6 de março de 2020

A Última Canção


Que tal começar a minha história pelo final? Agora, em meus últimos momentos, tenho uma bala cravada em meu peito. Por algum motivo, sinto que consigo recordar melhor tudo que houve comigo nas últimas semanas. Serei, então, o mais breve possível.

Sou, ou era, um músico. Não um mestre de todos os instrumentos. Meu ponto forte é o violão, sempre foi desde os dezessete anos. Não gosto de piano (nem de ficar sentado por muito tempo) e meus lábios doem quando assopro uma flauta ou trombone por muito tempo. Mas meus dedos sempre deslizaram bem pelas cordas de um violão.

Mas antes de ser um músico, eu era um poeta. Assim era conhecido na sala de aula. Sempre fui bom com palavras. Por isso mesmo hoje em dia eu tenho um enorme talento para compôr músicas. Sejam tristes, alegres ou inspiradoras, a arte de escrever em versos é muito linda para mim.

Mas algo ruim aconteceu enquanto eu aproveitava essa vida de músico. Eu, um homem solitário (mas feliz) de trinta e cinco vivendo em uma casa alugada apertada, dava aulas de violão todo sábado e trabalhava como atendente em um supermercado no resto da semana. Uma vida modesta, mas sempre optei pelo simples. Certo dia eu comecei a tossir muito durante o trabalho e acabei desmaiando ali mesmo nos corredores entre as prateleiras. Acordei com um médico me dizendo que eu tinha câncer em estado avançado. Expectativa de vida: cinco meses.

Não me desesperei. Meu pai sempre dizia que tínhamos que aproveitar o tempo que era nos dado. Eu nem quis saber de quimioterapia. Fui direto para casa naquele mesmo dia e peguei meu violão e saí pelo mundo. Tive uma ideia incrível para uma nova música, uma última música que eu deveria compôr. Algo grandioso, nem que fosse um verso. Foi isso que pensei: "nem que fosse só um verso!"

Sentei-me numa praça e comecei a buscar inspiração. Talvez minha doença? Trágico de mais. Talvez em alguma mulher? Meloso demais. Olhei para cima, talvez em Deus? Não, muito clichê.

Então meus olhos bateram em um posto ali na calçada. Tinha um papel grudado, papel velho. Estava escrito:

Pizzaria do Mané
Matamos a sua fome

Abaixo das palavras havia um número de telefone. Eu logo percebi que tinha algo de errado ali. Não era um anúncio de pizzaria. A palavra "matamos" já entregava o que era. Chamem-me de esquisito, mas sempre fui observador. Sempre soube que esses anúncios grudados pela cidade são convites para outras coisas, coisas escusas e ilícitas.

Peguei meu celular e liguei. Quem atendeu foi uma voz sinistra.

- Alô – a voz disse.
- Olá, vocês trabalham com pizzas?
- Sim.
- Somente?
- Não... - a voz deu uma pausa. - Trabalhos com outra coisa também.
- Estou interessado.

A voz masculina me deu o endereço e eu fui correndo para lá com meu violão (claro). O que encontrei não foi uma pizzaria, ora, mas um verdadeiro covil de assassinos contratados! Ou melhor, pistoleiros, como eram chamados. Alguns eram altos e fortes, outros mais magros e fraquinhos. De qualquer forma, todos eram tipos agourentos.

Um deles chamou minha atenção. Seu nome era Romero. Descobri que era na verdade colombiano e que tinha se mudado para o Brasil há muitos anos. Trabalho aqui é ainda mais fácil, ele disse. Ignorando o homem, fui logo ao ponto.

- Posso acompanhar um dia de seu trabalho? - eu perguntei.
- Por que? - ele disse.
- Preciso de inspiração para uma música! Estou morrendo e esse é o último refrão que pretendo escrever.
- Parece loucura pra mim...
- Te pago como quiser.
- Tá bom, mas fica atrás de mim e não me atrapalha. - Romero aceitou sem relutância.

Paguei uma fortuna para poder me tornar seu observador. Fui ameaçado de morte por ele caso seu trabalho sujo fosse por mim denunciado. Uma ameaça totalmente esperada. Mas valeria a pena. Eu esperava encontrar a inspiração certo para meus novos versos.

Nossa primeira missão foi simples. Um pai cansado de ver seu filho voltar para casa chorando precisava dar um jeito no valentão que implicava com o garoto. Como esse pai era insano, resolveu recorrer a um método um tanto que radical para dar fim ao bullyng constante praticado contra seu menino. Solução: assassino contratado.

Porém, não questionei as medidas tomadas pelo pai, apenas observei (de longe) a ação do assassino contratado. Silencioso e cauteloso, foi rápido em eliminar o garoto, uma cena que não foi mais pesada por conta da distância que eu mantinha.

Enquanto saíamos de carro do local, eu no banco traseiro, deliciei-me com notas aleatórias que toquei acompanhadas dos versos recém concebidos.

Era uma vez
um assassino
Um homem frio
que matou um menino

Parei ali mesmo, não consegui prosseguir. Faltava algo mais, minha mente não conseguia terminar aquele verso ou imaginar qualquer outro.

Demos um dia de folga, mas logo voltamos à ativa. Nossa próxima missão foi o que mudou toda essa história. Chegando de carro à cena, deparei-me com um vista familiar. Paramos em frente a uma modesta casa no subúrbio, era madrugada. Mas eu conhecia aquela casa. Conhecia aquelas janelas, aquela porta e aquela calçada.

Era a casa da minha ex-mulher!

Permaneci no carro e decidi não acompanhar Romero naquele missão em particular. Eu não tinha mais sentimentos pela minha ex- esposa, claro, nós nem mantínhamos mais contato. Mas temi pela sua morte. Porém, tive certeza de que ela não era o alvo pois ouvi, depois de dois tiros, os gritos de desespero da coitada.

Um silêncio segui-se e então nada mais. Fiz a maior besteira de minha vida quando tomei a iniciativa de sair do carro e me aproximar da casa para verificar a situação. Fui surpreendido por Romero que saiu de dentro do domicílio às pressas (nenhuma novidade). Logo atrás veio a esposa do pobre alvo, ninguém menos que o marido da pobre mulher. Estava em prantos e totalmente desesperada, sangue nas mãos. Ela chegou a me ver, embora eu tenha tentado cobrir meu rosto com o violão (como já devem saber, sempre tenho ele em mãos). O tolo aqui, ao contrário de Romero, estava sem máscara. Apressei-me para entrar no carro de novo e partirmos como um raio dali.

Dentro do nosso veículo, mais uma vez fracassei em arquitetar uma canção que representasse toda a natureza sinistra do trabalho de Romero.

O máximo que consegui foi mais uma estrofe:

Era uma vez
um assassino
Um homem frio
Que matou um menino
E também um marido

Fraco. Não havia poder, não havia coração, rima sem sentido, canção sem sentido. Frustei-me por dias e dias.

Mas então eu finalmente consegui, depois de muito acompanhar Romero em suas escusas aventuras, um verso que tivesse poder. Entretanto, é neste ato final que conheço meu destino trágico.

Acreditava eu que aquele seria um dos últimos dias ao lado de Romero. Embora eu não tenha desenvolvido afinidade nenhuma por aquele homenzarrão terrível, eu fiquei grato pela sua gentileza em me deixar acompanhá-lo em seu trabalho, e ele também estava grato pelo dinheiro farto com que eu o pagava.

Meu estado estava piorando. Sentia-me fraco, meu corpo doía, tossia como um gato engasgado, mas ao invés de cuspir pelos, eu cuspia sangue. Não deixei aquilo me abalar, eu era movido pela minha missão de concluir minha música. Quimioterapia? Tratamento? Nada daquilo poderia me salvar. Mas a minha canção viveria para sempre.

Enquanto estávamos na "Pizzaria do Mané", Romero recebeu uma ligação. Depois de terminado a ligação, lembro muito bem da expressão sombria que o homem me deu, nunca tinha visto Romero daquele jeito.

Partimos, como sempre, de carro rumo ao nosso destino. Era noite quando chegamos a uma região afastada do centro da cidade, um verdadeiro matagal. No início não me assustei pois já tínhamos ido a muitos matagais antes. Porém, depois de perceber que não havia ninguém ali, eu me toquei.

Romero, expressão nula, apontou seu revólver para meu peito. Não tinha piedade, assassino pago e profissional.

- Nunca pensei que diria isso mas... lo siento, señor músico – ele disse apontando a arma para o meu peito.

Tentei usar meu violão como escudo. Em vão. A bala atravessou queimando a madeira do instrumento, cai duro no chão, nem conseguia gritar direito.

Romero acelerou e sumiu em um segundo. A intensa dor fez com que eu perdesse os sentidos por um minuto. Recobrada a minha consciência, analisei a ferida fatal em meu peito e o sangramento que anunciava minha morte. Deitado no chão, a observar as estrelas, só pensava na mulher que contratou Romero para me matar. Mal ela sabia que Romero havia matado seu marido. Por que não usei uma maldita máscara naquela noite, eu pensei.

Agarrei meu violão e, com todas as minhas forças, coloquei-me de pé. O buraco no instrumento não atrapalhou seu funcionamento. Desse modo, então, eu consegui terminar minha canção. Mas a fonte de inspiração acabou não vindo de Romero ou de qualquer outro assassino contratado, mas da minha próprio estúpida e trágica morte.

Era uma vez
Um compositor
Com seu violão
Buscando inspiração
Terminou sua canção
Gemendo de dor

Foi a minha última canção.

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