, como que já esperasse, como
se soubesse que suas ações acarretariam naquilo. Ele não merecia
Carla, até o própria tinha conhecimento disso.
A
história termina com o sol que se põe brilhando no rosto de Carla
enquanto ela dirige por uma rodovia em direção ao seu futuro. Um
futuro incerto, cheio de felicidade e tristeza, gozo e dor, mas sem
dúvida um futuro que vale a pena ser vivido e que jamais será
apagado.
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