5 de abril de 2020

Liberdade


Luke não conhecia o mundo além daqueles muros. Ocasionalmente, seus donos o levavam para passear, mas não o permitiam que seguisse o seu rumo pois estava sempre preso por uma corrente. Luke respeitava muito os seus donos. Davam-lhe comida e abrigo, saúde e proteção. Luke sabia que existia mais lá fora, um mundo inteiro a ser descoberto. Mas mesmo assim, o jovem cão labrador não se atrevia a fugir de seu lar, onde mora o conforto, e explorar aquele universo exterior.

O mundo de Luke era basicamente aquele quintal cercado pela parede da casa e por quatro muros. Quando chovia, Luke refugiava-se em sua pequena casinha que tornava-se uma fonte de muita claustrofobia para o animal durante longos temporais.

Mas não estava sozinho naquele mundinho. Pietro estava sempre ali em sua gaiola, vigiando Luke e imitando seus latidos. O papagaio havia chegado na casa bem antes de Luke, que chegara ainda filhote (nem se recordava direito do primeiro dia na casa) e tinha o respeito e até admiração de Luke, que via sabedoria na ave engaiolada.

Luke contava ao seu companheiro papagaio sobre os sonhos que tinha sobre o mundo lá fora. Quando um avião sobrevoava a casa, Luke não tirava os olhos do céu. O cão dizia:

- Talvez um dia eu saia daqui, Pietro, e explore até mesmo os céus!

- Duvido. Eu, que sou um papagaio e posso voar, estou preso aqui. Como espera que um cachorro como você saia voando?

Pietro ria, mas Luke não ligava.

Assim foi a vida do cão Luke por um bom tempo. A sede de aventura crescia dentro dele e, embora não descartasse o amor pelos donos, começou com o tempo a questionar as intenções daqueles humanos para com ele. Essas indagações que surgiram de maneira natural na mente do cão ganharam força com a chegada de Milly, uma gata.

No começo, ela surgia de vez em quando só para tentar comer um pouco da ração de Luke, porém, a gatinha era ameaçada pela longa fileira de presas do labrador. Magra e de miado fraco, não era certa a origem de Milly, mas assim que ela chegava, normalmente ficando sobre o muro, a lamber suas patas, colocava Luke para pensar.

- Não vai me dar um pouco da sua comida, cão? - ela disse certa vez sobre o muro.

- Nem pensar! - Luke respondeu - Esta é minha refeição. Os meus donos deram para mim.

- Donos? Seja como eu, cão, sem donos. Nós gatos da rua não vivemos presos como você. E lhe garanto que existem muitos cães de rua e selvagens, sem donos, por aí. E há também papagaios que voam livres pelos céus - a gata olhou para Pietro.

- Eu gosto de meus donos - disse Luke.

- Mas tem certeza que eles gostam de você? - a gata disse - Acorde. Você só é mais um boneco de estimação para eles.

Deu um pulo para o outro lado e sumiu.

Luke ficou pensando naquilo por dias e dias. Será que seus donos realmente lhe davam o valor que ele pensava? Ele sabia que os seus donos humanos tinha um filhote da espécie deles. Mas Luke sabia que aquele pequeno humano não era de estimação como Luke. O que, afinal, era Luke para eles?

Na vez seguinte que foi levado para passear, Luke observou com mais clareza o universo que o rodeava. Viu outros donos levando seus cães para passeio, todos como Luke, presos por uma corrente. Viu uma garota na porta de uma casa com um coelho na mão. O coelho lutava para escapar, mas a garota humana o puxava para entre seus braços. Viu pássaros voando pelos céus e se lembrou de Pietro, que vivia preso em sua gaiola. Luke então viu dois cães de rua, mas estes não estavam presos ou eram segurados por alguém, estavam livres.

Liberdade, escravidão, Luke não se esqueceria daquelas palavras.

Quando voltou do passeio, tanto Luke quanto os humanos ficaram chocados com o que viram.

Pietro estava morto. Os humanos chegaram a conclusão errônea de que o papagaio tinha preso seu pescoço entre as grades da gaiola e se enforcado. Mas Luke sabia o que tinha acontecido, sabia que Pietro não seria tão estúpido para morrer daquele jeito. Pietro tinha se matado. Luke sabia que sim.

O cão ficou chocado com aquilo e por muitos dias ficou deprimido, refletindo sobre sua condição de escravo, uma condição compartilhada por todos os bichos de estimação. Tão terrível era aquela existência que tinha levado Pietro ao suicídio. Poucos dias depois da morte do papagaio, os humanos arranjaram um novo pássaro, dessa vez um periquito jovem e energético.

- Olá! Sou Dennis. Sou um periquito! É tão bom te conhecer!

Mas Luke tinha se fechado, não queria mais saber de conversas. Em sua mente, estava arquitetando um plano para fugir daquela casa. Um plano simples que dependeria somente do uso de sua mais pura essência canina: a ferocidade.

Luke não tinha mais amor pelos donos. Não eram mais seus amigos. Um ódio por eles crescia dentro do labrador por aqueles humanos imundos que o acorrentavam, não só ele mas sua espécie inteira e muitas outras espécies. Os animais de estimação não eram mais que um divertimento para aqueles bípedes. Luke não aguentava mais.

Noutro dia em que o levaram para passear pela rua, Luke viu a oportunidade de escapar. Assim que seu dono e ele já estavam bem longe de casa e sem ninguém por perto, Luke virou-se e atacou o homem no braço com suas presas pontudas. O homem caiu no chão, sangrando e sentindo uma dor agoniante. Ao cair, soltou a corrente que se ligava à coleira de Luke e o labrador viu o momento perfeito de fugir dali.

Adentrou uma mata escura e fechada e continuou seguindo por ela até certo ponto em que percebeu estar longe de qualquer presença humana. O cão andou muito, tomou chuva (dessa vez não tinha sua casinha) e a escuridão assustadora do mundo selvagem. Sentiu fome e pela primeira vez cassou, conseguiu matar um teiú, o sangue que escorria de sua boca era sensação nova para Luke.

Finalmente, depois de muito andar, encontrou um cão enorme e preto. O cachorro o cheirou e depois disse para segui-lo.

Chegou a uma casa velha e abandonada que havia em uma clareira no mato. Não havia humanos lá, mas estava cheia de animais. Cães, gatos, aves, coelhos, hamsters e tartarugas, além de outras espécies habitavam a casa que era como um santuário para animais de estimação que haviam abandonado o conforto da vida entre os humanos.

Uma gata saudou Luke e o cachorro a reconheceu imediatamente. Era Milly.

- Olá, cão. Está gostando da liberdade?

Luke respondeu com um uivo. Ele não trocaria sua liberdade por nada.

30 de março de 2020

Crônica: Quarentena


Essa quarentena tem sido, para mim e meus conterrâneos, até que fácil de suportar. Nunca fui muito saideiro antes de tudo isso começar. Mas imagino o que os moradores de grandes cidade, como São Paulo ou Nova Iorque, devem estar passando. Devem estar putos, fervendo de frustração, que nem o meu achocolatado que eu tomo bem quentinho quase toda noite.

Mas quem devemos culpar?

Tem gente que culpa a China. Alguns teóricos da conspiração até chegaram a dizer que foi a China que criou o coronavírus com o objetivo de "desestabilizar a economia de países ocidentais". Para mim isso é a maior bosta que eu já ouvi e é justamente coisa que a gente ouviria de certos políticos que acreditam que a terra é plana e que existem mamadeiras eróticas.

Tem quem culpa o Bolsonaro pela nossa situação atual. Milhares de casos. O idiota ainda nega a seriedade da situação, dizendo que é uma gripezinha. Espero que ele saiba que está no grupo de risco, pois tem mais de sessenta.

Então acho que podemos culpar o Bolsonaro. Sempre temos que culpar alguém. Culpar é bom, é divertido. Sentir raiva é um prazer gostosa, coisa que a gente precisa nessa quarentena. Até aqui na minha cidade tem coisa fechando. Academia fechada, escola fechada.

Esse achocolatado que eu tô tomando? Na cara do Bolsonaro, fervendo.

29 de março de 2020

As Lições de Pitágoras


Marquinhos jogou a mochila sobre a cama e sentou-se em sua mesa de estudos, mãos na testa. O garoto não acreditava na nota que tinha tirado em matemática. Como posso ser tão ruim nesta matéria e me dar tão bem nas outras?, ele se perguntava.

Seu professor lhe dera mais uma chance de fazer uma nova prova que decidiria seu futuro naquela matéria, mas o aluno do ensino fundamental não tinha muitas esperanças. Obedecendo a sua mãe, foi logo para o quarto, mas não conseguiu estudar.

O assunto era "aplicação do teorema de Pitágoras" e só de ouvir aquele nome grego esquisito, Marquinhos sentia cólicas.

Para a sua surpresa, havia alguém para ajudá-lo. Enquanto estudava, faltando dois dias para a prova onde seus conhecimentos seriam novamente testados, Marquinhos recebeu uma inesperada visita. Um homem barbudo e de toga surgiu, em uma piscar de olhos, como mágica, em seu quarto.

Tão desorientado quanto Marquinhos, o homem disse, olhando para os lados:

- Onde estou?!

- Quem é você? - Marquinhos perguntou.

- Sou Pitágoras, um matemático e filósofo! E quem é você?

- Sou Marquinhos... - o garoto respondeu, cabisbaixo - Você é mesmo Pitágoras?

- O próprio. Preciso voltar à Grécia imediatamente, os meus discípulos estão me aguardando...

- O que você sabe sobre o teorema de Pitágoras? - Marquinhos o interrompeu.

O homem, que já tinha fios brancos em sua longa barba, ergueu as sobrancelhas e soltou um risinho.

- Sei tudo! Eu inventei, ou melhor, descobri este teorema.

- Pode me ensinar? Preciso de ajuda para a prova de amanhã. Sabe, eu não sou bom em matemática...

- Como não? - o velho espantou-se - Matemática é a base de tudo. O universo é feito de números, não sabia? Os números são responsáveis pela harmonia das coisas e são tão parte do mundo onde vivemos quanto o ar que você respira, garotinho.

O garoto baixou a cabeça, triste, olhando para o livro aberto sobre sua mesa de estudos.

- É para a prova de amanhã, moço. - Marquinhos disse.

- Bem - Pitágoras continuou - No triângulo retângulo, uma figura muito importante, temos uma hipotenusa, que é a aresta que está de frente para o ângulo de noventa graus, e dois catetos, que são as duas outras arestas. O teorema de Pitágoras, este sou eu, é usado para descobrir o valor da hipotenusa. Para isso, somamos os valores dos catetos ao quadrado.

Marquinhos coçou sua cabecinha cabeluda.

- Me dá um exemplo, seu Pitágoras?

- Imagine um triângulo retângulo que tem uma hipotenusa no valor de "x". Um dos catetos tem o valor de dois e o outro tem o valor de três. Agora faça as contas, garoto.

- Dois ao quadrado é...

- Quatro - completou Pitágoras.

- Três ao quadrado é nove. Então fica "quatro mais nove"...

- Que é igual a treze. O valor da hipotenusa é treze. Viu? O poder da matemática!

Marquinhos, finalmente compreendendo o teorema, se pôs a folhear seu livro e a responder as várias questões, dessa vez com sua língua para fora em sinal de esforço.

Pitágoras riu e ,vendo que já tinha cumprido seu dever, dirigiu-se a porta e então começou a perambular pela casa do menino.

Pitágoras pouca sabia, no entanto, que a casa estava longe de vazia. Enquanto Marquinhos aventurava-se no mundo harmonioso dos números, ele pôde ouvir os gritos da mãe vindos da cozinha:

- Marquinhos! Tem um mendigo aqui em casa!

Depois daquele dia, Marquinhos nunca mais teve problemas com matemática.

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28 de março de 2020

Um dragão em meu banheiro


Sempre fui fascinado pelas histórias que envolviam cavaleiros, dragões e princesas em perigo. Costumava me imaginar, quando menino, como um alto e forte espadachim lutando contra feras místicas no topo de montanhas e salvando a minha amada das garras do inimigo. Mas eu cresci e aqui estou: um homem de trinta anos que trabalha muito e dorme pouco morando em uma pensão de tamanho desconfortável.

Porém, recentemente, como um sinal de alguma força superior, fui surpreendido pela visita de um réptil escamoso, personagem tão frequente em minhas fantasias infantis. Ele preferiu, entretanto, não bater à porta e achou mais interessante - talvez em uma tentativa de me surpreender, o espertinho - procurar abrigo em meu banheiro. Foi uma boa decisão por parte daquele dragão, afinal o meu banheiro (um dos três cômodos de minha humilde casa) era aconchegante e úmido, assim como um ninho de dragão.

A fera era perigosa e exibia as presas assim que eu tentava me aproximar. Não arrisquei nenhum tipo de contato que não fosse visual, pois o próprio vislumbre daquela criatura já era assustador. Fui obrigado a usar o banheiro do vizinho por dias, sob o pretexto de que o meu estava "com problemas", para não enfrentar o monstro mitológico que tinha se mudado para debaixo de meu chuveiro.

Mas como em toda história de cavaleiro onde há um dragão, há também uma princesa. Em uma de minhas idas ao supermercado, me deparo com uma antiga colega de escola, Ângela. Era grande meu fascínio e admiração por aquela donzela (na época de escola era uma donzela, nos dias de hoje não sei dizer), por isso não hesitei em pedir seu número de telefone. Minha empreitada romântica com Ângela teve sucesso e depois de um encontro caloroso cheguei a convidá-la aos meus aposentos, sem me preocupar em qual seria sua reação ao se deparar com a modéstia de meu lar.

Somente chegando em casa fui me lembrar da presença de um dragão em meu banheiro. É de se estranhar que alguém se esqueça de um convidado tão ilustre, mas conjecturo que eu estava sob o efeito da "embriaguez do amor", como chamam os poetas, para não me recordar da fera que ali residia.

- Vamos para o seu quarto? - Ângela perguntou retoricamente, passando seu dedo indicador em minha testa suada, gesto seu que denotava intenções obviamente sexuais, mas pobre da moça mal sabia que a poucos metros de onde estávamos havia um dragão.

O suor em minha testa era, claro, fruto de meu temor. Mas, como um bom cavaleiro, nada temia. Naquele instante, ressuscitei todas as fantasias que eu tinha quando criança. Limpei o suor da testa e pedi que Ângela se afastasse. Fui à minha "cozinha" (a sala de estar e cozinha eram no mesmo cômodo) e da gaveta tirei uma faca de lâmina afiadíssima, aquisição recente que eu tinha feito com o único propósito de cortar cebolas, agora seria o instrumento heroico de abater dragões.

- O que está fazendo? - a moça novamente me indagou, dessa vez com uma expressão assustada, talvez pensando que ela fosse a vítima. Acalmei-a e a informei sobre minhas intenções com aquela arma. Em seguida, me dirige ao banheiro (uma jornada de três metros) e abri a porta, meu braço já em posição de ataque. Ângela estava atrás de mim.

A fera estava lá, terrível como sempre. Ela abriu sua boca, pronta para soltar a labareda de fogo ardente, pude sentir o ar esquentando, mas não conseguiu, fui mais rápido. Penetrei com minha faca em seu pescoço carnudo e escamoso, a besta se contorcia como uma serpente, o grito de dor era de doer os ouvidos. Continuei golpeando meu inimigo. Ângela só não gritava porque tinha a mão na boca, a pobre incrédula.

A cena terminou somente com a queda do dragão sob sua poça de sangue frio. Larguei a minha espada, embora parecesse mais uma faca, e me aproximei de minha princesa.

Beijei Ângela, como um cavaleiro que conquista o coração da bela donzela. A expressão de horror no rosto da moça sumira. O resto da noite não precisa ser contado. O cavaleiro vencera o dragão e se tornara um herói lendário.

21 de março de 2020

Urubus


Seu Jacinto olhou para a sua roça pela janela de sua casa. A roça era pequena, alguns metros quadrados no fundo de seu quintal, mas era motivo de orgulho para o velho senhor. Lembrava-se de um tempo em que aquilo tudo significava muito mais para ele.

Analisou as paredes da casa, tocando-as com as suas mãos morenas e enrugadas. O reboco desgrudava-se dos tijolos, revelando a fundação rústica da antiga residência. Ali já fora um dia tudo para seu Jacinto, aquele velho homem. Ali tinha nascido e crescido, tinha brincado com os irmãos, brigado com os irmãos, tinha construído sua família de seis filhos, um lugar apertado mas bom para se viver.

Agora parecia uma ruína.

Jacinto saiu. O sol torrava a sua pele e o silêncio era agonizante. A vegetação ao redor da sua casa, uma floresta de árvores retorcidas e escuras, ainda mais com a dúzia de urubus sobrevoando o terreno em busca de alguma carniça que Jacinto suspeitava ser ele mesmo, davam ao ambiente uma natureza infernal e deprimente. Tudo parecia morto. Mas seu Jacinto lembrava-se de quando aquilo era tudo vivo.

Lembrava-se de quando o seu pai o levava para trabalhar na roça do seu Antônio, milhas dali. Lembrava-se da primeira vez que montou num cavalo, de quando casou-se, de quando teve o primeiro filho. Tudo naquela casa. Mas agora estava vazia. Seus filhos todos tinham viajado para a cidade e sua mulher já tinha falecido.

Entrou e voltou com uma enxada. Estava tudo morto, mas seu Jacinto não aceitava. Pisou na roça e começou a roçar e roçar, como fazia na juventude. Roçou até seus braços tremerem, até começar a suar como um porco e a lacrimejar como uma criança.

De repente, caiu no chão, derrotado. Seu Jacinto olhou para o céu, os urubus estavam descendo.

16 de março de 2020

Memórias


Cada memória que ela tinha do amante, cada recordação, cada detalhe acerca dos seus modos e dos jeitos era ruim. Carla havia confiado nele, havia passado tanto tempo com ele que já o considerava parte de si. Foram momentos de pura ternura e bons enquanto duraram, mas que haviam sido em vão pois ele revelou, enfim, sua verdadeira face. Acabou tornando-se uma cicatriz em sua vida, uma ferida que só aumentava. E ela chorou muito pois não sabia como reagir, não sabia o que dizer ou fazer. Nem tinha onde enterrar sua cabeça. Não sabia se ficava com raiva ou só triste. Carla sempre foi uma pessoa que dava importância a tudo, cada segundo uma jóia. Mas ela sempre procurava desviar do mal, sempre em busca do que melhor a beneficiasse como pessoa. As atitudes que o namorado passou a tomar foram, para ela, de quebrar o espírito. Pela primeira vez alguém entrou em seu caminho e tentou arruinar sua felicidade, e ele o fez de forma excepcional.

Não tinha mais como suportar o parceiro. Carla estava completamente decepcionada. Entretanto, no fundo do seu coração ainda existia amor por ele. Estimava-o como ninguém. Afinal, foi uma era inteira juntos, anos de troca de carinho que, agora, se mostravam desperdiçados. Por causa do amor que ainda sentia, não sabia se era forte o bastante para dizer adeus. Ela pensou em fugir, não tinha medo. Talvez a distância a fizesse esquecê-lo. Mas a solução não veio com uma ideia própria.

Certo dia, ela viu um anúncio em um website. Era uma invenção nova, uma máquina genial, uma tecnologia que permitiria, por um gordo preço, apagar memórias que fossem indesejadas. Era a sua oportunidade de se livrar do terrível e tirano companheiro que tanto a machucara. Seria um começo inteiramente novo onde não contaria com o peso do amor remanescente em sua alma, Carla estaria livre para viver, sem nenhuma corrente atrelaçado ao seu coração. A publicidade alertou que tratava-se de um protótipo, mas Carla não ligou e pegou sua bolsa e correu para a clínica onde passaria pelo processo.

Chegando à clínica, descobriu que tratava-se de um enorme aparelho onde o paciente se deitaria em uma cama e adentraria em uma máquina oca, similar ao processo por qual os pacientes de quimioterapia passam. Os cientistas foram logo explicando acerca do procedimento que seria realizado. Seria uma varredura total das memórias correspondentes a um determinado objeto, conceito, ideia, lugar ou, no caso de Carla, pessoa. Alertaram que alguns memórias importantes ou boas poderiam ser eternamente destruídas. Mas Carla não se importou com aquilo naquele momento. Fez positivo com a cabeça e foi em frente. Queria esquecer do namorado, para sempre.

Todavia, quando já estava deitada e pronta para iniciar a operação e os cientistas operavam a máquina, Carla teve uma epifania. Lembrou do namorado. Mas não pensou nas coisas ruins desta vez, mas nas coisas boas. Contudo, não as considerou como motivo para continuar com ele, mas como uma parte integral da vida. Era sua vida, afinal, sua mente, sua alma, seu coração. Ali, enquanto deitava, ela pensou em como iria colocar tudo em risco, todas as suas tão preciosas experiências que a enriqueciam como humana e que, embora a magoassem, poderiam deixá-la mais forte.

Não queria mais saber do maldito namorado, mas também não destruiria parte de si. Gritou em protesto para que interrompessem o procedimento e se despediu de todos da clínica. Pegou sua bolsa e dirigiu até sua casa. Quando voltou, olhou para uma foto que tinha na parede: Carla quando tinha seis anos. Tinha um lindo sorriso de criança no rosto, um sorriso que persistia, embora mais enfraquecido, em seu rosto vinte anos depois. O que ela pretendia fazer na clínica seria o fim daquela pessoa.

Olhou para o namorado, ou melhor, ex-namorado que se sentava em uma poltrona no canto da sala, um olhar de fera em seu rosto, um descontentamento raivoso e cruel. Carla olhou para ele e pensou no bom e no ruim, nas cicatrizes e delícias que ele a proporcionara. Não tomou julgamento quanto a ele naquele momento. Vilão ou mocinho? Não era o mais importante. Mas a sua decisão de deixá-lo foi imediata. O companheiro não reagiu, como que já esperasse, como se soubesse que suas ações acarretariam naquilo. Ele não merecia Carla, até o própria tinha conhecimento disso.

A história termina com o sol que se põe brilhando no rosto de Carla enquanto ela dirige por uma rodovia em direção ao seu futuro. Um futuro incerto, cheio de felicidade e tristeza, gozo e dor, mas sem dúvida um futuro que vale a pena ser vivido e que jamais será apagado.

15 de março de 2020

Guerra em Sala de Aula


Nunca vou me esquecer do dia em que testemunhei uma verdadeira guerra em minha sala de aula.

Isso foi há anos. Estávamos ainda na segunda série e embora fossemos jovens, vislumbrávamos um grande futuro pela nossa frente e, por conta disso, alguns de nós éramos muito presunçosos. Eu era, porém, o mais calado e sentava no fundão. Não era barulhento, nem estúpido, nem muito brilhante.

O estopim do conflito foi o mais ridículo possível: um apontador. Tudo teve início durante a aula de matemática do professor Gilberto. Uma das minhas colegas, cujo nome não teve mais peso significante durante todo o resto do conflito, emprestou seu apontador a Adão, o rapaz mais célebre da sala (físico e intelectualmente) e um dos mais populares da escola.

Aconteceu a Carlos, quieto e pensativo cabeça da turma, o seguinte: por que não são todos que possuem um apontador? Tal indagação foi crescendo em sua mente até chegar a uma conclusão clara de que todos na sala precisavam ter um apontador. Ora, todos mereciam um. E não somente um apontador, ele pensou. Era sabido a Carlos que Adão tinha em sua posse um estojo carregado de uma variedade de canetas de diversas cores e tamanhos. Nem todos na sala tinham uma caneta, um objeto raro que era constantemente roubado ou perdido.

Pois acontece que eu era um grande amigo de Carlos, éramos na verdade o melhor amigo um do outro, não se socializando muito com os demais. Portanto, foi logo contando-me do plano que tinha de uma "distribuição de canetas" para todo o alunato. Não demorou para que compartilhasse com o professor Gilberto suas mirabolâncias políticas.

Posicionou-se, então, na frente dos colegas e disse:

- A partir de hoje, todos terão canetas! Àqueles que não possuírem uma, Adão providenciará de seu estojo.

Adão protestou quando confrontado com a possibilidade de uma violação de sua propriedade. Inicialmente, a sala inteira estava contra a nova medida ou pelo menos indiferente, a não ser eu, sempre fiel a meu amigo Carlos. Porém, a situação estava prestes a mudar.

Com o fim do horário aproximando-se, eu e Carlos nos isolamos no fundo. Juntos (ou melhor, só ele, não fui mais que um observador e comentarista) bolamos um manifesto a favor da igualdade entre os alunos de nossa sala. Estávamos prontos para tomar medidas mais drásticas, uma revolução começaria!

Entre as mudanças que exigíamos: qualquer um teria direito de sentar-se onde bem entender, todos com direito ao mesmo conjunto de materiais escolares e os alunos não mais seriam explorados pelos professores. Basicamente, todos passariam a dividir e nada mais de ficar depois do sinal bater.

Escrevemos ligeiramente os princípios de nossa teoria política e grudamos na parede da sala.

Entretanto, pouco sabíamos que tínhamos adversários tramando contra nossos planos. Adão e seus colegas arquitetavam, ao mesmo tempo de nós, um manifesto próprio com diferentes exigências. Com a ajuda de Cátia, enérgica e estudiosa garota que tinha o hábito de sentar-se na frente, chegaram a conclusão que o "coletivo" não existia e que cada carteira que o aluno ocupasse seria sua propriedade individual sagrada, assim como seus bens e que estes poderiam ser compartilhados com quem bem entendessem, sem distribuições e oferecimentos obrigatórios.

Assim foram postuladas as duas distintas teorias que regeriam as políticas daquela sala nos próximos minutos. Adão era o primeiro-ministro de seu estado, a Frente da Sala. Carlos era o secretário-geral do Fundão, eu o seu braço direito.

Com a sala dividida em dois lados, teve início a guerra.

O primeiro ataque inimigo veio na forma de uma bolinha de papel. Atirado por Dudu, piadista da classe e aliado de Adão, o projétil acertou em cheio nosso secretário-geral, bem na testa. Passamos minutos planejando um contra-ataque, uma ofensiva eficaz como resposta contra aquele ataque gratuito.

O sinal tocaria em cinco minutos, precisávamos de uma rápida ação. Esta veio de Aline, atenciosa estudante das aulas de ciências, que, como sempre foi conhecida como uma garota impulsiva, tomou a iniciativa não só de aplicar um tapa na nuca de Adão (que estava de costas para ela) como também rasgar uma página de seu caderno, insulto que impressionou a muitos de nós.

Depois desta ofensa, houve uma verdadeira batalha de bolinhas de papel. Tivemos que montar uma muralha com nossas carteiras. Não demorou para que Adão e seus aliados tivessem que recorrer a uma, já que passamos a atirar nossas próprias bolinhas. Algumas eram grande e pesadas, outras leves, mas todas causavam enorme dor.

Não houve sequer uma baixa, mas muitos mudaram de lado.

O primeiro foi Felipe. Tornou-se desiludido com o governo de Adão e, inspirado pelos ideais da fraternidade e igualdade, decidiu unir-se a nós. E então veio para nosso lado Isabela, a garota por quem eu tinha há muito tempo uma queda. Não consegui expressar a minha felicidade quando a vi cruzando a sala e juntando-se ao nosso exército.

Assim como Felipe e Isabela, muitos outros aderiram à nossa causa socialista e abandonaram a tirânica e desigual ditadura de Adão. Ficou claro para eles que as políticas liberais e capitalistas de Adão, apoiadas fortemente pelo cínico Dudu, incentivavam o acúmulo de riquezas. E embora nosso governo recebesse duras críticas por conta de seu suposto autoritarismo e instabilidade comercial, ainda éramos a solução para os persistentes problemas que assolavam a humanidade, a libertação do proletariado!

Com aquele verdadeiro êxodo, nossas forças tornaram-se maiores do que a do inimigo, um contraste que evidenciou a vitória, mesmo a Adão e Dudu. E de fato eram somente eles os restantes, dois generais derrotados presos em seu castelo (um muro de carteiras amontoadas).

Eu, Carlos, fui testemunha não só da guerra ideológica e do conflito de bolinhas de papel, mas também de uma quase rendição do inimigo. Vi Adão se levantar, como se já tivesse um discurso feito. Era a derrota final, o fim do inimigo, a destruição do demônio político e a implantação definitiva de nosso sistema.

Mas éramos só garotos da quarta série e o sinal bateu bem naquele momento. Era recreio, hora de lanchar, não de guerrear por ideais.

Todos saímos da sala. Não houve derrotados nem vitoriosos, apenas crianças com muita imaginação. Mas quem sabe se os instintos ideológicos que pulsavam dentro de nós não fossem verdadeiros? Talvez houvesse uma luta de verdade naquela sala de aula, uma imitação das guerras reais pelo mundo. Ou só brincadeira de meninos?

Uma coisa é certa: nunca mais brincamos com bolinhas de papel ou de senhores da guerra.

12 de março de 2020

O Vaqueiro Fantasma de São Fernando


Na cidade de São Fernando, um município perdido no interior do país, diziam existir um fantasma que aterrorizava o povo da região. Segundo os relatos, ele cavalgava no último domingo de cada mês pelos terrenos das fazenda de São Fernando e arredores. Alguns diziam que se tratava do espírito de um vaqueiro que, desgostoso, pulara de seu cavalo em movimento com a intenção de quebrar o pescoço. A população o havia apelidado de Vaqueiro de São Fernando.

A história chamou a atenção do jornal onde trabalho. Infelizmente, não fui designado para cobrir a matéria, eu que sempre fui interessado em lendas sinistras de cidades isoladas. Carlos, meu rival, foi escolhido para ir a São Fernando e reportar sobre o Vaqueiro Fantasma. Sempre cobicei sua posição na redação e a estima que tinha pelo resto da equipe, então fiquei ainda mais revoltado com aquilo tudo.

Chegando ao município, a história ficou esclarecida assim: o Vaqueiro Fantasma era visto todo último domingo de cada mês. Era avistado cavalgando pelos pastos de alguma fazenda ou propriedade da região. Segundo os que afirmavam terem visto a aparição, tanto o Vaqueiro quanto a sua montaria emitiam uma luz branca forte, como uma lâmpada. Não faziam nenhum som, nem mesmo som de galope.

Mas o mais assustador, ou interessante, que é como nós repórteres interpretamos as coisas, era o desaparecimento das testemunhas do tal Vaqueiro. Um dos filhos de Seu Antônio, dono do Sítio Alvorada, tinha sumido na noite em que viu a alma penada. Outras casos como o de Dona Maria Conceição, que segundo outras testemunhas tinha sido carregada pelo fantasma, confirmavam o natureza hostil da espírito.

Além disso, Carlos descobriu que, apesar de sumirem por completo, as vítimas normalmente sempre deixavam algo de importante para trás, um pertence. O filho de Seu Antônio tinha sido levado, mas ele deixou sua carteira com mil reais. Dona Maria foi raptada, mas deixou a carta de seu terreno para a sua única filha no exato local do rapto. Era como se o Vaqueiro Fantasma estivesse deixando propositalmente aqueles pertences como uma forma de consolo, talvez. Claro que não era o bastante para amenizar a tristeza (e indignação) dos habitantes de São Fernando.

Mas apesar de tudo apontar que o Vaqueiro só tinha intenções maléficas, Carlos decidiu ficar na cidade até o próximo domingo, que seria justamente o último daquele mês. Instalou-se na beira de uma estrada com a camera em sua mão. Ia com um policial ao seu lado (armado, caso se tratasse de mais que um fantasma).

Ficaram lá até o cair da noite. Passaram horas e Carlos já pensava em desistir daquele "Scooby-Doo", ir embora e contar a todos os colegas do jornal sobre uma lenda urbana de interior. Mas então, quando era quase meia-noite, ele apareceu.

O que aconteceu foi contado a mim pelo policial que acompanhava Carlos. Ele foi a única testemunha.

Segundo o policial, o Vaqueiro reluzia e tinha um brilho de fogueira. Cavalgava rapidamente. Carlos o avistou no horizonte, no campo, achou que fosse um carro. Estavam em alta velocidade. O policial sacou sua pistola e até chegou a disparar contra a misteriosa criatura. Errou, o cavaleiro era muito rápido. A aparição fez estendeu a mão e agarrou o repórter pelo pescoço como se agarra um frango. Aparentava uma força sobre-humana.

O policial enxugou os olhos, incrédulo. Atirou mais duas vezes para livrar Carlos das garras do espírito do outro mundo, mas suas balas simplesmente atravessaram o corpo daquele ser, era intangível .
Quando se deu conta, o fantasma havia carregado Carlos e sumia de vista entre as árvores do outro lado da estrada. O meu rival, que segundo o policial ainda resistiu e lutou contra a alma penada, deixou apenas seu bloco de anotações e a sua câmera.

Cena do rapto amanheceu cheia de pessoas. Todo mundo já comentava na cidade sobre o sumiço de mais, obra do Vaqueiro Fantasma de São Fernando. Depois daquele dia, os últimos domingos de cada mês eram tratados com um sentimento de temor pela população, um temor verdadeiro, pois agora havia um policial confiável com testemunha. O policial, talvez traumatizado com o incidente, se aposentou um mês depois e foi morar no litoral.

Quando a Carlos, ninguém nunca chegou a saber o que aconteceu a ele. Se perguntam do que ele morreu, dizem que foi pelas mãos de um cruel fantasma.

Mas parece que a lenda era verdade. E como dizem, todos aqueles que desaparecem deixam algo de valioso para trás. No caso de Carlos, ele deixou me deixou seu lugar como repórter número um na redação.

10 de março de 2020

O Mosquito


Estava eu fazendo caminhada naquele fim de tarde como eu fazia quase todos os dias. Paro, cansado, ofegante. Sinto o suor descendo pela testa, escorrendo pelos braços. Sinto também algo em minha mão direita.

É um mosquito.

O safado queria o meu sangue. Fui rápido. Um tapa. O pequeno escapou! Era muito ligeiro. E aí senti algo no meu braço esquerdo. Uma picada.

Algo estranhou me ocorreu naquele momento. Uma misericórdia despertou em mim. Observei a minúscula criatura alada sugando minha o conteúdo de minha veia. Vi beleza naquele ser, em seus movimentos quase imperceptíveis, em sua natureza simplista e em suas formas insetóides.

Mas um segundo depois a piedade se foi. Acertei-o com minha mão. Quando tirei a palma de cima, não havia nada além de uma poça de sangue e de carcaça do parasitinha.

Prossegui, então, com meu exercício rumo à minha casa. O que era piedade tornou-se frieza e logo reflexão. Será que o mosquito merecia morrer? Afinal, ele não me mataria tirando só aquele pouco de sangue que precisava. O coitado só estava tentando sobreviver.

Parei por um momento minha caminhada, pensativo. Um mosquito pousou em minha perna.

E então continuei a correr.

9 de março de 2020

Normas de Jantar


Norma adorava fumar. Era terapêutico para ela, como que um alívio de suas dores internas e externas, um elixir para tudo, um escape.

Gostava de fumar olhando para o teto. Tinha reparado numa goteira. Sempre quando chovia, ela fazia um barulho que deixava Norma bem calma.

Ninguém sabia que a moça fumava, nem mesmo os pais, nem o namorado. A propósito, era justamente por causa deles que Norma teve que recorrer à nicotina naquela noite.

Era a noite em que seus pais conheceriam Joniel. Dona Delzimar estava mais que animada para a ocasião, chegou a se arrumar bastante. Havia um brilho em seu olhar que Norma percebeu, um brilho de alguém que esperava por algo verdadeiramente fantástico. Já tinha ouvido falar muito de Joniel nas últimas semanas, analisou muitas fotos suas e seu perfil por completo, mal podia Delzimar esparar para enfim conhecê-lo.

Quanto a Seu Augusto, estava com o rosto monótomo de sempre, expressão quase nula. Uma falta de expectativa ou um completo desinteresse pelo rapaz? Delzimar reclamava muito disso em seu marido, naquela sua falta de espírito. Esperava vê-lo simpático naquela noite.

Mesa pronta. A companhia tocou. Joniel estava mais que elegante, todos repararam. O lindo sorriso em seu rosto era contagiante. Norma o abraçou fortemente, beijando-o com uma intensidade não praticada antes, uma exibição aos pais.

Dona Delzimar viu no rapaz tudo de bom. Gentil, educado, boa pinta e com cara de inteligente. Seu Augusto estava... com fome, não aguentava esperar pela hora do jantar. Sua filha podia casar até com um javali, não fazia muita diferença desde que ela saísse de casa.

Sentados à mesa, foram pondo os assuntos em dia, iniciando o lento (e para Seu Augusto, muito doloroso) processo de conhecer ao outro.

Observadora, Dona Delzimar prestou atenção em cada detalhe do jovem, cada movimento de pálpebras, cada gesto com as mãos, seus trejeitos e mínimos defeitos. Enterrava Joniel de perguntas, algumas importantes e outras bobas, deixando a filha constrangida. Seu Augusto chegou a quase cochilar.

Norma não estava surpresa com a mãe exageradamente curiosa ou com o pai indiferente. Esperava isso mesmo, mas também esperava não ter um ataque nos nervos ali. Era muito grata por não ter irmãos, isso sim, pois não precisava ter que aguentar mais membros da família naquele jantar.

Na perspectiva de Joniel, antes bem contente em conhecer finalmente os pais da namorada, as coisas estavam prestes a ficar bem constrangedoras. Percebeu que Delzimar não deixava de fitá-lo. Achava que era apenas admiração inocente de sogra, gesto fofo de madame anfitriã. Mas sentiu o calafrio percorrer sua espinha quando o pé de Delzimar começou a tocar o seu sob a mesa. Conseguiu sentir os dedos velhos e enrugados, frios com a noite lá fora, vestidos somente uma sandália, entrelaçando-se com o tecido da superfície de seu tênis. Teve que afastá-los quando a senhora começou a desamarrar o cadarço com a ajuda do seus dois dedos maiores. Quase soltou um som se não fosse por Norma que, ao lado, nada percebia.

Mas estava prestes a perceber. Pedindo licença e uma tempo em particular com Norma, Joniel contou à namorada os detalhes do ocorrido. Rapaz honesto, Joniel não sentia-se bem escondendo nada daqueles próximos dele e foi obrigado a contá-la.

De volta à mesa e completamente envergonhada, Norma tentou introduzir seu pai a Joniel, mas fracassou completamente. Se não estava olhando para os lados, o homem resmungava. Queixava-se de sono e dores, como se Joniel não existisse, ou mesmo ninguém ali.

A noite progrediu naquele ritmo. E então começou a chover, como se os céus chorassem por Norma. Como ele vai querer ter sogros assim, a coitadinha pensou.

Alguém, então, bateu a porta. E continuou batendo, como se estivesse tentando derrubá-la. É o Danilo!, gritava a voz. Quando Norma abriu a porta, Joniel reconheceu logo que era seu irmão, pôs logo a mão sobre os olhos.

Era uma caricatura aquele garoto. Danilo era um versão piorada do irmão mais velho, gordinho, sardento e cabeludo. Estava encharcado, como se não bastasse tudo. Vim correndo e começou a chover, me empresta seus fones de ouvido?, ele perguntou.

Seu Augusto, em um repentino despertar, reconheceu o garoto ensopado de água ali no meio sala. É o rapaz do parque!, ele disse, animado.

Os dois pareciam se cumprimentaram como se conhecessem há anos. Foram para o quarto nos fundos, onde não retornarão tão cedo, rindo como duas crianças.

Joniel olhou para a namorada e os dois deduziram logo as atividades ilícitas que tanto Danilo quanto o senhor estavam envolvidos, o boné com folhas de canábis não deixaram dúvidas, além da fumaça e do constante riso que vinha lá de trás.

Delzimar não deixava de olhar o futuro genro, uma paixão incabível.

Norma não conseguia acreditar. Seus nervos estavam quase explodindo, estava prestes a perder o controle. Só queria deitar e se acalmar, a noite tinha sido um completo fracasso.

Foi para seu quarto e trancou-se. Sentou-se na cama e olhou para o chão, a caixa de cigarros estava quase sorrindo para ela. Não se lembrava de estar ali, devia ter deixado-a cair quando saiu para a cozinha. Mas o importante eram seus cigarrinhos, Norma não precisava de outra coisa, só de uma boa noite de fumo. Mas então veio a surpresa: quando foi abrindo, viu que todos os cigarros estavam molhados, completamente encharcados de água. Olhou para cima. Os cigarros haviam aterrissado bem debaixo da maldita goteira.

Que terrível noite para a Norma.



7 de março de 2020

Dona Rosa


Algumas pessoas não são o que aparentam ser. Eu posso dizer isso com toda a certeza.

Eu morei há alguns anos em um condomínio na capital. Era apertado, um tanto que velho, mas era decente. No dia em que me mudei para o lugar, recordo-me que a pessoa que me deu as boas-vindas mais calorosas foi Dona Rosa. Era uma mulher de uns sessenta, viúva há algum tempo. Simpática como um anjo, gostava de me convidar para a sua casa para tomar café e conversar um pouco. Eu me sentia bastante confortável em sua presença, ela me tratava como se eu fosse sua filha, e eu estava perfeitamente satisfeita com esse relacionamento.

Pobre Dona Rosa, afinal, seus dois filhos moravam em outro estado e ela teve que morar só, vivendo da pensão do esposo falecido. Seu companheiro era Félix, o cão que latia muito. Muitos vezes seu latido incomodava os vizinhos que viviam dizendo para Dona Rosa se livrar do animal. Outra companhia para Dona Rosa era Lulu, uma cadela sua. Ela aparentemente nunca saía do apartamento e de vez em quando a ouvíamos latir um latido muito estranho, não parecia um cachorro.

Mas enfim, apesar de toda a cachorrada, nos tornamos boas amigas. Um dia, porém, tudo mudou.

 Eu voltava do expediente e me deparei com Bruno, meu namorado, me esperando em casa (ele tinha as chaves). Naquela ocasião, Félix estava latindo como nunca e Bruno, já farto, veio falar comigo sobre o barulho. Mas eu ignorei, mandei ele esquecer aquilo.

Mas naquela noite, Dona Rosa veio me procurar.

- Boa noite, vizinha. Vamos tomar um chá comigo? A novela já vai começar – Dona Rosa disse, sorridente.

Já tínhamos feito aquilo várias vezes e eu gostava de fazer companhia a Dona Rosa, o que era benéfico para nós duas pois eu também me achava solitária algumas vezes. Naquela noite, porém, o que eu queria mesmo era passar um tempo com o Bruno já que não nos víamos fazia uma semana. Planejávamos ver um filme. Mas apesar de meu comprometimento com Bruno, eu não queria deixar Dona Rosa só, já tínhamos criado um vínculo muito especial.

Assim, me despedi de Bruno, irritado com minha decisão, e fui visitar Dona Rosa.

Quando entrei em sua casa, Dona Rosa foi logo trancando a porta da maneira mais sútil que pôde, mas mesmo assim eu notei e a indaguei sobre aquilo, mas a senhora nada respondeu.

A televisão estava ligada e Dona Rosa foi à cozinha, voltando com uma bandeja de biscoitos e uma xícara de café. Era a mesma bandejinha de sempre a mesma xícara com um desenho de flor. Até aí era só mais uma visita amigável à minha vizinha, mas então eu comecei a me tocar.

Depois de me entregar os lanches, a senhora retirou-se para os fundos onde ficou por um bom tempo. Ouvi barulhos vindos de outro cômodo, possivelmente seu quarto. Durante toda a nossa amizade, nunca havia me aventurado além da sala de estar, me limitando ao conforto de seu pequeno sofá. O primeiro sinal de que havia algo de errado eram justamente os barulhos que eu passei a ouvir. Era como se alguém estivesse mexendo em correntes de ferro. Pensei nos seus cachorros, uma explicação plausível. Aí então eu olhei para a porta e me lembrei que ela havia a fechado na chave.

Eu segurava um biscoito nesse momento, mas não cheguei a mordê-lo. Olhei para ele com um rosto de quem não queria acreditar estar em perigo. Por sorte eu havia trazido o meu celular e pude mandar uma mensagem para Bruno: VEM CÁ, RÁPIDO!

Fui me levantando e disse "Obrigada, Dona Rosa, mas eu tenho que ir!". Tive como resposta uma risada sinistra da velhinha.

- Mas está tão cedo... - ela disse.

Dona Rosa apareceu vindo do seu quarto. Vinha segurando uma corrente e uma coleira. O sorriso em seu rosto era o que se esperaria ver estampado na cara de um psicopata. Eu me virei, desesperada, e tentei pateticamente abrir a porta, mas a maldita estava fechada. Antes de poder gritar por socorro, Rosa me atacou pelas costas, me enforcando com sua corrente. Fui arrastada como um animal pelo chão de sua casa, eu nem conseguia gritar de tão sufocada. Sempre fui pequena, mas mesmo assim fiquei impressionada com a força de Dona Rosa.

Fui levada ao seu quarto, um lugar escuro e imundo. Dona Rosa havia me soltado e eu estava jogada ali no assoalho, tão enfraquecida pelos ferimentos que nem tentava lutar para escapar. Minha garganta doía, meu pescoço sangrava e eu tinha dificuldades para respirar.

A velha ria maliciosamente.

- Se tivesse comido os biscoitos já estaria quietinha – ela disse.

Em seu quarto estava Félix, seu cão barulhento. Mas o mais horrorizante que descobri ali foi o outro mascote de Dona Rosa. A cadela Lulu, que tinha se escondido debaixo da cama de sua dona, saiu de seu esconderijo ao chamado da senhora.

Era grotesco. Uma mulher de uns vinte e tantos anos, totalmente nua, corpo cheio de feridas, andando de quatro. Aquela era Lulu, a responsável por latidos tão estranhos, o animal de estimação que nunca saia do apartamento.

Foi nesse momento que eu ouvi batidas na porta. Era Bruno, que a chutou até derrubá-la e veio até o quarto de Dona Rosa. No primeiro instante ele quase vomitou ao ver a cena e foi então agredido por Dona Rosa, que primeiramente jogou spray de pimenta em seu rosto e então começou a batê-lo com um porrete. Porém, foi parada pelo síndico do prédio que havia sido chamado por Bruno.

A polícia foi chamada imediatamente e não só o condomínio, mas o bairro inteiro parou e então a cidade ficou sabendo dos horrores que ocorreram quando uma equipe de reportagem chegou ao local. Não entendi no momento e ainda não entendo o que pretendia Dona Rosa. Queria ela me aprisionar somente ou tinha planos para Bruno? Gosto de acreditar hoje em dia que a velha tinha sido dominada pela loucura.

Não demorou muitos dias para que eu me mudasse do condomínio e fosse morar com Bruno. Eu ainda tenho sequelas do acontecimento, as cicatrizes no meu pescoço.

Quanto a "Lulu", apelido de Luciana, ela foi levada a um hospital psiquiátrico. Nunca mais ouvi dela, mesmo depois de tantos anos. Sabe-se lá que tipo de torturas psicológicas Dona Rosa infligiu na moça. Aparentemente, Luciana tinha sido também vizinha de Dona Rosa anos antes de tudo que tinha acontecido.

A velha tinha sido presa onde provavelmente vai ficar pelo resto dos seus dias.

Bem que Bruno tinha me avisado para não fazer muito amizade com vizinhos. Hoje em dia estamos casados e moramos juntos, mas raramente fazemos visitas ao que moram ao lado e nunca nem pensamos em adotar um cãozinho.

6 de março de 2020

A Última Canção


Que tal começar a minha história pelo final? Agora, em meus últimos momentos, tenho uma bala cravada em meu peito. Por algum motivo, sinto que consigo recordar melhor tudo que houve comigo nas últimas semanas. Serei, então, o mais breve possível.

Sou, ou era, um músico. Não um mestre de todos os instrumentos. Meu ponto forte é o violão, sempre foi desde os dezessete anos. Não gosto de piano (nem de ficar sentado por muito tempo) e meus lábios doem quando assopro uma flauta ou trombone por muito tempo. Mas meus dedos sempre deslizaram bem pelas cordas de um violão.

Mas antes de ser um músico, eu era um poeta. Assim era conhecido na sala de aula. Sempre fui bom com palavras. Por isso mesmo hoje em dia eu tenho um enorme talento para compôr músicas. Sejam tristes, alegres ou inspiradoras, a arte de escrever em versos é muito linda para mim.

Mas algo ruim aconteceu enquanto eu aproveitava essa vida de músico. Eu, um homem solitário (mas feliz) de trinta e cinco vivendo em uma casa alugada apertada, dava aulas de violão todo sábado e trabalhava como atendente em um supermercado no resto da semana. Uma vida modesta, mas sempre optei pelo simples. Certo dia eu comecei a tossir muito durante o trabalho e acabei desmaiando ali mesmo nos corredores entre as prateleiras. Acordei com um médico me dizendo que eu tinha câncer em estado avançado. Expectativa de vida: cinco meses.

Não me desesperei. Meu pai sempre dizia que tínhamos que aproveitar o tempo que era nos dado. Eu nem quis saber de quimioterapia. Fui direto para casa naquele mesmo dia e peguei meu violão e saí pelo mundo. Tive uma ideia incrível para uma nova música, uma última música que eu deveria compôr. Algo grandioso, nem que fosse um verso. Foi isso que pensei: "nem que fosse só um verso!"

Sentei-me numa praça e comecei a buscar inspiração. Talvez minha doença? Trágico de mais. Talvez em alguma mulher? Meloso demais. Olhei para cima, talvez em Deus? Não, muito clichê.

Então meus olhos bateram em um posto ali na calçada. Tinha um papel grudado, papel velho. Estava escrito:

Pizzaria do Mané
Matamos a sua fome

Abaixo das palavras havia um número de telefone. Eu logo percebi que tinha algo de errado ali. Não era um anúncio de pizzaria. A palavra "matamos" já entregava o que era. Chamem-me de esquisito, mas sempre fui observador. Sempre soube que esses anúncios grudados pela cidade são convites para outras coisas, coisas escusas e ilícitas.

Peguei meu celular e liguei. Quem atendeu foi uma voz sinistra.

- Alô – a voz disse.
- Olá, vocês trabalham com pizzas?
- Sim.
- Somente?
- Não... - a voz deu uma pausa. - Trabalhos com outra coisa também.
- Estou interessado.

A voz masculina me deu o endereço e eu fui correndo para lá com meu violão (claro). O que encontrei não foi uma pizzaria, ora, mas um verdadeiro covil de assassinos contratados! Ou melhor, pistoleiros, como eram chamados. Alguns eram altos e fortes, outros mais magros e fraquinhos. De qualquer forma, todos eram tipos agourentos.

Um deles chamou minha atenção. Seu nome era Romero. Descobri que era na verdade colombiano e que tinha se mudado para o Brasil há muitos anos. Trabalho aqui é ainda mais fácil, ele disse. Ignorando o homem, fui logo ao ponto.

- Posso acompanhar um dia de seu trabalho? - eu perguntei.
- Por que? - ele disse.
- Preciso de inspiração para uma música! Estou morrendo e esse é o último refrão que pretendo escrever.
- Parece loucura pra mim...
- Te pago como quiser.
- Tá bom, mas fica atrás de mim e não me atrapalha. - Romero aceitou sem relutância.

Paguei uma fortuna para poder me tornar seu observador. Fui ameaçado de morte por ele caso seu trabalho sujo fosse por mim denunciado. Uma ameaça totalmente esperada. Mas valeria a pena. Eu esperava encontrar a inspiração certo para meus novos versos.

Nossa primeira missão foi simples. Um pai cansado de ver seu filho voltar para casa chorando precisava dar um jeito no valentão que implicava com o garoto. Como esse pai era insano, resolveu recorrer a um método um tanto que radical para dar fim ao bullyng constante praticado contra seu menino. Solução: assassino contratado.

Porém, não questionei as medidas tomadas pelo pai, apenas observei (de longe) a ação do assassino contratado. Silencioso e cauteloso, foi rápido em eliminar o garoto, uma cena que não foi mais pesada por conta da distância que eu mantinha.

Enquanto saíamos de carro do local, eu no banco traseiro, deliciei-me com notas aleatórias que toquei acompanhadas dos versos recém concebidos.

Era uma vez
um assassino
Um homem frio
que matou um menino

Parei ali mesmo, não consegui prosseguir. Faltava algo mais, minha mente não conseguia terminar aquele verso ou imaginar qualquer outro.

Demos um dia de folga, mas logo voltamos à ativa. Nossa próxima missão foi o que mudou toda essa história. Chegando de carro à cena, deparei-me com um vista familiar. Paramos em frente a uma modesta casa no subúrbio, era madrugada. Mas eu conhecia aquela casa. Conhecia aquelas janelas, aquela porta e aquela calçada.

Era a casa da minha ex-mulher!

Permaneci no carro e decidi não acompanhar Romero naquele missão em particular. Eu não tinha mais sentimentos pela minha ex- esposa, claro, nós nem mantínhamos mais contato. Mas temi pela sua morte. Porém, tive certeza de que ela não era o alvo pois ouvi, depois de dois tiros, os gritos de desespero da coitada.

Um silêncio segui-se e então nada mais. Fiz a maior besteira de minha vida quando tomei a iniciativa de sair do carro e me aproximar da casa para verificar a situação. Fui surpreendido por Romero que saiu de dentro do domicílio às pressas (nenhuma novidade). Logo atrás veio a esposa do pobre alvo, ninguém menos que o marido da pobre mulher. Estava em prantos e totalmente desesperada, sangue nas mãos. Ela chegou a me ver, embora eu tenha tentado cobrir meu rosto com o violão (como já devem saber, sempre tenho ele em mãos). O tolo aqui, ao contrário de Romero, estava sem máscara. Apressei-me para entrar no carro de novo e partirmos como um raio dali.

Dentro do nosso veículo, mais uma vez fracassei em arquitetar uma canção que representasse toda a natureza sinistra do trabalho de Romero.

O máximo que consegui foi mais uma estrofe:

Era uma vez
um assassino
Um homem frio
Que matou um menino
E também um marido

Fraco. Não havia poder, não havia coração, rima sem sentido, canção sem sentido. Frustei-me por dias e dias.

Mas então eu finalmente consegui, depois de muito acompanhar Romero em suas escusas aventuras, um verso que tivesse poder. Entretanto, é neste ato final que conheço meu destino trágico.

Acreditava eu que aquele seria um dos últimos dias ao lado de Romero. Embora eu não tenha desenvolvido afinidade nenhuma por aquele homenzarrão terrível, eu fiquei grato pela sua gentileza em me deixar acompanhá-lo em seu trabalho, e ele também estava grato pelo dinheiro farto com que eu o pagava.

Meu estado estava piorando. Sentia-me fraco, meu corpo doía, tossia como um gato engasgado, mas ao invés de cuspir pelos, eu cuspia sangue. Não deixei aquilo me abalar, eu era movido pela minha missão de concluir minha música. Quimioterapia? Tratamento? Nada daquilo poderia me salvar. Mas a minha canção viveria para sempre.

Enquanto estávamos na "Pizzaria do Mané", Romero recebeu uma ligação. Depois de terminado a ligação, lembro muito bem da expressão sombria que o homem me deu, nunca tinha visto Romero daquele jeito.

Partimos, como sempre, de carro rumo ao nosso destino. Era noite quando chegamos a uma região afastada do centro da cidade, um verdadeiro matagal. No início não me assustei pois já tínhamos ido a muitos matagais antes. Porém, depois de perceber que não havia ninguém ali, eu me toquei.

Romero, expressão nula, apontou seu revólver para meu peito. Não tinha piedade, assassino pago e profissional.

- Nunca pensei que diria isso mas... lo siento, señor músico – ele disse apontando a arma para o meu peito.

Tentei usar meu violão como escudo. Em vão. A bala atravessou queimando a madeira do instrumento, cai duro no chão, nem conseguia gritar direito.

Romero acelerou e sumiu em um segundo. A intensa dor fez com que eu perdesse os sentidos por um minuto. Recobrada a minha consciência, analisei a ferida fatal em meu peito e o sangramento que anunciava minha morte. Deitado no chão, a observar as estrelas, só pensava na mulher que contratou Romero para me matar. Mal ela sabia que Romero havia matado seu marido. Por que não usei uma maldita máscara naquela noite, eu pensei.

Agarrei meu violão e, com todas as minhas forças, coloquei-me de pé. O buraco no instrumento não atrapalhou seu funcionamento. Desse modo, então, eu consegui terminar minha canção. Mas a fonte de inspiração acabou não vindo de Romero ou de qualquer outro assassino contratado, mas da minha próprio estúpida e trágica morte.

Era uma vez
Um compositor
Com seu violão
Buscando inspiração
Terminou sua canção
Gemendo de dor

Foi a minha última canção.

29 de fevereiro de 2020

Dor de Dente


Renan pôs a mão na bochecha. Um dos seus molares doía fazia uma semana, uma dor quase insuportável. O pior era o barulho da maquininha do dentista que não acalmava em nada os pobres coitados na sala de espera.

Eram quatro. Renan era o que tinha mais medo de dentista. Lembra-se da primeira vez que foi quando ainda era garoto e de como ficou traumatizado com a agulha. Desde então tem cuidado bem da saúde bocal, mas mesmo assim conseguiu uma cárie. Outro era uma mulher de uns quarenta anos que tinha trazido o filho. Renan observou como estava aflita a criança, coitadinha. Ao lado da mulher havia um homem barbudo e que usava um estranho chapéu. Renan achou seus jeitos muito peculiares. Além desses, tinha outro homem sentado no canto, lendo uma revista com uma expressão séria.

O silêncio reinava, interrompido de vez em quando pela maquininha.

- Mãe... - o garoto disse.

- Não dói, filho – a mãe respondeu.

Renan fechou os olhos. Em momentos como esse, aprendera que devia buscar ajuda interior. Nunca foi uma pessoa religiosa. Quando cresceu, resolveu se afastar desse meio (crescera entre católicos) e abraçar o freethought. Mas havia situações que sua mente cutucava a Renan e lhe mandava pedir socorro a alguma divindade ou força superior. Renan acreditava ser instinto humano.

Renan abriu os olhos e viu o menininho com as palmas coladas, quase riu, achou cômico.

- Não reze em vão, menino. - a mãe disse.

- Rezar ou não rezar... não adianta nada. - o homem no canto que lia uma revista interrompeu.

- Besteira. - a mulher disse baixinho.

- Besteira? - o homem continuou – Diga isso às vítimas de desastres!

Renan colocou a mão na testa. Lá vamos nós, ele pensou. Uma discussão teológica havia se iniciado e ele só estava preocupado com o tamanho da agulha que o esperava.

- Como é que você pode viver sem Deus? - a mulher continuava.

- Bem, sou ateu e aqui estou! - o homem respondia.

- Vocês discutem e discutem mas a verdade é que são todos infiéis – o homem do chapéu peculiar de repente falou, era na verdade um muçulmano – Só existe um Deus.

- Eu sei e acredito nisso – a mulher disse.

- Vocês cristãos na verdade creem em três deuses e só fingem acreditar em um. É ridículo. Jesus não é Deus, é um profeta somente!

A discussão continuava. Um lado atacava a qualidade do deus de um, o outro lado atacava a falta de fé do outro. Era uma guerra, na verdade. Renan olhou para o garotinho e o viu ainda rezando, dessa vez com mais intensidade, falando mil rezas por segundo.

De repente, todo o barulho cessou quando a porta se abriu e de dentro do consultório (ou sala de operações, para os mais temerosos) saiu um rapaz com um lenço sobre a boca, expressão de dor.

- Lembre-se de cuidar dos dentes daqui em diante! - o dentista disse, logo atrás – Muito bem, quem é o próximo?

Todos na sala de espera se entreolharam, estavam mudos, e então o homem ateu se levantou e entrou na sala para sua realizar sua extração.

Renan observou claramente o semblante no rosto do ateu antes de entrar na sala. Era medo.

Assim que a porta se fechou, a mulher olhou para o garotinho e disse:

- Vamos rezar, filho, vamos rezar.


19 de fevereiro de 2020

O Guardião


Talion olhou para o enorme sol que se preparava para desaparecer no horizonte. Era uma luz tão forte e intensa que mesmo o elfo não conseguiu contemplá-la por muito. Talion virou-se para o homenzinho atrás de si, riu e disse:

- Sinto-me seguro aqui.

O homenzinho riu em resposta. Era baixo e coberto de pelos. Girek era como Talion, último membro de sua raça, mas não passou tanto da sua vida em solidão já que aldeia em que estava era muito bem habitada. Talion, por outro lado, passou sua juventude entre a nobreza élfica no seu planeta natal, Andor, agora uma ruína. Porém, a maior parte de sua vida viveu em fuga, fugindo de todos que cobiçavam o seu maior tesouro.

Girek apontou para a chave negra pendurada no pescoço de Talion e disse:

- Fyrumir, a chave que abre os portões de Qiratun. Que bom que você nunca a perdeu, Talion. Fez bem vir até meu planeta, ela está a salvo aqui.

- Tenho certeza que Fyrumir está segura – Talion respondeu, tocando o objeto em seu colo – Todos os grandes impérios do universo já caíram e todos os meus vilões já foram derrotados.

O rosto de Talion, outrora angelical e perfeito, era agora cheio de cicatrizes de batalhas e de marcas de velhice. Talion tinha milhares de anos. Havia visto tanto. Viu Andor em seu esplendor máximo, mas também assistiu sua queda. Lembra-se bem do dia em que seu pai, um dos maiores cientistas do planeta, confiou a ele e seus irmãos a chave Fyrumir. Talion não gostava de lembrar o que levou a queda de seu mundo, ou talvez de tão traumatizado se recusava a lembrar, mas sabia que não haveria salvação para o seu povo. Ele e seus irmãos foram obrigados a fugir com a chave.

Não demorou até terem que enfrentar inimigos. Caçadores de recompensas, saqueadores, fanáticos, reis com sede de poder. Todos atrás da chave. Talion foi o último que sobrou dos irmãos, todos os outros foram mortos ou desapareceram. O último elfo por muito tempo viajou, na maioria das vezes só ou de vez em quando com uma companhia indesejável, pelo universo. Não tinha destino, apenas fugia de seus vilões.

Talion sempre soube o que estava em jogo: a sobrevivência do universo. Caso alguém colocasse as mãos em Fyrumir, seria possível abrir todas as portas de Qiratun. Um poder ancestral e incomensurável adormercia lá, um poder há muito esquecido pela maioria, mas que os elfos de Andor conheciam bem. Foram eles que, muito antes do avô de Talion nascer, haviam o aprisionado no planeta. Imperadores galáticos, cheios de cobiça, almejavam tão poder. Tolos, Talion pensava, não tinham ideia da destruição que trariam a todo o cosmos.

Mas não só a Fyrumir os vilões perseguiam, mas ao próprio Talion também. O último de sua raça, o elfo era o único que conhecia as exatas coordenadas espaciais de Qiratun. Sem Talion, Fyrumir seria inútil. Talion aacreditava que era por causa disso que tinha conseguido sobreviver por tanto tempo.

Mas agora estava finalmente em paz. Depois de milhares de anos, Talion finalmente podia descansar no planeta de Girek. O planeta gélido tinha longas noites e o dia era banhado por um fortíssimo sol, uma enorme estrela vermelha, que quando tocava sua luz na superfície do planeta, evaporava toda a neve. Mas as pessoas daquele vilarejo eram de natureza serena, pacifistas como Girek.

Talion sabia que não precisava mais se preocupar, pois não havia mais inimigos na sua cola.

Ou assim ele pensava. O passado ainda perseguia o viajante elfo. Ainda havia uma figura sombra atrás de Fyrumir. Arzeg, ou O Caçador, como era chamado por alguns, era o último da linhagem real do Império Negro. Assim como Talion, Arzeg teve seu planeta destruído e todo o seu povo dizimado. Na sua juventude, o jovem imperador useu de todos os seus recursos para perseguir Talion, mas não teve sucesso. Tornou-se obcecado em por suas mãos em Fyrumir, tanto que ele abandonou o trono, levando o seu mundo a uma guerra civil e seu império galático à ruína.

Arzeg não desistiria até ter a Fyrumir.

Anos se passaram no planeta de Girek e Talion, tão seguro que não confrontaria mais nenhum adversário, teve que lutar uma última vez. Uma nave pousou na distância, além das montanhas. Um dos aldeões que morava afastado da vila veio alertar a Girek e Talion sobre uma figura sombria que estava causando terror nas proximidades.

- Será que... - Talion disse, olhando para Girek.

O elfo levantou-se e armou-se com seu rifle de plasma, arma que já usara muitas vezes para derrubar inimigos das mais diferentes espécies pelas galáxias.

Talion rezava para que não fosse nada. Em seu instinto, porém, sabia que alguém procurava pela Fyrumir.

Arzeg a procurava. Há milhas dali, O Caçador montava em seu talurun, um réptil ágil e de presas afiadas, comum naquela região da galáxia, uma besta treinada para farejar seus alvos e destroçá-los impiedosamente. O animal perfeito para Arzeg.

O talurun ergueu o focinho, apreensivo.

- Sentiu alguma coisa? - Arzeg falou ao animal – Vá, mas não o mate. Preciso dele vivo.

A besta partiu velozmente, sua boca cheia de uma saliva pegajosa, faminto, embora fosse ciente das ordens de seu mestre.

O talurun soltava rugidos uma hora ou outra, sinais de terror.

Talion ouviu os sons que a criatura soltava. O elfo sabia que não tinha acabado, a perseguição não tinha acabado. Mas estava prestes a ter um fim.

Talion posicionou-se no centro da vila. Os aldeões, assustados, não faziam ideia de qual era a fonte daquele som tão bestial. Os habitantes do planeta, em suas vidas pacíficas, não conheciam predadores.

- Fiquem em suas casas. É perigoso aqui – Talion disse, preparando sua mira.

Ao longe, surgindo entre as fendas da montanha que se erguia ao pé do vilarejo, a figura de Arzeg montado em seu réptil aparecia, um emissário do medo.

O talurun soltou um último estridente rosnado. Arzeg, observando quem o esperava no centro do vilarejo com a ajuda de um binóculo, riu.

O Caçador gritou com todas as suas forças:

- Eu vou ter o meu tesouro, Talion! Eu vim pegar a chave de Qiratun!

O elfo andoriano não moveu um músculo, permanecia parado como uma estatua, sua mira travada no inimigo, dedo no gatilho.

O talurun partiu para o ataque. A criatura era rápida como um raio, cada passo seu era um salto e ele e seu montador se aproximavam rapidamente.

Arzeg também sacou sua arma, uma pistola de plasma, antiga mas letal.

Cada pisada era um terremoto. Talion começou a tremer, não tremia assim há muito tempo.

Arzeg se aproximava. Justo quando Talion estava querendo esquecer a como usar um rifle de plasma.

O monstro escamoso abriu sua boca. O elfo atirou, duas vezes, acertou em cheio.

O réptil de outro mundo tombou, sua boca ainda aberta, mas ao invés de uma pegajosa saliva, de dentro dela saia sangue. A criatura estava morta.

Talion suspirou, alívio. Sentiu seu coração bater forte, seu corpo tremia, uma sensação que não sentia desde o tempo que fugia dos exércitos do Lorde dos Insetos, o antigo Imperador de Andrômeda.

Olhou para os pés que tremiam. Quando voltou os olhos à besta caída aos seus pés, viu Arzeg se erguendo.

- Elfo...- Arzeg rosnou.

Talion apontou seu rifle. Um tiro na cabeça, ele pensou. Apertou o gatilho, mas não funcionou. A munição de plasma havia acabado. Estava só ele e Arzeg, e seu insano perseguidor não hesitaria em matá-lo.

Arzeg preparou-se para atirar com sua pistola, mas naquele momento, um tiro o acertou no ombro. Mas não fora Talion quem o disparou. Quando o elfo olhou para trás, viu o velho Girek com uma pistola de plasma.

- Corra, Talion! Fuja, como sempre o fez! - disse o ancião.

O elfo sabia aonde ir. Deixou a cena, um tiroteio a laser, e foi à sua nave. Era um velho cargueiro YTK-2200 da época do Quinto Império Feridiano, estacionado longe de onde Talion estava. O elfo sabia da destreza de Arzeg, tendo o enfrentado muitas vezes no passado, então apressou-se. A força física e agilidade élficas eram notórias, mas Talion estava demais cansado e despreparado para um combate. Sabe-se lá em que nível de poder Arzeg se encontrava.

Tropeçando em pedras, o viajante estelar correu, desviando de disparos lasers enquanto ouvia o grito assustador de seu perseguidor. Virando a cabeça de vez em quando, Talion tinha o vislumbre sinistro de Arzeg atirando descontroladamente em sua direção, um sorriso sádico em seu rosto.

- Eu não quero matar você, Talion! - ele gritava – Só pretendo derrubá-lo, e então pegar a chave e descobrir onde fica Qiratun.

Talion tinha milhares de anos e o peso da idade e dos anos de fuga enfim alcançaram ele. Sentiu, talvez pela primeira vez, uma fadiga verdadeira, digna de um raça inferior. Seus ossos doíam e seu corpo tremiam. Enquanto corria, tocou na chave pendurada de seu pescoço. Ninguém iria pôr as mãos nela.

O elfo olhou para o céu: o grande sol vermelho brilhava ardente.

Finalmente, ele se aproximava da nave. Mas antes de conseguir entrar em seu cargueiro, um tiro acertou Talion, na coxa. Talion gritou, nunca tinha gritado tanto daquele jeito. Pela primeira vez em muito tempo, sentiu uma dor verdadeira.

Mas não sentiu-se derrotado. Entrou no cargueiro e notou que Arzeg não disparava mais. Sua munição havia se esgotado e sacara uma lâmina negra. Em sua face havia um sorriso diabólico.

Talion foi rápido em entrar na espaçonave feridiana e decolar antes que Arzeg se aproximasse. Mas O Caçador não desistiria. Tinha sua própria nave esperando por ele do outro lado da montanha.

No espaço, Talion olhou para o planeta de Girek, agora um mundo alaranjado que se tornava cada vez mais distante. Ele não permitiria que Arzeg o capturasse e nem a chave. Passou tanto tempo protegendo aquele objeto que não via mais pelo o que lutar, não havia mais sentido em nada. Aquela seria sua última batalha, e Talion a venceria.

Travou as cordenadas da nave em direção ao sol vermelho. Talion sabia que não era só a localização daquele sistema em região não mapeada que tornava o planeta um bom esconderijo, mas era também por causa daquela estrela. A gigante vermelha tinha um núcleo extremamente denso, as temperaturas eram altíssimas na superfície. Os elfos andorianos tinham conhecimentos das propriedades únicas daqueles corpos celestes, somente eles poderiam destruir a Fyrumir.

Arzeg vinha logo atrás, sua nave, um verdadeiro caça de combate, era muito mais rápida e não demoraria para alcançar o desgastado cargueiro que carregava Talion e a Fyrumir. Ao perceber o plano do elfo, Arzeg rangeu os dentes.

O caça, armado com dois poderosos lasers, disparou e acertou em cheio a nave feridiana, fazendo-a chacoalhar. Talion sentiu o tremor, mas já não se preocupava.

Coordenadas travas no alvo. O Guardião da Fyrumir, em seu último ato de heroísmo, acionou os motores de dobra e a nave cortou o espaço em direção ao enorme sol escarlate. O cargueiro não precisou nem chegar perto da estrela e toda sua lataria já estava derretida. Com o impulso dos propulsores, o resto foi jogado para frente em velocidades próximas da luz e tudo que estava na nave, incluindo Fyrumir e seu protetor, foram dizimados.

Poucos segundos depois de se jogar contra a estrela, Arzeg, em total desespero, fez o mesmo, acionando seu sistema de dobra espacial e atirando-se contra a colossal esfera de plasma.

Assim terminou a história da Fyrumir, a lendária chave que abriria as portas de Qiratun, e de Talion de Andor, seu guardião. Nunca mais se ouviu falar sobre a mística chave ou sobre o planeta esquecido, a não ser na forma de uma lenda boba contada para crianças.

Mas há quem diga que em Qiratun o poder dos deuses ainda resida, esperando para ser despertado.